domingo, 1 de dezembro de 2013

BAGAGEM NAO RECLAMADA/LADRILHOS 2. O HUMOR

 
 

 
Se em 180 páginas de sonetos não houvesse, para além da marmelada, uma pitada de humor a atenuar tanta meditação sombria, o pataco de um lirismo de malha caída, não sei que vos diga.

Por isso de vez em quando:
 
 

Desabotoada a calça,
o poema relaxa,
como o guarda na guarita
que vê a manhã dourar

lama, folhas, os estalidos
que lhe amotinavam
a noite. Aceita
então de bom grado

um cálice, algo
que o distraia da missão
cumprida. O ventre

descai, engasta-se
no débito da rola:
rô rô rô Rõ (é fêmea…)

Mas aqui vos deixo outros ladrilhos, e vejam lá que a meio até tem blandícias:


 
de «Fala do Efebo/ reminiscência 2»


Onde é esconso

desenha uma baía.

Eu que não fui donzela,

ave ou eucalipto,


sequer a surda sarda

de Empédocles,

fui a Greta de Heraclito.

(…)



Sim, quando

a sílaba de Heraclito

remove a falta, liso, sim,

o fogo encrespa na pele,


lisa como a pantomima

num olho de lúcio. E a onda

que era hirta deflagra

 
em seda – vaivém e

tremula: ou antes ,

vai e goza.


 
(…)
       Outros vinham bêbados,

imprecisos, ele chega lúcido

como a pedra no sapato –

mas tudo que extrai é sem dor.


A volúpia de poder ser

tantos e ser de um

a cereja na orelha,

ramelosa Greta sem Garbo.

π

 

 

O coração tem o desleixo das vizinhas

que penduram roupa empapada de lixívia

sobre os colarinhos quase enxutos, sob

a almas quase despojadas de lascívia.



π

 

 

                            (…) A palavra

conspícua que desabotoou

 
a mini-saia à rapariga num lavabo

do estádio, perdia o Benfica por 3-1,

para que um sáurio desaustinado

lhe arrancasse do sexo a saxífraga.

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O que destilam areias? Com fria malícia

galopam para o mar. Na mira de um vínculo,

talvez de um rabo de sereia (será carne branca

ou vermelha?) que resguarde do vento.


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A vida são as luvas da morte, cismou,

e a mostarda subiu-lhe ao nariz. Espojada

a reputação na erva fria, quis esbofeteá-la,

 
mas o mundo está à pinha de intrusos

que nos distraem. Saiu do café com a sensação

fruste de ser um oráculo naif, se tanto,

um licor fino. Chegado a casa escreveu:

 
«Este verso é mais infalível que o Papa!»

Ah, ser ao menos traduzido em islandês,

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(…)

Na ignorância de que grua seja a fêmea do grou

anela-o a acústica do copo:

se percutido, zumbe. Com vantagem –

ainda que a teia pareça uma bela mandala,


as mandíbulas do predador não dizem om.

Cem por cento pela litania dos telemóveis

nas mãos das raparigas. Vai outra caneca?


Topas a romena? É tramada, mas ,

hóspede da beleza,

nela tudo é fulvo e acontece.

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(…) Nem a faxina

cumpre: vê-se pela enorme teia

que a sediciosa criatura

se ilustrou nos três bichos-de-prata

que roíam a velha edição

de Racine (isto é que é socialismo!).


π

 

 
Lês: «Beijo-a. Aqui

não seria fortuito um eclipse».

E chega dos fundos, na longa avenida

de acácias em sangue,
 

a buzina de uma ambulância.

(…)

 
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Por força do hábito, o sopro muda em zebras a roseira

de Guimarães Rosa. A caminho do baile onde, de fraque,

um aguaceiro noiva um martim-pescador, o vento

ataca os rebites de todos os navios no porto

e num enjoo claro, estagia de binóculo nas partes

do gafanhoto (dezasseis horas de cópula). Chegado à festa,

arma-se em redentor e derruba a mesa das bebidas,

liba as inescrutáveis trombetas da terra.

O vento, afogado na luz até ao pescoço, (…)

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Na lágrima da viúva via-se um velho cisne

que tossicava muito. Ela escamava à bancada,

enganchando a unha na guelra. Lembranças de miúdo,

ainda a alegria trotava no seu pequeno porte exangue.
 

A quem seguir quando «a cidade é um poço inumerável?»

