segunda-feira, 2 de junho de 2014

O CORPO IMPOSSÍVEL: O POSFÁCIO AO LIVRO DE JAIME ROCHA


Posto de novo, com emendas e alguns acrescentos ao texto, feitos para esta edição da Relógio d'Água, o meu posfácio ao livro de Jaime Rocha, que agora tem esta bela reedição. Que o livro venda e seja bem acolhido, são os meus votos:

 «Conhece o livro de Jaime Rocha, A Loucura Branca, a sua terceira edição. Congratulo-me por isso. Tempos houve em que a singularidade do universo literário de Jaime Rocha não lograva leitores ou a atenção crítica. Fui desde o princípio um dos raros entusiastas e inclusive responsabilizei-me pela segunda edição da novela, na defunta Íman, na fruste tentativa de chamar a atenção para o livro. Treze anos passaram e o autor ganhou leitores, prémios, uma certa aura, a ponto de se tornar plausível uma terceira edição: o tempo trabalha na legitimação do genuíno.
Pediu-me o Jaime que revisse o posfácio que então escrevi para o livro. Relido o texto, pouco tenho a acrescentar, até pelos motivos mais simples: creio que no essencial está lá tudo o que saberia dizer sobre o livro e ademais o modo discreto como o livro se volatizou na voragem do fluxo editorial, que começava então a configurar a explosão demencial que torna invisível oitenta por cento do que se lança no mercado, dá ao texto um carácter pouco menos do que inédito.
Daí que o repita, com algumas alterações de pormenor e o acrescento de dois páragrafos, esperando que esta vez A Loucura Branca reclame o seu momento de atenção:

A tremenda afasia das sextas. Ter de acabar o posfácio a uma sexta, sem poder gozar a preguiça, as hesitações, a frondosa irresolução dos sábados e domingos, enrodilha-me o corpo numa agonia.
Resolvo tomar um banho de imersão, frio, a fim de procurar no choque da temperatura a faísca.
E à primeira submersão da cabeça distrai-me o que ouço: o latido distante de um martelo, um motor não identificável, a vizinha de cima a queixar-se à filha da vizinha de baixo, o chuchar de um bebé no pé de uma boneca de plástico, o matraquear de uns dedos num teclado. A água amplifica os sons, dá-lhes recorte e detalhe – o som que viaja pelos canos, subitamente ubíquo.
E então ocorre-me: a escrita de Jaime Rocha é a de quem anda pelas ruas com a cabeça submersa nos rumores do mundo, nas suas dimensões dúplices, ocultas, cifradas, afastando da sua frente, com gestos de nadador, as cortinas do aparente.
Escreveu Goethe: «Não se morre. Apodrece-se em certos lugares, amadurece-se noutros». Se Goethe se referisse à ambivalência das paisagens sedimentadas num corpo esta sua formulação podia reportar-se àquelas conhecidas e irracionais figurações onde rostos e olhos heterotópicos deixavam de se alojar na cabeça do humanóide para errar por outras partes do corpo, em busca de um lugar onde: homologador.
Vítor, a personagem de A Loucura Branca, está diante da mesma inquietação ulcerada: onde firmar os olhos, no/ do corpo, se a memória – ponte levadiça – não tem um fosso que a salvaguarde da melancolia?
Cabe-lhe assim vaguear, sofregamente, no torpor de quem não queria mas foi posto de vigília, a reboque de um conjunto de circunstâncias que lhe ilumina as dimensões reversas, inaparentes, cifradas, do real.

