quarta-feira, 5 de março de 2014

REFLEXÃO SOBRE DEUS NA ILHA DE MOÇAMBIQUE


 
Deus é todo o imortal que se desenfia

a pontapé nestas missangas compradas,

na ilha que foi nossa e dossel dos mitos,

 
imortal que se suspendeu pelo calcanhar
do tempo, cativo como Aquiles de narração
que o diga. A escala irracional do Hospital

 
da ilha, colunatas e pavilhões neoclássicos
onde hoje só lagartos e musgo remoem

contristados os arrazoados de Job sobre

 
os não-sentidos de lamentar qualquer dor,
é um modelo da loucura de conceber por Arquitecto
um mui grão apreciador de babas de caracol.

 
Deus em cujo selvagem apetite
se engendrou o esquecimento

de ser incriado – magnífica

 
a moça que me acena, mas sem ‘msuri

que lhe colaria ao rosto as máscaras

duma beleza que não esmorece –

 
é poderoso ainda – sucede serem

contagiantes os narradores – não obstante

lhe falecer o gosto de ser inominável.

 
(Parentesis para nos impressionar a lisura

da ilha, passada a ferro, como se

fossem palmeiras os túmidos pêlos

 
púbicos de um corpo na horizontal.

Percebe-se que tenha conhecido aqui

Bocage os descaminhos da sua sombra.)

 
A nenhum Deus que persista em sê-lo

– irá para que Islândia a carta que esta ruiva
´
exibe, na sua quase nudez, na praia da Fortaleza? –

 
galvaniza a idolatria de se adorar um nome

ou não fora superior na salamandra

a necessidade de mergulhar no fogo

 
à de escolher um avatar. O drama

é, inelutável, a invariável solidão –

a de não ter fiéis e permanecer mudo

 
o chamamento que foi pressentido,

ou a de ter finalmente um quarto medieval,

cama românica, e nenhuma dama disposta

 
a devotar-nos a sua vassalagem;

drama é o labirinto a que não se descortina

fundo, labirinto de uma atracção velhaca

 
porque não dá esperança, como esta ilha

que o Lowry escolheria para plateau

de uma sequela de Debaixo do Vulcão,

 
embora mantenha incólume o mistério

duma vitalidade que não foi refractada

pelo peso da História, sendo a sua decadência

 
tão saborosa como o siri-siri,
algas que não desmereciam ser

o último manjar dum condenado. Deus



é o labirinto anterior à sua designação,

que só sabe conjugar-se no presente, como a trama

da Penélope macua que tem lulas na vagina

 
que se fazem e desfazem, engenhosa

lábia e só igual à dos efebos que se oferecem

como guias, em visitas às despovoadas ilhotas

 
adjacentes e aos prazeres do sexo invisível

a olhares pios, gregos e troianos, que não dançam

como Zorba. E quer Deus, neste enredo

 
de mikuti, que o canto seja coral, energia

amplificada, radiante, que lhe permite sorver

a melancolia de haver sido

 
aquele que suprime o Tempo

- ridícula a estátua verde de Camões,

num aperaltamento de musas tangidas

 
pla gonorreia, e que será certamente posterior

aos versos em que Sena pôs o vate

a defecar sobre as moralidades vindouras

 
e sobre o Índico que tudo lava,
da garoupa vermelha à unha suja

com que esta mulher nos serve o pão.


 
Nesta ilha sente-se que Deus é um fantasma

que nos vendeu ao pataco de uma

estória, pela alusão de uma melodia

 
em cujo refrão se vendem os baús de Venús.

Os fortes ventos das entranhas da terra

(bom-dia Kafka), não esqueceram a ilha,

 
pelo menos neste dia de um bafo

espesso e quente que não oferece evasão,

isentando qualquer gotejar da culpa.

 
Ah sim, aqui aceita-se o terror da existência,
cambiada em carne a esmo, e lenta como a desova

das tartarugas. E no interim insista-se

 
na fidelidade com que Deus nos faz chegar

como objects trouées e nos muda em trouvés,

objectos de desejo e partilha, corações

 
dum ápice bifurcados, a quem o medo, o próprio,

ilude mas singulariza: algoritmos, aprovaria

um matemático. E nesse transe de auxiliar

 
Deus a voltar a agir como o intratável pirata

há que premir, a meio da sua presença,

o interruptor do tangível, de forma

 
a que um curto-circuito o desperte,

ou nos desperte – gemidos de cobre

sob uma fina filigrana em ouro.

 
Beatiful, a Semente, a recepcionista

do hotel: que poeta, antes de mim,

a nomeou assim, mesmo antes de saber

 
se tem lulas? Fora, é nítido – ainda
que esteja a ser generoso – que Deus lateja

nas figueiras de benguela, centenas,

 
com as suas barbas de Leviatã a confiar-nos

que não passamos de hóspedes em terra.

Ah, ser-com é tudo o que se pede

 
nesta ilha: que, realinhado o tear da História,

na ruptura da sintaxe, revelemos uma inédita

conjectura intrigante ou apenas o desejo

 
de sermos mais do aquilo que somos

capazes de vender. Como Deus, suponho,

que anseia sempre por cerejas

 
onde não as fez brotar, e com isso reaproxima
as regiões distantes. Sim, Tu, meu mestre,

meu senhor e guia, vê como renasce no teu âmago

 
a necessidade de despedir-nos. E a Semente

à espera, e eu mula, isto é, nada –

ou seja, nauta do nada que é tudo.


NOTA
Lulas: assim chamam as mulheres macuas aos pequenos e grandes lábios vaginais que, ritualmente, puxam e deformam, dando uma forma diferente à sua genitália

3 comentários:

  1. Nao sou grande adepto das teorias da angustia da influencia, mas nao consegui evitar ouvir na reflexao o "ruido rouco, rouco das cigarras de Knossos" do David Mourao Ferreira. Uma ligacao de todo inesperada.

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  2. engraçado, Tiago,o David é autor que leio pouco, mas o seu comentário deixou-me curioso, e como tenho comigo a obra completa dela, vou espreitar...

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  3. achei interessante partilhar o video qui encontrei sobre a ilha de Moçambique no tempo dos portugueses quando inauguraram a ponte nova em 1967. uma autentica romaria como em qualquer região do norte de Portugal, com o padre a benzer a obra, o desfile da banda dos músicos, os escuteiros, os carros alegóricos até um carro com uma casinha dos locais com o teto em palha? as rainhas do desfile, o fogo de artifício, os sinais de trânsito novos, e um grande número de carros á espera para estrear a ponte nova:
    https://www.youtube.com/watch?v=pLXQ5TbNnHU

    desejo as maiores felicidades ao povo de Moçambique e a salvaguarda das belezas desse país
    Angela

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