sábado, 8 de junho de 2013

MON AMI AMADEUS


Ganhou o Amadeu Baptista mais um prémio.
O Amadeu é o meu brutamontes. Uma vez tinha-o deixado na sexta-feira ao almoço deprimido como o raio e na terça telefonou-me absolutamente excitado. Lá fui ter com ele ao António e mandámos vir rojões e um jarro de vinho. E ele saca um manuscrito da mala e passa-mo: um poema de 90 páginas, escrito de sexta para segunda-feira.
Isto irrita muita gente.
De outra vez, já eu estava em Moçambique e fui a Portugal e visitei-o em Viseu. E ele diz-me, comecei um ciclo de poemas em torno de quadros do século XX. Preciso que me vejas isso. E eu disse-lhe, tá bem, manda-me depois por mail. E ele assim fez-me e íamos dialogando sobre os poemas, e em três meses fez quinhentos. Quinhentos, ponto.
Isto faz-me lembrar uma história do dramaturgo Dias Gomes, que era também um bisonte de concentração. Uma empresária de teatro encomenda-lhe uma peça de teatro numa sexta-feira. Sábado, ele levanta-se às 6h da manhã e começa a trabalhar, domingo dá a peça por encerrada. Na segunda telefona a alguns amigos dramaturgos: “pá, quanto tempo é que levas a escrever uma peça de teatro, dois meses, três, seis? Tive uma encomenda na sexta e não posso entregar já a coisa senão a senhora pensa que lhe estou a dar material refugado que tinha na gaveta…”
O Amadeu ganhou mais um prémio, na Galiza.
Há quem o deteste por isso. Por ganhar prémios. Todas as gerações têm um certo preconceito em relação a poetas que ganhem prémios. Eu também tinha. Na minha geração, a nossa besta de estimação era o José Jorge Letria.
Todos nós puros, ele impuro, porque fazia da escrita comércio – era assim que pensávamos. Não tenho a menor ideia do quanto éramos injustos ou não porque raramente o li, e sentir-me-ia um cavalo se fizesse um juízo sobre a poesia que um certo preconceito me impediu de ler. Mas que o Jorge sofreu de ostracismo, é evidente.
Havia muita arrogância camuflada nesta atitude.
Hoje sei que era um preconceito idiota e um dia destes pegarei num livro do Jorge, simplesmente para o ler como é, sem sobrepor de antemão juízos. Pode ser mau, pode ser bom, não sei.
Com a mesma soberba, várias vezes tendo manuscritos inéditos, e apesar de andar teso como um cão, desdenhei participar em algum concurso.
Já participei em alguns, empurrado por desesperadas razões económicas. É o único factor que me empurra a participar, quando participo. Felizmente, quando precisava mesmo, ganhei.
Embora, enfim, tivesse preferido que me convidassem para escrever um livro erótico – sempre me divertia. Aliás já o propus, uma história erótico-pornográfica escrita em alexandrinos, por ser essa a medida mais próxima do pénis, mas o editor não se decidiu a desembrulhar o adiantamento.
Evito falar dos prémios que ganhei, para mim não têm importância alguma e não avalio o que escrevo à lupa de nenhum prémio, mas do ponto de vista do desafogo económico em alturas de aperto foram vitais.
Uma vez ganhei o prémio Cesário Verde (com um livro, soube depois, que um dos elementos do júri considerou herético) e a concurso estava o então muito jovem José Luís Tavares. Mais tarde ele procurou-me para me dizer que também tinha um livro a concurso mas que o meu era muito melhor. Gente de qualidade é assim que procede, e o José Luis Tavares viria a revelar-se um poeta muito sólido, hoje absolutamente firmado.
Também ele fora a concurso porque precisava, na altura vivia num bairro de lata. Tenho a certeza que muitos achariam preferível que ele continuasse a viver num bairro de lata do que que vê-lo como vencedor de um concurso que lhe aliviasse a precaridade.   
Entretanto, o tipo que me instigou a concorrer, contra ele, porque “tinha um livro imbatível”, deixou de me falar, assim que foi anunciado que perdera. Foram dois os motivos porque concorri, estava com 4000 euros de dívidas e tinha aquele paspalho à minha frente que todos os dias me telefonava para me dissuadir de participar, visto que ele ia participar. Nem sequer pensava nisso, e achava a insistência dele irritante, mas no dia do fecho do concurso, depois dele voltar a espicaçar-me ao telefone (nunca percebi donde lhe vinha a sanha daquela competição comigo) à última hora enviei os manuscritos da estação dos Restauradores (eram 17h45) e papei-lhe o prémio. Parece que o livro dele não era tão herético como o meu. Ainda lhe telefonei a convidá-lo para jantar mas ele não me atendeu mais o telefone, cortou comigo, pelo mesmos insondáveis motivos porque se tinha tornado meu amigo.
