terça-feira, 23 de julho de 2013

DEPOIS DE TER REVISTO O TIGRE E A NEVE



Escreveu Mahler à sua mulher: «Eu não sou senão um arqueiro que atira no escuro”. Neste arqueiro cego encontra Salah Stétie a metáfora para falar do poeta.
Também eu me sinto vizinho dessa concepção, o que não nos traz certezas nem futuro mas essa imensa liberdade que nos dá o encontro com algo imemorial. De entre as mitologias em torno do poeta e da poesia é a que prefiro – a de uma escola de ignorâncias, como diria Ramos Rosa.
Também eu, no começo de todos os equívocos, quis ser um poeta maldito. Felizmente a vida pregou-me a partida e deu-me filhos, o que me fez entender que tudo recomeça sempre e em todas as direcções, mesmo o mal recomeça sempre, ainda que refractado.

Um maldito é um homem de um só vinco, que toma a prancha partida da piscina da sua infância por todas as pranchas do mundo e que teima em dizer «não» quando a melhor negação é dizer sim.
Se o vinho nos põe alegres, por que teimar em ter mau vinho? Há por aqui uma enorme pose, uma estapafúrdica falta de sabedoria.

A única forma eficaz da nossa indignação contribuir para uma mudança no mundo é dotá-lo de algo que nos religue e quebre a inércia do tanto que nos quer separar. Da beleza, por exemplo, que é a forma momentânea com que damos uma melodia ao informe.
Esta é com certeza o transe que nos impele à colaboração mais activa, numa realidade que, apesar de nós, se desagrega. E não importa o quanto se desagrega, mas o que fizemos para sair da linha recta e para a olhar duma perspectiva que a re-encantou. Uma vez, na adolescência, dum mau poeta, li uma imagem que nunca mais me esqueci: na cidade que tombou num manto espessíssimo de nevoeiro dois homens aproximam-se. Não se vêem, mas um deles assobia a melodia do Casablanca, e quando cruzam as nubladas ausências, o que ia calado, sem se dar conta, começa também a assobiar a mesma canção. É tudo o que é possível fazer e julgo ser o pequeno estribo que nos salva do ganido dos cínicos.

Também eu lastimo o estado das coisas e me zango e atabalhoadamente me atiro num galope de sentenças e imprecações, de recusas que ziguezagueiam como eu, mas persistir na ira só me daria a impaciência que não me deixa ver. Há que saber que em cada momento o escuro pulsa com uma cadência diferente de modo a conseguirmos orientar a flecha na noite. Para onde ou para quê atiramos, desconhecemos, só intuimos que é nessa direcção. Um poeta maldito, e há muito poucos que o sejam genuinamente, é-o, apesar de si, de relance, e não em preocupada demonstração de zelo. Não fazem profissão.
Uma vez tive um poeta amigo tão furibundo que (dir-se-ia) torcia as colheres só de as olhar. Ficou em apuros. Todas as semanas jogávamos bilhar a dinheiro e eu perdia sempre. Era a única forma de se deixar ajudar. Depois insistia em passar pelo cemitério e em ir mijar nas campas. Percebi com ele que afinal não queria ser um poeta maldito, e que não urinar nas campas não queria dizer que as enchêssemos de licores.

Há uma grande vantagem em não ser um poeta maldito: não sei o que vou rejeitar amanhã, não sei sequer como vai ser amanhã, e o futuro e o passado encadeiam-se num presente discrepante, mas aberto, com sombras e flashes de luz atordoadores. Um homem vário e ondulante, diria o Montaigne, dá quanto muito uma profissão de fé, que é igual a dizer que na mão só se leva o vento, às rabanadas.

Um maldito-de-profissão ainda está na orbe do poder, procura ser um contra-poder, eu prefiro os refractários que, sem muita convicção, apenas porque não conseguem ser de outra maneira, semeiam o “impoder”. Pode até amar o mal, uma certa configuração que lhe dá textura aos tecidos. Desde que ame, que não finja amar. Aí os tigres brilham na neve.     

 
QUATRO OU CINCO TREMOÇOS ACHADOS NUM CADERNO

1
O poeta é o único bombeiro
que apaga o fogo
com um incêndio.

2
A sombra de Argos
desenhou-me no calcanhar
uma elipse
com os caninos
- intuo
que não sou Ulisses?

3
Sempre
que atirava o laço
a corda dava um nó no ar
antes de salpicar
o que quer que fosse.

4
A turquês e o alicate,
um casal inconsútil
dançam um tango
no arco da aorta.

5
Se bem que inestimáveis,
ara do desejo,
aqueles calendários
tinha o ar
do tempo
que já passara.


6

Incoercível
a força com que a corola
impele para o alto
a pélvis azul
do céu.

 

1 comentário: