quinta-feira, 21 de abril de 2016

AS AMORÁVEIS CAUTELAS, O REGRESSO DE OZO

                                                                  Roberto Matta

Escreveu-me Ozo, o meu amigo mais herético. Está em Hong Kong. Enviou-me um novo poema, que corre em baixo


AS AMORÁVEIS CAUTELAS

1

Pela invasão capilar
instalei-me nos versos.
Sobre
sob
a derme
de um deus careca
instalei-me nos versos.


2

O coração disparado
pisoteia-lhe
a flor.

Merda para as estrelas
perfumadas do Mallarmé
pensa, A mim
é o coração disparado
quem digita inteiro
o som
da morte.


3

Amplio-me.
Sou a última gota
no teu corpo
de vinho.
Aí se turva
a linha,
na acidulada rosácea´
do teu ânus
inflecte o horizonte
para dentro.
E aí nada se deslassa,
hélas!


4

Olhando de viés
despejei-lhe o chumbo
nas tripas.
Não custa abandonar
cidades
que só têm meandros
e perfídias.
A caixa estava quase
vazia,
entre mim e a vida
não há uma ganza
há uma gaze.


5

Já não sabe estar só.
Em estando sozinho
sente-se em ressaca.


6

Pode uma vida agastar-se
sem reboco,
os fios de electricidade
bamboleantes
ao vento;
o tijolo descontínuo,
pardo?

A delida cinza
das gaivotas
satura o ar.

A boca seca,
assoreada.


7

Não faças como os antigos,
não te assoes
ao poema.
Não lhe imponhas a constipação
de Pessoa, nem a tua,
tácita.

O único drama
com a metafísica
é que não se coaduna
com a exaltação da raposa
quando trincha
a perdiz.
Não existe o azul,
simplesmente
o para lá
dos cipestres.



8

Dar à identidade
uma pele de galinha?
Há que recuar.

A minha mãe pariu-me
com táximetro.
Juro não cair noutra.


9

Que as estrelas que latejam
no meu crânio
lá se mantenham depois da enxaqueca!

És ambicioso, pá!


10 (releitura de Lispector)

E a Clarice
sem mover raciocínios
nem guindastes
tirava um macaquito do nariz
e pensava distraidamente
no que um querubim
tinha segredado
ao S.Pedro:
a sua tremenda saudadade
de morangos.


11

Rasuras, reenxertos:
extravagando.

Cidades em divisas:
uma folha de jornal
que o vento desdobra
aos baldões.

Desafeita glande
Adormecida.


12

Numa amorável cautela
saiu-me o verso de um poeta sueco
dos mais caros:
“Nunca houve
degelos

Iníquos!”

2 comentários:

  1. vim pra dizer que não sei o que dizer! no facebook não me respondes se os gatinhos saíram a cara da máquina... então venho ler poemas do mais! <3 beijo, Cabra!

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