segunda-feira, 22 de junho de 2015

A MESA PÉ-DE-GALO E O COELHO E A MASSALA




- Outro livro, António?
- Saiu-me, mãe! E tu, já obtiveste perdão para o anterior, Aí em cima?
- Já pedi audiência. Mas está difícil, e tu ainda carregas a tua pena?
- Recalcitrante e contumaz... Sabes que foi por causa destas duas palavras que não tirei o curso de direito que tu desejavas para mim?
- Não te entendo, filho.
- De tanto chocar com estas duas palavrinhas nos manuais, entendi que se as repetisse ad eternum rapidamente me tornaria num réprobo...
- Fiquei na mesma, mas sempre te desculpaste com os outros...
- Sai sermão?
- Eu não queria, mas cada vez que me convocas é isto, é para me apresentar outra pedra no teu pescoço... Ganhas ao menos?
- Ganhei em pobreza, distingo mais o que me é essencial.,.
- Hum, para franciscano falta-te a tonsura...
- E é sobre o quê, essa bodega?
- Recrio algumas fábulas tradicionais africanas... 
- Coisas pagãs, não sei meu filho... essa tua vocação para mártir não sei onde te leva...
- Não disseste que andavas em piqueniques com o S. Pedro?
- ... e por que me tratas por tu à mesa pé-de-galo se em vi
da nunca o fizeste?
- Informalidades dos espíritos...
- Olha, ainda tens o terço que te dei quando fizeste dezoito anos?
- Cala-te boca... Sabes alguma coisa dos Gregos, do que se vai passar hoje?
- Platão 1- Sócrates 2, no torneio de pingue-pong... era isto que querias saber.
- Bom, tenho de ir, chamam-me... tenho de ir fazer o lanche para a tua neta...
- Sabes que mais, que descobri aqui? Que o silêncio tem insónias...
- Contas-me logo, contas-me depois... e trata lá do meu caso...
- Conta-me é tu uma das histórias, para eu medir a gravidade do caso...
- ok, vou-te contar só uma!


O COELHO E A MASSALA

Estava um coelho repimpado debaixo de uma massaleira quando lhe caiu na pança uma massala madura. Foi um susto de morte ver aquela espécie de planeta em equilíbrio na barriga. Susteve, susteve muito a respiração, antes de, num arrepio, fugir esbaforido, com os tufos nas orelhas todos em pé.
Passava por ali o cabrito do mato, que ao ver o estado do coelho, curioso, se pôs a correr ao lado dele:
- Ó senhor coelho, que lhe deu maleita! De que foge o amigo?
- Fujo do que devias fugir, pois não vês tu que o céu está a cair?
O cabrito do mato ficou desconcertado, pois estava um céu imaculado e sem nuvens, e insistiu:
- Tem a certeza do que diz, senhor coelho?
O coelho passou-lhe a massala, grande e rija, e disse-lhe:
- Diz-me tu, se não é um planeta.
O cabrito intrigado chegou-lhe o dente e partiu-o, de tão rija que era a esfera.
E assustou-se por seu turno, correndo numa gritaria, ao lado do coelho. Até que chegaram ao parque onde viviam muitos outros animais, camaleão, cágado, gazela, avestruz, zebra, cudo, ratos, um ror de bicharada. E o coelho e o cabrito informaram os outros animais dos perigos que aí vinham e todos ficaram com a pele de galinha. Só o cágado olhava desconfiado para o fruto, resmoneando:
- Hum, isto parece-me massala.
Mas o rato cravou-lhe o dente e partiu-o. E o cágado cismou então que aquela esfera era uma rocha. E sem demora desataram a fugir, fugiam da própria sombra, e assim, dobrados pelo pavor que os tomava chegaram a uma floresta muito densa e recôndita, onde pararam enfim, e não porque ali se sentissem mais a salvo mas por estarem estafados da corrida. Recobrado o fôlego veio uma sede danada, mas por ali não havia água.
Resolveram unir os esforços e abrir um poço.
Bom, quase todos. O coelho anunciou logo que não queria trabalhar, já se sentia a salvo e por isso podia prosseguir a sua soneca.
Os outros animais avisaram-no:
Então, depois do poço aberto não irás beber desta água…
E ele desvalorizava, encolhendo os ombros:
Pois, pois!
E pôs-se a bater a sua sorna.
Os animais cavaram, cavaram, e não encontravam água. Um deles lembrou-se:
Onde está o cágado? Esse é quem sabe.
O cágado, que era muito preto e lento, tão preto que lhe chamavam Mica, ainda estava a caminho da floresta. Correu o cudo ao seu encontro e trouxe-o nas costas.
Inteirou-se o Mica do plano dos amigos e dispôs-se a ajudá-los. Farejou, como uma antena que procura gambozinos, e enfiou-se vagarosamente por um buraco húmido ao abrigo de uma moita. Não tardou muito ouviu-se uma voz ufana:
- Aqui tem água.
E alegremente fuçaram, fuçaram, até que dois metros abaixo encontraram uma corrente de água fresca. Foi ver quem mais bebia.
Após esta canseira deu-lhes a larica e foi cada um deles procurar que comer, deixando a gazela a guardar o poço.
Aproximava-se a noite quando o coelho acordou e vendo a situação gizou um plano. Quinze minutos depois chegava ao pé da gazela, que já sentia uma moinha no estômago, com frutos silvestres:
- Olha o que a tua avó te mandou!
A gazela devorou-os com gosto.
Gostas muito desses frutos… - comentou o coelho.
- Isssh!… Se mais houvesse! – retorquiu a gazela, satisfeita.
- Se me deixares amarrar-te, vou-te buscar mais.
A gazela nem pensou duas vezes e acedeu ao pedido do coelho. E, estando ela amarrada, o coelho banqueteou-se com a água.
Quando vieram os outros animais, a gazela estava faminta e choramingas.
- Quem te amarrou, perguntaram.
- Foi o coelho…, respondeu.
- E que choras, tu? – perguntou-lhe a zebra de maus modos, a ver se ela mostrava arrependimento.
- Choro porque não tenho nenhuma avó… - respondeu a gazela, misteriosamente.
E então bateram-lhe por ter desleixado a guarda da água.
E puseram-se a discutir quem havia de ficar a vigiar o poço. O Mica que era tão vagaroso a falar que só acabava as frases quando já os outros tinham esgotado todos os seus argumentos, garantiu-lhes:
- Comigo, o coelho não leva a água…
E como o disse depois de todos os outros terem esgotado os seus argumentos, a coisa pareceu definitiva e ficou ele a guardar o poço.
Foi tudo em busca do seu alimento enquanto o cágado foi buscar visco às árvores e untou com ele o corpo. Após o que se colocou no seu posto, perto do poço.
Veio o coelho pé ante pé, mas o cágado estava alerta.
- Onde vai, Senhor Coelho?
- Deixas-me ir ali só beber um niquinho de água? Também se lá for não me apanhas! – gabou-se o esperto.
- Para quê fazer uma coisa a mal, se pode fazer a bem? Dê-me um abraço de amigo e depois pode lá ir à sua vontade.
O Coelho ficou um tanto desconcertado, mas pensou, se ele é tolo, deixa-me aproveitar… E aproximou-se do cágado para lhe dar um abraço:
- Venham então cá esses ossos… - dizia sorridente, enquanto abria muito os braços.
E deu-lhe um abraço tão apertado que nunca mais se conseguiu descolar do cágado. Por contorcionismos que fizesse para tentar sacudir o cágado, quanto mais se esforçava mais o outro se colava ao seu tronco. E o Mica soletrava, sorridente:
- É um pra-zer ter um ami-go co-mo vo-cê!
Quando chegaram todos os outros animais o coelho estava rendido de cansaço, deitado, de barriga para o ar e com o cágado em cima. E tinha os lábios gretados de secos.
Observava divertido o Cágado:
- Pa-re-ce que lhe ca-iu mei-o pla-ne-ta em ci-ma…
Então todos os outros animais nomearam o Mica chefe da aldeia…

- Mãe... mãe... adormeceste? Mãe... É boa, pirou-se!

UMA DAS GRAVURAS DE JORGE NHACA, QUE ILUSTRAM O LIVRO


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