quarta-feira, 21 de agosto de 2013

ELUCIDAÇÃO ÀS FONTES

 
O que parece impossível pode acontecer: na Abysmo reuniram-se uma série de amigos escritores que em vez de rivalizarem entre si dialogam, em vez de competir riem mutuamente, em vez de serem egoístas discutem os livros uns dos outros, na tentativa, muitas vezes ainda em embrião, de que cada um dê o melhor de si na senda do seu projecto. Isto é raro e deve ser mantido, e vale mais que contractos milionários em editoras que só têm para oferecer relações de utilidade.
Pior, estamos todos evidentemente irresignados com as nossas situações pontuais, mas não com o mundo, o que nos leva a todos – e esta é outra característica comum – a afirmar e a agir, em vez de nos confinarmos à energia do ressentimento.
Não somos nem queremos ser “marginais profissionais”, ou “revolucionários façanhudos”, com morais bicudas que não admitem transigir com a ética, unicamente escritores que fazem aquilo em que acreditam, convicta e com o máximo de verdade e persuasão possíveis.
Parece que isto dá azo a todas as interpretações malsãs e equívocos. Paciência.
É engraçada a minha história com o Cotrim e como ela tem dado azo a tantas desembocaduras. 
Não me lembro exactamente do dia em que o conheci e que entrámos imediatamente em empatia. Sei que já convergimos maduros na amizade e que sempre nos divertimos juntos. Fomos cúmplices várias vezes: tentámos vender histórias às televisões, em várias edições que publiquei sobre indicação dele quando tive uma pequena editora, a Íman (olá Vera Tavares, olá Pedro Nora, olá João Chambel, olá Daniel Lopes, olá Jaime Rocha, olá Vicente Franz Cecim, olá Nicodemos Santos, olá Nuno Torres, olá António Rodrigues, olá Vergílio Alberto Vieira, olá José Mário Silva, olá Teresa Aica Barios, olá Diniz Conefrey, olá Ondjaki, olá João Jesus de Paes Loureiro, olá Vasco Baptista Marques, olá Celso Martins, olá Paulo Ramalho, olá Maria Velho da Costa, olá Rui Tavares, olá Helder Moura Pereira, olá José Amaro Dionísio, olá Teresa Noronha, olá Amadeu Baptista, olá José Teófilo Duarte… - meus cúmplices, autores, tradutores, sócios da Íman), em projectos e desânimos vários… mas divertíamo-nos sempre como brutos. E às vezes divertíamo-nos de uma forma tão desproporcionada que um dia o nosso almoço, regado como soía acontecer na corte de Salomão, acabou comigo com a cabeça do úmero esmigalhada.
Em consequência do qual passei um semana no hospital, assistindo a todos os bombardeamentos de Cabul.  De onde saiu um dos meus melhores poemas de sempre (um ribeirinho de dezoito páginas em que endereço uma carta ao poeta sírio Adonis, e que depois seria publicado no livro «Combate de Flautas», pela &etc.).
Não. Não foi um caso de violência doméstica. Eu havia comprado uma ópera brasileira «Guarani», e discutíamos a ópera italiana contra a alemã. Ele queria à viva força levar o CD para gravar, sem eu o ter ouvido, e eu insistia na devida necessidade de eu ter a primazia. E a meio da praceta do Camões ele, de brincadeira, agarra-me no cd e dá-me um piparote com a anca. Eu surpreendido pelo inusitado encosto da nave Apolo 13 dei um mau passo para o lado, tropecei numa pedra da calçada e caí desamparado sobre a caldeira de uma árvore tendo batido com o ombro numa esquina da caldeira.
A única coisa que tenho a lamentar é que nunca ouvi a ópera Guarani.
Portanto, devo ser o único autor no mundo que parte os ossos sempre que almoça com o seu editor.
Isto liga.
Mas isso não me dá direitos de propriedade. Portanto ao contrário do que diz a Isabel Coutinho (por amabilidade, o que me alegra) não sou co-proprietário nem co-editor da Abysmo.
Aquilo é mesmo dele, do má-raça-Cotrim, e nós, os seus amigos e autores, estamos todos interessadíssimos em que resulte, e por isso falamos uns com os outros, mas os livros saem como saem porque é ele quem os faz e porque ele os faz como o poeta que é – o resto são balelas.
Claro que a amizade pode ser uma espécie de proporcionalidade que é indeterminável e que vou tentar arrastá-lo para o casamento da minha irmã (pá, temos gim, grappa, uísque, uma piscina e uma cantoria infindável), mas isso são outras favas por contar.

2 comentários:

  1. Famílias

    Muito bonito mas a minha parte simplória suspeita que a escrita não passa de uma expressão feliz do medo. Será isso que vos une? Pessoalmente, se não fosse tão cobarde quanto os mortais, pelo menos cinco mil ossos estariam - deliberadamente - esmigalhados. Sem moralizaçõezinhas a categorizar e procurando conter a raiva do órfão, acho que, quem tende a eito na via do erro, deve piscar o olho à marginal. Porque não?

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  2. Viva Cabrita. Foi com muita satisfação que ainda à pouco li um artigo no Diário de Notícias sobre a Abysmo. Só o mentor espiritual deste novo projecto do João Paulo Cotrim partiria os ossos num jantar desabrido e salomónico. Estou feliz pela editora e pelas escolhas que tem feito... a coisa promete e com ou sem ressentimento urge que as pessoas se encontrem e saibam estar à volta daquilo para que vivem e não o que as sustenta nesta parvónia materialista e uniracionalista. Claro, com o nome da editora veio-me logo à memória Os Abysmos da Mão, é que os poetas tocam-se... onde menos se espera.

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