sexta-feira, 5 de junho de 2015

UM DIÁRIO AFRICANO / 2

                                                       cerâmica de António Quadros

6/06/2015
Estamos sempre interessados em preservar qualquer coisa. Como esta imagem do gato na cristaleira. Ondulante no seu hieratismo, os olhos varridos pelo sono.
Para quê?
Noite, já não ubérrima e imensa, pois lá fora o tráfego não cessa e a intervalos grupos de jovens berram, num relance. Um cano gargareja, sacos de lixo caem na conduta, alguém desce as escadas apressado às quatro da manhã, talvez a mulher chupada e sinistra do décimo primeiro andar. Já ninguém visita o interior do silêncio.
Sozinho na sala, nu à mesa, martelo nas teclas, procuro um armistício que dure.
Tento contrariar a “fenda aberta”, diria o Fitzgerald.



Há dois anos pediram-me um livro sobre Moçambique. Que não mostrasse as lombrigas no sifão. Solar, festivo. As pessoas ganham fortunas com a solidão dos outros.
Agora, de Lisboa pedem-me poemas. Dois. Para decorar um jarro à beira-mar. Nunca nos precavemos o suficiente para a possibilidade da trivialidade se alastrar ao fogo que nos consumia. E agora? As algibeiras tão pesadas de cotão.



Tarefas para os próximos dois meses: preparar um curso sobre Adorno; fazer leituras para o livro sobre Manuel Gonçalves, o homem que inventou o Museu das Pescas, em Maputo; acabar o livro de entrevistas com Calane da Silva; ler cinco livros sobre Madrid, para poder prosseguir o romance; tentar enxotar este isolamento a que acostou a filoxera.



Leio deliciado, no prefácio aos Comentários reales de Los Incas, de Inca Garcilaso de La Vega, que o autor teve má sorte com a edição dos mesmos, feita em Lisboa, em 1609, «onde os tipógrafos portugueses pregaram o livro de erratas».
Estão os Comentários dedicados a todos os “mal nascidos”, aos “párias deste mundo”. O que me convém. Trata-se, e era esta a intenção de Garcilaso, de “hacer de ese ser a medio crear que es el mestizo una obra más elevada”.



Não posso esquecer-me de escrever ao Laza, o cineasta de Madagáscar, para que oriente em Tananarive a Teresa Falcão, a mulher do Valério, que viajou ontem de Lisboa para visitar a ilha dos lémures.
Tananarive é mais um espantoso plantio de europeus em terra alheia, um fantasma  que cavalga colinas com mansões de tijolo pequenino e vermelho e varandas de ferro forjado. Não pode passar de hoje.
Foi das coisas bonitas que fiz desde que cheguei a África, esse curso de guionismo que orientei em Tananarive. Tinha de dar o curso em francês, que não falava há quinze anos. Preparei-me o mais que pude, mas tive sorte, o francês dos malgaxes era tão mau como o meu (igual ao português do grosso dos moçambicanos em Moçambique) e isso criou uma empatia que tornou o meu curso um caso de sucesso de comunicação.
E o doido do alemão que andava há vinte anos a reunir peças para abrir o primeiro Museu de Piratas do Índico, já terá inaugurado o Museu?

Nas livrarias de Tananarive só havia livros sobre religiões, de auto-ajuda, ou sobre Maçonaria. Foi aí que encontrei o Olivier Doignon e o seu livro formidável La Lumière, uma pérola no meio de tanto mexilhão sensaboroso. Mas há uma magnífica feira do livro em segunda mão, diária, no centro da cidade. Tenho de pedir à Teresa para ver se aí me cata algum livro do Alain Jouffroy – em Tananarive todos os milagres são possíveis. 



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