sábado, 30 de junho de 2018

Hans Hartung


TRÊS CRISTAIS MANCHADOS

29/06/2016
Oscar Wilde tinha muitos tiques de rapaz engenhoso e por isso alcançam tanto êxito os seus aforismos: vestem sempre qualquer ocasião, mesmo que sirvam propósitos diferentes. Mas às  tantas acertava, como aqui: «É essa a missão da verdadeira arte - obrigar-nos a fazer uma pausa e a olhar para determinada coisa uma segunda vez
Fazer retomar ou tardar-nos o olhar sobre algo até que a pedra fique pedríssima, como se diz num verso de Herberto, é mesmo uma condição da arte. Sendo o contrário da crença modernista de que tudo se dissolve no ar: também acontece mas o que importa adensa e a cada leitura acrescenta-se uma dobra. O próprio entusiasmo esteriliza se não se adensa e molda a obra. E o entusiasmo antecipa amiúde a paixão: um olhar que se torna lento e densificado pela emoção.

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Bom, estes tweets que apanhei na Nuvem e que agora divulgo, nao me parecem exactamente dele, ou podem se-lo se à figura somarmos a inteligencia:  

OS TWEETS DE DONALD TRUMP

É difícil não twittar todos os dias
Quando se é jurassic como o twist.
Sou um homem da minha geração
Com casamentos e escapadelas
E nao é minha culpa se a vida é 
Uma álgida genitália russa 
Tremendamente escarpada.

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Como dizia o meu mestre Duchamp
Num número da Reader’s Digest
Quanto ao valor da arte actual
Não gosto de entupir as sanitas.
Por isso só protejo os negócios.

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Não há baleias em perigo de extinção,
O que há é cetáceos desenhados a lápis.
Se o ozono já está esfarrapado
sobre Washington Square?
Propos-me a Ivanka que respondesse:
Perguntem ao Henry James,
O que ele disser sobre esta praça
Para mim é exacto.

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Se o clima muda muito
use o nosso ar condicionado
- a América dá-lhe um ano de garantia

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Estou para a política como o diabetes para o açúcar
E introduzi temas novos na análise política
O macho alfa, o fake news, o America first,
Desde que estão comigo que
Todos os caminhos vão dar à Blonde.

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Não sei de que se queixam
As peles dos casacos de Melania 
afinal são tão autênticas
como idênticas.
Aqui nao há fakes.

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Conheci a minha mulher num cruzeiro
Que um tal Wallace quis denegrir
Mas onde vimos um pinguim 
a lavar os dentes.

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O Kim tinha as unhas arranjadas.
Um homem que as arranja assim
Não faz pactos com o Diabo.
É um democrata, embora de uma amnésia paliativa.



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Parecia uma múmia em gelatina
Mas com a cabeleira de Monsieur Verdoux
(o único filme de Chaplin que tolero)
Mas tinha o aperto de mão de um toureiro
Aquele presidente de… Andorra…
Não era de Andorra? O do Ronaldo, o boxeador…



30/06/2018 
Bom, e primeiro que tudo há que ser grato. Grato ao Nuno Moura, que se propôs reeditar a minha poesia invisível. Em seis volumes de que saiu agora o primeiro, e com seis livros inéditos.
Tem graça que só quando o Henrique Fialho se referiu ao facto dos livros da Douda Correria não terem código de barras é que o notei.
E gosto disso, de uma editora de poesia que se dirige apenas aqueles que querem mesmo ler o livro e se dão ao trabalho de o procurar.
É louco o Nuno porque tem fé. Mas creio igualmente que só as coisas impossíveis é que podem acontecer, as demais descuram-se a meio do processo porque um verão chuvoso fez descrer o curso das imagens.
Que ele não tenha prejuízo, é o único que peço.
Três poemas do livro de que o Henrique Fialho fez uma generosa recensão, aqui: https://universosdesfeitos-insonia.blogspot.com/2018/06/oitenta-flechas-para-atrair-cotovia.html

O QUE SOBROU AO FIM DO MUNDO

1

Assim que me livrei, como lastro, dos brilhos,
precipitou-se sobre mim, anelada, fulgurante,
a noite.  Sobejam ainda pequenas vaidades

e um drama insolúvel para um lerdo animal de carga:
não tenho a memória na ponta da língua.
Daí que, quando, na senda do que respiro,

a imaginação me afunda no seu lençol
freático, tenha que me certificar se não nado
como um coentro, pois a morte é a granel,

não escolhe os filhos. Eis o farnel de prudências
que retive. Do mais me desfiz: sinais de identidade,
amores aparatosos, palavras que fulgem como isqueiros.

O importante na mão é a sua leveza, abrir-se
para dar, abrir-se para receber. É o que o pulso
e o ninho têm em comum: o vento.

E agora, mal fecho as pálpebras, uma infância
tropeça nas escadas, uma galinhola, em pleno voo,
tomba de joelhos, um prego finalmente respira fundo.

É uma vigília que não cessa enquanto
nos meus pulsos a fadiga de ser
prodigaliza a sede de ser outro

e a fome de outra pele descarrila a minha.


2
(uma variante de Auden)

Não nos sobrava vida para morrer
e aí tudo recomeçou: houve que trepar
como os salmões até à fonte
aonde a gema da inocência se contorce.

Não nos sobrava vida para morrer,
já póstumos e sem vintém, de alma
surrada e crivada de desertos
a quem não alivia o ribombar das chuvas ácidas.

Há lá gáudio, Auden, numa morte assim!
Que consolo colhe o ceifador que não agoira
no horizonte a espiga ávida do porvir?

Nada nos sobrava e morrer era tão doce
que repugnava a sua mais leve menção.
Sim, Auden, a derrocada dos castelos dá flor!


3
Como um nó que a noite refaz na árvore
 que se abateu, o bico do corvo de colarinho
revolve o esterco nos orifícios, tubulações 

e palmares internos do adormecido
— aberto o seu flanco pelo bisturi
do sonho, onde em borbotões

se galvaniza a desembocadura de um rio.
Vem outro corvo e regurgita
sobre as feridas cristais de rocha.

Acorda de um pulo, o coração represo
como o polegar malhado por martelo.
Calafrio. A sua vida antiga está por um fio.

Vai à janela, em vez do renque de tílias
vê os grampos duma cicatriz,
o céu como a capital da dor.

A mulher acena-lhe da cama,
os seus tenros ramos enovelados pelo remoinho
do sono. A sua voz é uma sombra,

«vem, foi só um pesadelo», abstraída
ainda dos detalhes — da sua unha cónica
no mindinho, das rémiges pretas

que lhe eriçam selvaticamente as omoplatas

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