quinta-feira, 2 de outubro de 2014

CONSTRUÇÕES PORTUÁRIAS 2/ Traduzido da Noite, de Jean-Joseph Rabearivelo

                                                                jean-joseph rabearivelo
E o dia nasceu aziago e o computador não despertou com ele, avariado, lixando-me os planos para a semana, entre os quais postar os diversos materiais que vinha a preparar para uma simulação de um segundo número da minha revista Construções Portuárias.


Tinha traduzido Gonzalo Rojas e Charles Olson, além de Rabearivelo, que felizmente vertera noutro computador. Teremos de ter paciência e aguardar um dias.

Jean-Joseph Rabearivelo, nascido Joseph-Casimir (1991- 1937, Tananarive), foi um poeta malgaxe, considerado o primeiro poeta africano moderno. Teve de tudo na vida: cinco filhos, dívidas, a prisão, a paixão do jogo e o vício do ópio. Leitor voraz e autodidacta, as suas ambições foram sempre torpedeadas pela canalha de secretaria do estado colonial. Acabou por suicidar-se.
As versões são minhas, a partir de Traduit de la nuit, recolha de poemas escolhidos  e apresentados por Gonzague Raynaud na colecção Orphée , de La Différence





I

Gira uma estrela púrpura
na profundidade do céu
- que flor de sangue
desponta na várzea nocturna

e gira, gira
como o escaravelho que a mão de um menino
adormecido soltou?

parece aproximar-se e afastar-se, alterna,

e perdida a sua cor como a flor que já definha,
torna-se translúcida nuvem, reduz-se:

flébil ponta do diamante
que estria o espelho azul do zénite,
donde já se aprecia o proveitoso
engodo da mais núbil manhã.



 IV

Que se passa debaixo da terra,
no nadir longínquo?
Se te inclinares rés à fonte
na margem de um rio
ou de uma nascente:
surpreenderás  a lua
a desaguar num ralo
e ver-te-ás a ti mesmo,
luminoso e calado,
entre as árvores sem raízes,
donde surdem os pássaros mudos.


V

Dormes, minha bem-amada;
dormes nos seus braços, tu, a última a ter nascido.
Estão-me vedados os teus olhos carregados de noite
que por hábito se irisam como autênticas pérolas
ou uvas maduras.

Uma rabanada de vento entreabre a nossa porta
enfuna a tua túnica
e agita o teu cabelo, depois revolteia um papel
sobre a mesa, quando o agarro
já roça a batente da porta.

Levanto a cabeça,
o poema começado na mão:
nos teus olhos pestaneja o azul
e eu chamo-lhes “estrelas”.



da edição inglesa



VI

Um pássaro sem cor e sem nome
despenteou as asas
e feriu o único olho do céu

Agora pousou numa árvore sem ramos,
cravejada de folhas,
que nenhum vento estremece,
e cujos frutos, olhos abertos, ninguém colhe.

Que incumba o pássaro?
Quando ele retomar o seu voo,
não sairão dos seus ovos senão galos:
galos de todas as aldeias
que terão vencido e dispersado
os outros que cantavam nos sonhos
e se alimentavam dos astros.




XI

Quantos gémeos são, os ventos?
São todos acostumados diabretes
que se perseguem logo que saem da erva
rasa e galgam os muros que se imaginavam
duplos, saltando por cima dos telhados
onde recolherá o orvalho,
para se curvarem sobre as colinas
e aí sacudirem as mais colossais e inextricáveis árvores,
das quais, num estampido, debandam pássaros
com olhos de vidro
e que em sítio nenhum fazem ninho,
ou as bagas oblongas como gemas de quartzo
que, à falta de se reproduzirem em terra,
se fundem nas estrelas cadentes.



XIX

E o dia chegará, em que um jovem poeta
realiza o teu voto impossível,
por ter somente conhecido os teus livros
raros como as flores subterrâneas,
os teus livros escritos para cem amigos,
e não para um, e não para mil.

Sobre o golfo de sombra onde ele te lerá,
à única luz do seu coração
onde o teu voltou a latir,
ele não te imaginará pastor
de uma pacífica ondulação
que continua a adensar os ignotos
abismos submarinos,
onde o sol não chega,
como não chega à areia, nem à terra vermelha,
nem abaixo dos penhascos devorados por líquenes,
que se estenderão até ele
até ao país dos vivos
cegos e surdos desde o Génesis.

E levantará a cabeça
pensando que é ali, no céu,
entre as estrelas e os ventos,
que se ergue a tua tumba.



manuscrito de rabearivelo


XXV

Películas  de água, cristais reluzentes
- óculos para míope ou para cura? –
veludos da pupila
lisa como o cútis branco das açucenas
e mais frágil do que a unha de um recém-nascido.

Os ventos nascem para lá das montanhas
e deslizam até aqui onde dormem as plantas
cujo reino saqueiam e logo abandonam.

Ímpeto de luz que os persegue
até ao deserto sideral
coberto de películas de água, de cristais,
e dos veludos da pupila
que resplandecem silenciosamente
e indicam uma senda por desmatar
e entrecortada por um rio de seixos,
até essa lua vesga
que nele ondula
e que alucinaria o menor movimento dos seus cílios.




XXIX

Existe uma água-viva
que mana do desconhecido
mas que também encharca o vento
que bebes,
e tu aspiras à sua descoberta
por detrás desse penedo maciço
desgarrado de qualquer astro sem nome.

Inclinas-te
e os teus dedos acariciam a areia.
De súbito rememoras a tua infância
e as imagens que a enfeitiçaram – sobretudo
a que encimava estas palavras ingénuas mas intrigantes:
“A Virgem dos sete Dólares.”

Eis outra água-viva,
como flui, intérmina, sob os teus olhos
como atiça a tua sede:
agora que a tua sombra
- a sombra dos teus sonhos –
se cinde em sete partes
e, emergindo de ti,
agrava a noite já densa.



XXX

Vãs, todas estas antecipações
que nos querem dar asas
e nos prometem
que um dia seduziremos marciana?

Vã também a quimera
que perdeu a Ícaro
mais que ao sol
que bebeu a esplêndida cera?

Mas que triunfo seguro
me anunciam já todos estes signos
que terra e céu se enviam
na orla do sono:

nas nossas cidades de vivos
até as mais humildes choças
respondem aos apelos do fogo,
que jorram das estrelas nascentes.

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