Para Aristóteles, a melancolia tinha dois pólos: a loucura e as úlceras. Victor, após o inexplicável suicídio de um amigo fica num estado catapléctico, enfermiço. Vomita. Até aquilo que se conectava com as suas manifestações subjectivas enquistar. Tumor, anuncia o médico, diante duma tão evidente desobediência do corpo. E onde? Algures, pelo meridiano das úlceras.
Mas a súbita “erupção” de um “corpo estranho” na massa de um corpo que a rotina conformara a uma vida amorfa, de uma cartilaginosa repetição formal, fá-lo afrontar pela primeira vez a realidade e reconhecer (em si) uma presença informe, incognoscível. Quem era, fora do seu uso? Entre si e si havia um espaçamento. Daí que Vítor, durante o repouso a que a doença o obriga, descubra que nem nunca conheceu verdadeiramente a casa onde habita - «Vítor ia olhando para os objectos com espanto. Nunca tinha dado por um crucifixo no quarto, nem reparara que os reposteiros estavam decorados com formas de árvores de fruto.» -; ou sequer reconheça a relação espacial entre os objectos que a mobilam. Pior, a sutura do seu corpo desdobra-se numa sutura óptica, pois à medida que, pela primeira vez, vê as coisas como elas são, espalmadas à sua frente, mais se aproxima de uma fractura ontológica, de uma espécie de terror praesentis que tudo transfigura.

Tanto em A Loucura Branca, como no posterior Os Dias de um Excursionista, Jaime Rocha expõe universos de um concretismo diabólico, que fazem resvalar os objectos e gestos triviais para a sobrenaturalidade: «Vítor pediu um café, estendeu a mão por cima do balcão, viu os dedos suados que se mexeram uns contra os outros. Nunca antes observara esta posição dos dedos, ora aproximando-se, ora afastando-se, para depois se fecharem e desaparecerem na palma da mão. A chávena do café ficara encostada ao polegar. Num dos dedos tinham nascido cabelos finos e noutro ressaltava uma pequena borbulha arroxeada parecida com um confeite. Pela primeira vez sentia que possuía uma mão, mas não conseguia mexer os dedos. Via-os mexer, sabia que era a sua mão, mas era como se os dedos pertencessem a outro corpo, como se a mão continuasse por um braço artificial que se tivesse colocado atrás de si e se houvesse colado ao seu ombro.»
Ambas as novelas se podem ler como paisagens cristalográficas onde – o que é comum às narrativas fantásticas – a potencialidade visionária da mente humana amplifica os recortes patológicos, refractando sombras e convertendo o mundo das coisas simples em signos suspeitos, ameaçadores. Funda-se aqui o drama ou o pasmo das personagens de Jaime Rocha: estão sideradas pelos segredos ou pelo inadmissível que irrompe atrás das portas que tantas e tantas vezes atravessaram, como se debaixo do tapete da realidade houvesse não apenas a sujidade acumulada por descuidadas mulheres-a-dias mas sobretudo o rol de temores e mistérios para que não estávamos aptos, para o qual nunca ficaremos aptos.
Diz o narrador, em A Loucura Branca: «Teme-se o que se desconhece, por isso, apesar de ter nascido naquela paisagem o seu temor deveria vir de outros segredos que só agora experimentava».

