segunda-feira, 5 de maio de 2014

LEVAR O POEMA PELA TRELA?

quadro de t`apies

O texto de Luís Carlos Patraquim, na apresentação de Bagagem Nao Reclamada, no I. Camões, Maputo, 29 Abril 2014:

 

                                                                   Já que o corpo te rouba os últimos suspiros

                                                Recusa levar o poema pela trela.

                                                A Cabrita, Bagagem não Reclamada

 

Esta citação de António Cabrita vem em a Fotogenia de Sísifo, que integra o livro que nos traz aqui, Bagagem não Reclamada. Aliás, cada uma das partes que o compõem, e são várias, ele há Elegias, A Minha Noite com Caliban, Quatro Bardamerdas e uma Homenagem, O Poema em Quarentena, Releitura de Íon – digamos que as sequências maiores – davam, se o poeta quisesse, livros outros.

António Cabritar resolveu, ao contrário de Pessoa que teve sempre a maior das dificuldades em arrumar a mala, juntar a trouxa, dar-lhe o nó. No prefácio que escreve para esta Bagagem não Reclamada, o autor desculpa-se com o soneto, essa forma clássica, codificada, esotérica para alguns. É caso para dizer que, neste particular, é melhor o soneto do que a emenda. Já que estamos entre amigos e começou a ventania da estação seca, com muita poeira a infiltrar-se nas palavras (elas têm brônquios, linfa, sangue e, por causo disso, tossem, cancerizam-se, as coitadas, ou desregram-se em menstruações e hemorragias) é curioso este despautério prefacial. Comparável, só Jorge de Sena, que se escusava a delegar a terceiros o que achava dever escrever sobre os seus livros.

Diz-nos o António – mas o poeta é um fingidor – que andava a organizar uma antologia e que se deu conta do soneto. Era “um veio subterrâneo” na sua “obra poética”. As palavras são dele e a tal antologia iria chamar-se Enumeração de Todos os Passos em Falso. De Petrarca a Sá de Miranda, de Shakespeare a Camões e Bocage e Antero de Quental aos franceses do alexandrino verso, o soneto é o cabo dos trabalhos. Diz o poeta que levou trinta anos a socar o saco dos sonetos, a chegar a eles. Acrescento que, nesse longo entretanto, as itinerâncias do autor e do sujeito poético foram intensas.

Do “Reino Cadaveroso”, como designou Ribeiro Sanches ao seu Portugal de setecentos e Sena virá a glosar na centúria que passou, à Pérola do Índico , onde o cidadão António Cabrita chegou para continuar a subir espaldares – Pearl, em inglês, é nome  de girls sem orquídeas sangrentas -a bagagem deste viajante, ao contrário de Saramago, que a reclamou sempre, dá-nos, afinal, a tal enumeração de todos os passos em falso que o autor optara por não publicar.

O que tenciono dizer com isto? Se lhe conhecesse a saliência das omoplatas dava-lhe já, na devida proporção, uns escaldaços de admiração e de amizade. Mas deixo isso para as bodegas onde nos perdemos à tona da espuma convulsionada.

`A maneira de Apollinaire, sem ostentação, António Cabrita traz a cabeça trepanada. A viagem é  longa, Ítaca longe, chegar lá não é uma solução e os Cantos da Inocência e as visões de William Blake, prefigurando um romantismo que chegará mais tarde, já não salvam. Nada salva. A pós-modernidade é a rosa estilhaçada. A épica acabou. O Anjo da História, de Walter Benjamin, é um Janus bifronte. Como disse alguém, Cabrita sabe que a poesia ensina a cair. Como não sou pretensioso nem quero cair em clichés, limito-me, por freudiano lapso, a só repetir a pergunta de Hölderlin, sobre a poesia e para que serve ela em tempos de indigência. O sublime louco hínico de Tünbingen, o poeta da mais alta torre, podia formulá-la. Mas não são os tempos todos de indigência?

Como António Cabtita sabe disso! E como nos ludibria. Tudo porque ele conhece a classificação de Platão sobre os homens: a de que há os vivos, os mortos e os que andam no mar. O autor de Arte Negra anda no mar. E convoca todas as vozes, a dos vivos e dos mortos e recombina as palavras para que o corpo inclinado e sanguíneo e belo e frágil encontre a sua casa do Ser. Sísifo e Prometeu, Ulisses e terrestre caçador de leões, colecionador de borboletas . Por esse voo táctil que insinua a Transcendência e as armadilhas de Deus ou dos deuses, lá anda ele, não voyeur nem turista, em intermediações onde mergulha até aos abysmos, mapeando os caminhos estonteando-se com deduções, abduções, elocuções, metaforizações, às vezes escatologias, espiralações, teorizações e ejaculações. Querem saber o que é a poesia? Não queiram. Lorca sentia, criança apavorada, relâmpago negro, como lapidarmente escreveu Pablo Neruda, a aproximação do duende. O nosso Sebastião Alba falava de doença Nerval arrastava a lagosta. Porque o poema é a perturbação da evidência, como a metáfora, socorrendo-me de Paul Ricouer, é a perturbação do nome. Mais do que enunciar o poema anuncia, intui, é o eco do que a sistematização filosófica vai outrar em modalizações da Língua e da Linguagem.

Julgo não me enganar se disser que António Cabrita é um poeta trágico. Não me refiro ao sentido grego. Não se iludam com a ironia, a fabulosa capacidade do riso, da aparente autocomiseração ou disjunção surrealizante, a recombinação das formas poéticas, os experimentalismos às vezes descarados, a deliberada e pouco convencionalmente enunciação a raiar o escárnio ou a raiva e o riso. Porque, como Cézanne, e trata-se de uma frase do pintor de que gosto, ela, a vida, apavora. Num dos diálogos do filme de Bergman, Lágrimas e Suspiros, alguém confidencia de que somos todos aleijados emocionais. O cometimento poético é esta radicalidade, rebelando-se como pode, contra as estruturas paradigmáticas, morfo-sintácticas, cumulativas e sequenciais da linguagem humana.

Em viagem, sempre, a iniciática, dialogando com o mundo, invocando, evocando todas as vozes, a poesia de António Cabrita tem, nos seus pontos luminosos, como dizia Ezra Pound, essa capacidade de nos fazer mudar a respiração. A expressão é de Paul Celan. Ela conhece o silêncio e o seu eco. Não citei, deliberadamente, nenhum dos poemas desta bagagem não reclamada. Lerei, se me permitirem, dois ou três pois que tudo é dele, mesmo que o seu desprendimento pudesse sugerir uma espécie de austeridade de elocução.

Sobre o resto, que é muito e diz respeito ao homem do mundo António Cabrita, não posso deixar de o saudar pelo valioso e intensíssimo trabalho que vem desenvolvendo há tanto tempo em Moçambique. Da escola ao ensaísmo, dos jornais ao cinema, Cabrita inscreve-se no nervoso tecido cultural moçambicano. Não há o Outro, mas o Outro em nós. Só quem opera reducionismos identitários se atomiza nos seus labirintos de solidão.

 

 

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