séraphine
lO texto que li ontem no lançamento, a uma plateia, muito, muito concorrida
Para começar gostaria de declarar que este livro é
muito barato, é uma pechincha, porque pagamos um e recebemos em troca três
níveis de leitura, ou seja, três livros num.
A primeira leitura é a que é de comum facultada pela
preguiça do leitor, que abrirá o livro e o lerá de fio a pavio,
cronologicamente, como acontece em 100 por cento dos livros.
A segunda leitura, mais árdua, porque exige trabalho,
é a que é sugerida pela pauta final que se encontra na página 107, onde o
leitor descobre depois de ter lido de rajada o livro que o autor afinal sugere
uma ordem de leitura absolutamente diferente daquela que nos deu a ordem
cronológica.
A terceira leitura chega-nos da necessidade de
perceber, pois temos esta mania doentia de querer ver tudo claro, porque é o
que o livro começa pela segunda parte e anuncia a primeira parte lá para o
fundo.
E nas três vezes apercebemo-nos de que cada montagem
dos textos de facto propicia perfis de leitura muito diferentes e logo níveis
de inteligibilidade e recepção distintos.
Este esquema, em que julgo não estar enganado se
disser que o Mbate foi inspirado pelo dispositivo de leitura do romance Rayuela
do Julio Cortazar, é na verdade um bom truque, que entre outras vantagens
torna, como disse, os livros baratos, mas a sua maior legitimidade chega-lhe de
ser mais do que um esquema.
O Mbate Pedro com isto está-nos a apelar à atenção e a
fazer-nos reparar que o lúdico, o sentido do jogo, pode ser uma porta de
entrada para falarmos de coisas sérias.
Normal então que se instaure de imediato um duplo
sentido no diálogo exposto entre o título e a epígrafe escolhida para o livro.
O título e a epígrafe são normalmente as traves mestras de um livro, as suas
chaves. Se procuramos um sentido para o livro, é normal que comecemos por espreitar
aí, são os seus buracos da fechadura. Ora, no título reza “Debaixo do Silêncio
que arde” e na epígrafe lê-se: “Em silêncio, abrem-se sobre o calvário os olhos
dourados de Deus”. A primeira coisa a assinalar é o evidente contraste entre as
preposições. O termo “debaixo” está no lugar da preposição “sob”, e então vemos
que as duas traves que nos induzem a leitura do livre sustentam-se nas
preposições sobre e sob, aparentemente contraditórias. Sob, sobre
- e no meio desta ambivalência situa-se a voz do poeta.
Sob o quê e sobre o quê? Julgo falar-nos o poeta da
própria condição humana, pois estamos permanentemente divididos, ou condenados,
se quiserem, a estarmos sobre ou sob alguma coisa. Até no amor estamos ou sobre
ou sob. Face ao poder estamos sempre sob. Já na leitura e na arte podemos estar
nivelados.
Por outro lado, o título e a epígrafe começam por
armar de forma subtil uma enorme acusação a Deus, apresentando-o como um
perverso voyeur que gosta de testemunhar, em silêncio, como as criaturas ardem
no inferno. E no Inferno estamos nós, a estudar para carvão.
Mas nesta ambivalência do sobre e do sob há também um
aviso: atenção que debaixo de um livro há outro, daí o jogo a que o poeta nos
convida com a sua pauta de leitura que contraria a leitura linear que o livro
supostamente consagraria.
Mas voltemos à heresia sobre Deus. Que contrapõe o
poeta a esta visão dantesca? A hipótese do amor e a hipótese do poema.
Chamo-lhes hipóteses porque o poeta assim os
apresenta, como necessidades urgentes em devir, isto é, para o Mbate o amor e o
poema não representam exactamente coisas já acontecidas e cristalizadas mas
antes estados em potência e cuja natureza pode mudar durante o processo. Por
isso estão em devir, em mutação. O amor e o poema serão os dois últimos
patamares da utopia, e por isso permanecem indefiníveis, e emboram sejam os
elementos que magnificam a vida, que tornam por assim dizer habitável o
inferno, há que encará-los como probalidades, como os combustíveis desejáveis,
e não como estados de ser. Assim parece dizê-lo o seguinte poema:
«quem é essa
bela mulher que carregas
às costas?
é uma viola
soterrada e
dois pangaios
e porque
sangras e estás escangalhado
por tão
pouco?
não é por
eles que sangro
mas é pela
música e pelo vinho
que há na poesia?»
Quem define o vinho, quem pode definir a música?
Ninguém. Mas ambos ilustram que a vida e a nossa compreensão dela estão sempre
em mudança, em trânsito, são um decorrer com flutuações, pelo que a nossa
verdadeira morada se localiza na intermitência, na consciência da precaridade
em que nos situamos. Aqui o amor e o poema funcionarão como os instrumentos,
mesmo que fugazes, daquele que não renuncia a dar um nome às coisas. A
singularidade de um nome é o que nos salva do anonimato da morte, da ventania
do aleatório. Daí que escreva o poeta num dos mais profundos poemas do livro:
«depois de
certa idade
há no amor
a mesma
urgência em ficar
que um
cadáver tem
dentro da
morte
depois de
certa idade
como frutos
apodrecidos nas árvores
teimamos em
não partir
quando de nós
há muito se apartou
o amor.»