Em Os Cadernos de Malte Brigge, Rilke dedica meia página à observação do andar de um transeunte a quem domina um estranho tique, que o obriga a dar um saltinho com meia-rotação do pé a cada três passadas. Era uma criatura dominada pelo que queria ocultar.
Jaime Rocha levanta nas suas novelas uma galeria de personagens cuja característica comum é exactamente a de estarem sempre a inventar cenários para camuflarem os seus tiques e obsessões aos olhos dos outros. Pois o que quer dizer um corpo, senão a inaceitável mediação de um desconhecido que se intromete entre nós e o tempo?
Neste desajuste o tique de cada um funciona como a sua inconfessável forma de desvio, de resistência ao social, no sentido da imediatez daquilo que não domina. Com o risco de a pouco e pouco o seu carácter (o do tique) se ir sobrepondo ao do seu portador, fazendo sobrevir o pânico da segregação social. Esta contradição tece uma rede de gestos impensados, encarnados no irracional que (n)os conduz.
Apurando a sonda, Jaime Rocha mostra esse manto de inconsciência que recobre os comportamentos e governa o quotidiano: «O barulhos dos pés em cima do oleado enervava-o. Só naquele dia compreendeu a razão porque colocara uns chinelos no começo do corredor, que só serviam para atravessar o oleado»; a consciência dos actos é sempre posterior ao seu acontecer, o que instala uma dimensão paralela por onde se vão disseminando as metástases da “loucura normal”.
Sendo que esse manto de insconsciência também é óptico e, estranhamente, se aparenta à função que Walter Benjamin, em A Pequena História da Fotografia (de 1931) atribui à câmara fotográfica: «Se é banal analisar (..) a maneira de andar dos homens, nada se sabe com certeza de seu estar durante a fração de segundo em que estica o passo. Conhecemos em bruto o gesto que fazemos para apanhar um fuzil ou uma colher, mas ignoramos quase todo o jogo que se desenrola realmente entre a mão e o metal, e com mais forte razão ainda devido às alterações introduzidas nesses gestos pelas flutuações de nossos diversos estados de espírito. É nesse terreno que penetra a câmara, com todos os seus recursos auxiliares de imergir e de emergir, seus cortes e isolamentos, suas extensões do campo e suas acelerações, suas ampliações e reduções.»

Presa ao mesmo movimento, mas num impulso contrário, Inês, a falsa-cega que a dado momento o salva de ser internado, cede à tentação (ao tique) de penetrar em casas alheias, não pelo fito de roubar mas à cata de indícios (um extraviado bilhete de cinema, uma conta de supermercado, um bilhete postal) que, somados, possam recensear os movimentos da verdadeira vida dos locatários – vasculhando o que neles secretamente difere da vida que relatam, numa desbordante fantasia.
Esta “loucura”, que coalesce nos mais irrelevantes sinais, é delatada por Jaime Rocha com o sentido de humor de um Tati, um humor em surdina, subtil, que desencadeia na ordem do trivial a sua inescapável natureza cómica: «Quando o médico saiu é que Victor verificou que era coxo. Ninguém mais dera por isso. A todos pareceu que ele saltava por cima do gato.»; «Vítor ouviu a rapariga com atenção, tinha uns grandes olhos castanhos, um sorriso cândido, com um dente molar dourado que se destacava do resto da dentadura. Reparou que ela ostentava um broche com o feitio de um pão caseiro, que devia ser o emblema da editora».