Julgar um livro por ter tido ou não um prémio é absolutamente idiota. Ou é um preconceito de classe. Quem não necessita dos direitos de autor para ter alguma margem de equilíbrio que lhe permita continuar a escrever sem estrangulamento faz boca fina.
Não entendo porque podiam viver os Dickens e Camilo de folhetins e um poeta hoje não pode concorrer a prémios que lhe tragam maior conforto à sua frugalidade. Se a grande parte dos editores não paga os direitos (e às vezes não pode mesmo, sobretudo as pequenas e médias editoras) porque não há-de o escritor tentar safar-se, sobretudo se não tem outros meios de provento?
Foi assim que se safou o Bolano. E fez muito bem. O que lhe salvaguardou o tempo que necessitava para escrever algumas obras assombrosas. Que interessa agora os prémios menores que foram necessários para isso?
Outra coisa é escrever para os prémios.
Nunca foi o caso. Nem o do Amadeu, este meu brutamontes que quando ri silencia os carrilhões de Mafra, que simplesmente não consegue deixar de escrever.
Um dia, o Amadeu ficou desempregado de um dia para o outro e eu, que lhe conhecia a produção caudalosa e a muita qualidade de algumas das suas produções, fui um dos que mais o incitei a tentar viver da escrita. Disse-lhe, meu caro ficas proibido de buscar outras servidões … chega de patrões!
E até o quis empurrar para a prosa, passo que ele tem hesitado em dar. Não me arrependo nada. E ele hoje ainda tem as gavetas da secretária repleta de inéditos. Se há um prémio e ele necessita de assegurar sustento para os meses que se seguirão ele pega num manuscrito qualquer que escreveu há anos e envia-o. Mas não tem mais patrões.
O ano passado fui nomeado semifinalista do Prémio Telecom, no Brasil. Como o Gastão Cruz ou o João Rasteiro ou o Hugo-Mãe. Foi o editor que me enviei o livro, ele sabia que eu em direitos receberia pouco e então pensou, eu gosto do livro, pode ser… e enviou. Eu agradeci-lhe o gesto porque o meu carro está podre.
Mas desse prémio, ninguém desdenha porque se é nomeado para ele. Contudo, por isso mesmo, por à cabeça se conhecer os nomes dos candidatos pode ser mais permeável a influências e a uma certa inércia aurática que pode desvirtuar a verdade quanto ao texto.
Nos prémios mais periféricos, de que nunca se fala, há uma clareza maior nos critérios: só vale o que o texto vale, em anonimato. O manuscrito é lido pelo que é e não por estar associado a este ou aquele nome. Podem ocorrer evidentemente enormidades, basta lembrar o caso de Pessoa com a Mensagem, mas na maior parte dos casos ganha mesmo o melhor manuscrito em presença.
O Amadeu é imensamente prolixo, tem coisas muito boas e outras de que gosto menos, como é natural, mas há nele um labor operário e uma energia que devem ser respeitados e que são, nele, signos de dignidade.   
Entre a nova geração conheço também quem não o leia também por ser "vaidoso".
As pessoas confundem o ser vaidoso com o ser-se orgulhoso do que se fez e se construiu, contra todas as condições e possibilidades.
É espantoso que o Octavio Paz o tenha considerado suficientemente bom para lhe dar o Prémio Internacional que a sua revista dava todos os anos, mas que em Portugal seja menosprezado por alguns.
O Amadeu subiu a pulso, dos becos mais tenebrosos, da condição mais precária; dum meio onde não se lia e era proibitivo cultivar-se. Não é isso que faz dele um bom poeta, isso seria apenas um dado sociológico interessante. O que faz dele um “caso” é que quando acerta é muito bom e o fôlego absolutamente atordoador que ele tem – que para muitos, inexplicavelmente, é um defeito.
Que ele manifeste orgulho disso - é o seu direito. Algo que só entende quem, como eu e ele, veio do nada, sem apelidos, heranças ou truques.
Ele bebe pouco, não se droga, não tem igrejas – a sua religião sem mestre é a poesia, onde insiste e insiste sentado à secretária horas a fio, diariamente.
Quem trabalha menos do que ele, é evidente que torce o nariz.