É assim mesmo, Mbate Pedro, e teimamos em não partir
porque às vezes se reacende o amor se não esquecermos de o renomear; sendo este
o poder das palavras, o mais desinteressado dos poderes.
O Mbate Pedro herdou duas características da melhor
poesia do século XX e que explora de livro para livro com habilidade crescente.
A primeira é a de ser um lírico envergonhado. Os
poetas mais sérios do século XX tornaram-se líricos envergonhados porque se
sentiam sempre em dívida com o seu dever moral face aos horrores que
presenciaram. Assim é o Mbate, como o foram o José Gomes Ferreira e o Alexandre
O’Neill em Portugal, pois tem uma verdadeira veia lírica num país cujos
desiquilíbrios sociais e as patologias políticas autorizam pouco as elegias, e
por isso contra si mesmo diz e desdiz, continuamente, como neste poema:
«escrevo no
poema
o teu peito
rosado
como os
frutos
agora
os pássaros
vêm debicá-lo»
O Mbate, como se vê às vezes usa o humor para isso, e
não resiste a erguer o canto e depois a desmanchá-lo, numa verdadeira
“dialéctica da suspeita”.
E isso leva-nos à segunda característica, e que se
pode resumir com uma frase do poeta francês Alain Bosquet: «Um poema que não
fala do labor do poema é para mim um texto ao qual falta qualquer coisa».
O Mbate comunga desta fé e por isso em tantos poemas
seus aparece o poema como entidade ou personagem, ao modo de um terceiro
incluído, e aqui convoco a psicanálise que nos ensinou que na cama somos sempre
três: eu, ela e o fantasma. Aqui o fantasma é o poema, daí que o livro, na
primeira leitura, a cronólogica, comece por dizer:
«Chegam ao
poema
Pelas
primeiras horas da manhã
(...)
As palavras
Chegam de
braços caídos
Não as
precede fragor algum... etc. Etc.»
Há paralelamente nesta presença permanente do poema no
próprio acto de figurar-se (funcionando o poema como um poema ao espelho) um
toque brechitiano e uma evocação da sua teoria sobre a “distanciação” no acto
de representar. Mbate quer que o leitor nunca se esqueça de que está diante de
um poema, e do seu jogo de possíveis, e não diante de um pronunciamento a que
se possa acrescentar um carácter de verdade, ou reinvidicar para ele “um efeito
de verdade”. No meu entender, esta é uma escolha sabiamente política, e Mbate
defende-se aqui da própria demagogia que pode haver na poesia. Esta opção é um
acto moral que atesta a honestidade do poeta.
Agora, o que é que se torna inteligível, o que é que
vem à luz, que diferenças se levantam nas três leituras possíveis deste livro?
Isto é já do domínio da arqueologia e é o trabalho de casa de cada leitor, e
por isso não vos vou revelar. E em meu abono diga-se que este é um texto de
apresentação do livro, que deve ser breve, e não um texto exegético. Só vos
digo que há diversos tipos de hulha no livro, e que cada tipo de carvão,
ilumina evidentemente de forma diferente o nosso habitat.
Por último gostaria de lançar um desafio ao
Mbate. O Mbate começou bem, com um livro
curioso, O Mel Amargo, subiu de nível com o seu segundo livro, Minarete
de Medos, que desenvolveu e melhorou as características já presentes no
primeiro, e volta a subir a fasquia e a confirmar neste terceiro que é um autor
com uma voz própria e que sabe expandir os seus recursos, limites e qualidades,
o que faz dele a meu ver o melhor poeta da sua geração. Melhor simplesmente
porque foi aquele que escavou mais habilmente no chão pobre dos seus materiais
iniciais e soube transformar isso num particular tipo de visão, num estilo
próprio e inconfundível. O que é evidentemente muito bom, mas não chega. Agora
começa para o Mbate o tempo da responsabilidade.
No jogo que ele oferece para o engajamento do leitor
desenha-se a necessidade ou a vontade de deixar de ser um poeta de pequenos
poemas, avulsos, contingentes, para passar ao poema longo, e ao desassossego
discursivo daquilo que é mais temperado e exige uma estrutura.
Mbate, atreve-te, o país precisa de quem o narre, e de
quem saiba dosear as brasas líricas e mais subjectivas com o fôlego discursivo
de quem confunde a sua voz com o ethos comunitário. Só tu, neste panorama, me
pareces reunir ao mesmo tempo a capacidade da elegia e o distanciamento crítico
para que esta tarefa possa ser feita de um modo digno, que só sirva a poesia e
o país, sem ser servil a qualquer poder.
Por isso repito o convite, atreve-te.
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