(…)


------

(…)

Madagáscar, uma ilha com um trema no cu

e uma paz tão desopilada que vomita ogres.

A dúvida é se lhe tire a frio o pipo,

cisma Deus, ou se a quente lhe quebro os ossos



pela «incúria manifesta dos acontecimentos».

Mas, castigada a ilha, estancará o sangue

nas torneiras do continente? E finalmente a tsé-tsé



dará à luz a freira contra-alto que acorde na vergonha

«uma verdadeira especulação de bofetadas?»

Deus fecha-se em copas , encavalitado nos coqueiros.



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Um dia, num semáforo, bati

porque ruminava distraído num verso

da Primavera Autónoma das Estradas.

(…)

Um dia ofereceram-me um bonsai

que me lembrava o Mário à procura de

ventoinha nos armazéns do Grandela.
 

Um dia escrevi o Mário é imortal como todas

as Marias que calam o trilo de São

Francisco de Assis no corpo do seu soldado.

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FECHOS PARA SONETOS, COMPRADOS NA RETROSARiA

PiERRE DO COLOMBO

iii

Votre silence escreve a esferovite na vidraça

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Um oxímoro por outro papo, tantos não!

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Ter um corpo e não lhe sentir

o cansaço: uma pretensão que avilta.

igual só a literatura armada

em piscina de condomínio privado.

 
O cristal cala o calafrio ou afia-o,

dúvidas de neófito à entrada

do Museu Gongora. Contudo, é

improvável morrer-se na fonte onde

 
se nasce. O "em-si" atrai muito pó,

já viste crica empoeirada?

Num sonho a sombra de Cristo

(…)

π

 

 

Rompeu o silêncio do exame

para indagar, Doutor, o alumínio brilha?

Em que porta estreita

Lhe terá Deus encoberto o espírito?

(…)

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Desta altura da minha vida – um sétimo andar

sem elevador – vejo a minha adolescência a pular

na mesa alemã e enxergo o modo doméstico

com que me fui estatelando ao comprido.

Vem isto de longe, em várias frentes e lugares

(…)

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Uma luz caindo como cal

sobre os ombros em fuga

– porque só o ovo existe,

a galinha é o seu sonho –


conduz-me ao muro

dos teus olhos. (…)

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AUTO-RETRATO NO COMBOiO PARA RESSANO GARCiA

Que homem tão original, pensava a menina

que me enchia de macacos o cabelo,

mucos tenros extraídos das narinas

que a obstipavam (palavra tão bonita!). A mãe
 

não via, a mãe era um caso de cegueira e paciência,

o contrário da petiz que, para regozijo

dos poetas, compensava em ranho verde

a friagem do mundo. Ai o (cobrador!), corou

(…)

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Sem dar azo a mais destrinças,

posta a alma ao lume

(bem ou mal passada?),

a treva encarvoa-se de silêncio.


Vem a alba e lembra-me:

tudo se penetra: (…)

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(…)


Esgarça-se a nuvem, é uma questão

de sintaxe, sem esta

há lá emoção duradoura!,
 

nem seria a cerejeira reminiscência

nas costas da cama que te ouve

em blandícias.

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Procura-se leitor, morto ou vivo,

doze euros de recompensa,

alguém que restitua à letra

o corpo radiante, as mamas

en su sitio, o cuzinho refilão.

Procura-se leitor, morto ou vivo,

que vaze as minhas mãos

na sua espalhafatosa intimidade. (…)

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Não sei o que vos prometeram.

Este poema desapeou as bailarinas.

Chove, e não há outro prato na balança.

Todos os malditos dias, campeão.

É esse o nosso saldo – zero.

(…)

 
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Ir de cana, pintar o sete,

erguer em palafita sobre delgadas patas

de aranha o tabuleiro do medo

ou ir-lhe à rata abocanhar o queijo grié
 

– propósitos que esculpem uma vida

na sua jaula. Há quem prefira o comedimento

ser rato de biblioteca ou a convalescença

da ternura no passo da devastação,

 
a jaula é a mesma. O pão sonha

ser intratável farinha

ao vento. Deseja ter um prego

 
imaginário espetado na cabeça.

Que quando se olhe ao espelho

só se veja o prego.
 
 
A foto é do atelier do Bacon, um tanto parecido com o meu escritório e foi uma das imagens hipotéticas para a capa, hipótese que a editora (influenciada pela minha mulher, tenho a certeza)
rejeitou.

 
rejeitou

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