9 comentários:

  1. Vocês são papa-prémios, não são poetas.

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  2. Respostas
    1. Francamente já não sei o que escrevi, porque quando o faço é-o de uma golfada, mas sempre me guiando pelas exigências que me imponho a mim própria como uma direcção de vida: delicadeza, frontalidade, justiça e abertura. Por isso, não posso compreender a razão por que dois comentários meus foram removidos pelo António Cabrita! Fiquei deveras intrigada, tanto mais que os não comentou, não dando assim oportunidade de eu conseguir perceber o seu repúdio e permitindo explicar-me.
      Não acho uma atitude de um intelectual com a lisura que supunha que teria!
      Na verdade e como atrás disse, já me não recordo do que escrevi, mas uma coisa estou certa: nada que pudesse ofender fosse quem fosse, porque esse nunca foi nem é o meu modo de actuar, por muito reivindicativa que seja! Privilegio sempre a palavra correcta mesmo para denunciar coisas incorrectas, para não entrar na mesma mente suja de quem as pratica!
      Espanta-me que não tenha apagado o comentário do anónimo cobarde, que vos classificou da pior maneira possível e o tenha feito a mim.
      Mas o espaço é seu e pode fazer o que bem lhe der na real gana! Só que tirarei daí as minhas ilações e jamais voltarei a publicar no seu Blogger!
      De comum, temos apenas Moçambique!
      Felicidades para o Futuro!

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    2. Maria Mesquita
      não fazia a menor ideia que havia apagado qualquer mensagem, as suas ou de outrem. para mim é um mistério o desaparecimento das mesmas, nunca apago nada, e inda por cima mensagens simpáticas - seria uma esquizofrenia deixar as da besta reluzente que anonimamente me (nos) ataca e apagar as suas. eu simplesmente nunca apago mensagens nenhumas, mesmo as eu me atacam a cobro do anonimato porque acho que é um direito da besta manifestar-se. nunca o fiz e nunca o farei, repito, mas como isto é um domínio meu, peço-lhe desculpa, jurando-lhe embora que não tenho a menor consciência de o ter feito, nem tal teria logica, ainda que lá diga que as apaguei. não percebo, mas peço-lhe que não tire daí ilações nenhumas, porque não tem razões pra isso terei todo o prazer de acolher as suas opiniões, mesmo que contrárias as minhas. e tudo, e espero eu leia isto. com simpatia, António cabrita

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  3. Por exemplo, aquele senhor anónimo, porque não dá a cara para postar a sua opinião, com uma argumentação válida?! Ser-se cobarde ao ponto de não assumir a sua posição, com justificações do seu ponto de vista, é de uma enorme baixeza! Corresponde ao "Porque sim!" dos que nada têm para dizer!...

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  4. Maria Mesquita
    acabei de lhe responder e minha resposta também desapareceu. e também não sei porquê. eu não apaguei quaisquer mensagens suas e não tinha sentido tê-lo feito e deixar os comentários da besta reluzente. deve ser o efeito de qualquer inabilidade técnica minha e nada mais. por isso, peço-lhe, que não tire ilações, eu não corto a palavra a ninguém, mesmo que me chame nomes ou discorde de mim. quanto mais sendo ao contrário. peço-lhe desculpa. mas não sei o que se passou. António Cabrita

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  5. Li a sua justificação e muito apreciei o modo correcto e delicado como o fez! Daí o achar que devo vir, resumidamente, dizer-lhe o que o seu texto me suscitou! Antes de mais dou-lhe os parabéns pelo modo tão claro, frontal e sem pruridos com que falou na poesia do Amadeu Baptista! Definiu o Amadeu com toda a nitidez e a sua poesia, que ele produz como um "operário" a tempo inteiro no seu mister, fê-lo com grande perspicácia e conhecimento! Depois teceu referências a uma fatia da intelectualidade portuguesa que lhe não sabe reconhecer o mérito e as invejas que geram os prémios atribuídos a qualquer um de vós! A poesia do Amadeu é muito "sui-generis", exige cultura, atenção, não é dada ao facilitismo, mas francamente tem muita qualidade e o futuro irá reconhecer-lhe o valor, mas como sempre no nosso País com um atraso inconcebível. Todo o seu texto, António Cabrita, é de uma acutilância, perspicácia e frontalidade que me merecem o maior respeito.
    Quem, como vós, consegue levantar-se da valeta sem horizontes, e surgir à luz da cultura com tamanha força e rutilância, é digno de ser homenageado pela sua Poesia e pelos factores que ultrapassaram para conseguir guindar-se tão alto.
    Aquele ser que comentou lá em cima, sem cara e sem nome, é muito capaz de ser um dos tais poetinhas de quadras de S.João!...
    Só uma coisa gostaria um dia de conhecer: o riso do seu "brutamontes Amadeu" que, como afirma, silencia os carrilhões de Mafra!...
    Francamente gostei muito do seu texto!
    Deixo-lhe um abraço amigo.

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