Outro aspecto interessante nos livros de Jaime Rocha é que os comportamentos humanos, apesar de descritos com uma minúcia estonteante, não nascem propriamente de uma determinação causal -  «A cama já não existe, havia-se partido numa manhã de domingo em que Vítor se sentira mal e vomitara. Adelaide lembra-se desse dia porque um dos filhos tinha atirado um vaso ao chão e uns minutos depois a vizinha tocara à porta a pedir açucar» -, tornando-se imprevisíveis ou mais propensos a adoptar a plasticidade que reveste o universo exterior. Tanto A Loucura Branca como Os Dias de Um Excursionista estão impregnados por uma compulsiva lógica de transformação que no entanto leva as personagens a confrontar a força do aleatório. Daí o horror.
Começa pela súbita irrealidade do olhar e do corpo, que se tornam estranhos (cf. o segundo excerto citado acima) e acaba na fusão de objectos exteriores no corpo: um misterioso triângulo de vidro que se encastra na carne de Vítor e lhe provoca uma mutação do seu aparelho perceptivo.
É fácil aludirmos a Kafka quando lemos A Loucura Branca mas parece-me mais produtivo remontar a Dante, autor para quem o homem necessitava de uma metamorfose para adquirir noutro mundo uma forma definitiva e eterna.
Para Dante o homem era larva neste mundo, crisálida no outro (sobretudo no Purgatório) e ser completo ou imago no Paraíso. O Inferno correspondia à maldição de estarmos confinados numa identidade, numa memória, reféns de um corpo perecedouro e tão maldito como imutável.
De forma semelhante, em Jaime Rocha o Inferno não está nos outros, como garantia Sartre, mas no pequeno, compulsivo e irrefragável tique que prende cada um à imobilidade que lhe atrasa o ser mutável e resiste ao fluente devir outro. Porque – e sublinha-se aqui o paradoxo infernal – se por um lado o nosso tique homologa uma forma de resistência privada à alienação no colectivo, por outro sinaliza a nossa impotência para superar as nossas propensões identitárias, o estado larvar.
Diga-se entretanto que, por incrível que nos pareça, o sistema do medievo Dante era afinal muito mais aliciante que o grotesco aparato com que o mercado de massas nos impinge um turismo das emoções. 
O conceito dantesco do homem como ser necessitado de uma metamorfose para adquirir no outro mundo uma forma definitiva e eterna, dava entretanto, neste mundo, uma plasticidade transitiva à espécie humana.
 Isto clarifica que todo o poema de Dante seja habitado pela ideia de transformação. Nascia-se com uma forma para devirmos outra, como as crisálidas devém borboletas. O objectivo estava à nossa frente, e tudo podia ainda acontecer. O ladrão Vanni Fucci, por exemplo, ao ser picado por uma serpente, converteu-se num monte de cinza; os luxuriosos tornaram-se estorninhos; os gulosos uivavam como cães; os suicidas em árvores; mas estes eram exemplos dados por Dante, cabia ao leitor agir no sentido de mudar o seu comportamento e determinar aí o seu futuro avatar – o que releva é que a vida se desdobrava numa crença na capacidade de transformação. 
Com a sociedade de massas, pelo contrário, somos conformados na origem, formatados por estereótipos que nos condicionam para determinados gostos e respostas, sendo-nos imprimida um tipo de personalidade consumista. Nela, o que importa não é aquilo em que nos transformamos mas o quanto podemos ser conformados.
Para Jaime Rocha só a loucura, electrizada pelo seu naipe de significantes flutuantes, pode então operar a passagem para outra modalidade de ser, acelerar os processos. Repita-se Goethe: «Não se morre. Apodrece-se em certos lugares, amadurece-se noutros». O ser que evanesce num lugar não encalha no Nada. O Nada deixa de ser negativo para sinalizar unicamente um intervalo entre dois traços, o momento em que uma sincronia entre a realidade exterior e a realidade interior gera uma nova possibilidade, um novo lugar para o despontar do rosto errante.
E é branca essa loucura porque, nesse instante em que o novo se entroniza, abolindo todas as anteriores categorias e dispositivos da percepção, a sua virtualidade abarca o espectro inteiro.
Vítor, que ao princípio observa um caranguejo agonizante na praia, escolhe no fim penetrar no mar, como quem despe uma carapaça exterior (esse esqueleto de crustáceo) para se fundir numa totalidade que o dilata e engolfa. Ali, só uma variável o separa do crustáceo, como só uma débil intensidade da conciência (o quisto da memória) destrinçava o seu corpo do triângulo que afinal lhe inventou um «dentro» e a decisão de uma ocasião. Crisálida que o vento liberta.
E se isso é um bem ou um mal esta água transparente que (na banheira) me cobre e se infiltra na intimidade do meu corpo, restabelecendo-me um sentido ao aberto da vigília, nada me diz. Mas sinto - ironia – que o corpo se apega ainda à caução do medo, às rochas. Levanto-me, sento-me à mesa, retomo o posfácio: «a escrita de Jaime Rocha é a de quem anda pelas ruas com a cabeça submersa nos rumores do mundo, nas suas dimensões dúplices, ocultas, cifradas, afastando da sua frente, com gestos de nadador, as cortinas da aparência. É uma escrita de quem dá conta de que os objectos nos lêem, etc... »


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