Ocorreu ontem o lançamento de dois livros meus, com apresentação do texto do Luís Carlos
Patraquim. Mas como ainda não tenho o belíssimo texto com que o Patraquim me
honrou, aqui vou deixando o meu e o poema que a seguir foi lido:
Às
vezes perguntam-me porque escrevo e costumo dizer que o faço porque em minha
casa havia muitos lápis. A minha tia surda, que connosco morava, e me levava à
missa, introduzindo-me logo ali nos mistérios de distribuição da fé, trabalhava
na minha meninice no armazém de uma grande papelaria e de vez em quando, com a
inocência de quem não ouve as censuras alheias, fazia uns desvios supimpas de
uns lápis e de uns cadernos para o seu Toninho, que era eu.
Era
muito difícil falar com ela porque além de surda ela como diria o Mia encompridava
as poucas palavras que articulava, pelo que o seu carinho manifestava-se em
abraços calosos e em plumbaginas (- um extraordinário sinónimo para lápis). Centenas.
Todas por afiar.
Um
dia, achando-me finalmente apto para fazer-lhe a pergunta que me assaltava as
meninges, fui às três gavetas da escrivaninha que se abarrotavam de grafitas,
tirei um e perguntei: para que serve isto? E a minha tia, sem uma palavra de
permeio, sacou de um canivete que tinha na mala e descascou-me ali o lápis,
isto é afiou-o.
Soube
depois que a minha tia também fazia colecção de canivetes, o que me empurraria
para outras derivas, que não vêm agora ao caso. Para o que interessa, a minha
tia foi buscar um caderno a uma outra gaveta da escrivaninha, e rabiscou numa
página um peixe que depois apagaria para desenhar um burro, cujas linhas
dorsais apagaria também, parcialmente,
para desenhar nesses intervalos duas bossas, transformando o burro naquilo que
ela mesmo designou: um ca-ca-meeelo, pois, como já disse, ela encompridava as
palavras.
Esta
capacidade de com um lápis e uma borracha transformar uma figura noutra ou
encandear as palavras umas nas noutras, como pescadinhas de rabo na boca,
encantou-me. E por isso dispus-me a aprender a ler um bocadinho mais cedo que
as outras crianças para ver como na página podia transformar a palavra mar em
amêndoa amarga. Sem saber tinha descoberto que as palavras são como as
matrioskas, uma boneca contendo outra, e inaugurei o método de escavar na
linguagem.
Esta
faculdade que os lápis tinham de poder escrever outra coisa na mesma linha que
acabara de ser apagada estendi-a às paredes onde passei a renomear as coisas.
Numa parede cega escrevia janela, ou sobre a tinta azul bebé do meu quarto
taxei amarelo, e passei a chamar borboleta preta ao choco que me obriagvam a
comer, até o meu pai me dar um grande carolo e ordenar, pára lá com esses jogos
parvos.
Os
jogos parvos passaram à clandestinidade e descobri então que as palavras
despertavam
acções, como os beijos das raparigas, ou até promessas nupciais, desde que eu
adornasse as frases com brilhos espampanantes. Foi a minha primeira noção de
estilo e este foi um período de muitas promessas e um período muito feliz.
De
tal modo, que me fui inteirando que, para além do seu efeito prático, me interessavam
tanto as palavras como as saias das raparigas, tendo intuitivamente deduzido aí
que o meu futuro me destinava a ser um intelectual, visto que outros ânimos me
entusiasmavam tanto ou mais do que o sexo.
Mais
tarde descobri que as palavras, e dado que sou ateu, me proporcionavam um
território de extrema liberdade mas sulcado por uma espécie de saudade de Deus,
que é uma forma de rastrear através da diferença e do múltiplo uma relação
espiritual que nos funde. Porque não
devemos limitar-nos a ser só seres históricos e seres materiais mas devemos
sondar algo da natureza da luz, território onde acontece essa troca de olhares
que nos liga ao mundo e aos outros e faz de nós seres de fidelidades. A esta
rede de olhares que nos sustenta e religa chamou o filósofo Merleau-Ponty «a
carne do mundo», território onde me sinto em casa.
Eis
porque me considero um toxicodepente da palavra.
Fiquei
pior quando percebi que o grego Heráclito sustentava que "à alma pertence
uma expressão que acresce a si mesma".
Que raio queria dizer o magano,
interrogava-me. Bebi muitos cafés e alguns suplementos a matutar no grego. Achei
a resposta já trintão no Oriente, na Índia, pois lá ensina-se que o espaço
mental de cada um é elástico, é como um balão que se enche e cresce consoante o
nosso fôlego. E que pode mirrar, se o nosso sentido de responsabilidade sobre os
meios que arquitectam o nosso espaço mental, a palavra e o silêncio, forem
nulos.
Ou seja, compreendi nessa viagem
que a alma é como a caixa preta dos aviões um lugar que pode estar extremamente
vago ou cheinho de vozes e de partilhas, uma memória que pode anular-se ou pode
dilatar-se e que afinal a tal expressão da alma que acresce a si mesma traduz-se
numa fórmula simples: a alma não é uma coisa que se tenha mas que se ganha.
Antes de se ganhar é apenas um
vestígio, uma possibilidade – daí que as igrejas se preocupem tanto com o
baptismo.
Exultava com esta minha
descoberta quando a vi ilustrada num romance da Agustina Bessa Luís, O
Bicho da Terra.
Fiquei furioso porque ela me
tinha subtraído os direitos de autor, mas senti-me em convergência e em
companhia. E aí deixei de querer ser original à força.
Desde que quis deixar de ser
original à força sou vítima duma espécie de rio subterrâneo que me faz escrever
o dobro.
É de tal forma que ando já à cata
de algumas ideias originais que estanquem este derrame. Porque quando tenho
ideias originais só leio e estudo, não escrevo uma linha. Sento-me e sou
gratamente aturdido, como a galinha que vê a manhã nascer e deixa para o estulto
do galo o canto.
Enquanto as ideias originais não
me chegam aí vos deixo dois livros. Um livro de poesia, em sonetos, imagine-se,
é certo que nem todos engravatados, mas que não pretendem ter quinze linhas.
Porquê Bagagem não Reclamada? É
simples, como dizia o Octavio Paz, a poesia é o fruto da colaboração ou do
choque entre a metade obscura e a metade lúcida do homem, e uma parte
substancial destes poemas eu não os programei escrever, eles impuseram-se ou
desceram sobre mim como uma dádiva. Eu não os reclamei, portanto.
Para se perceber o processo vou
falar-vos do último poema que fiz um poema de amor.
Eram seis da manhã e passava os
olhos por uma antologia de poemas portugueses do século XX sobre o Oriente, que
tinha recebido de Portugal. E aí redescobri o bulbul, uma ave canora da Índia,
cujo nome tem ressonâncias fonéticas fantásticas. No mesmo exactíssimo momento ouço
que no terraço é despejado um balde de água. A junção do bulbul com o barulho
do balde despejou-me de imediato este poema de amor:
E
NA AMURADA CANTA O BULBUL
Alguém
despeja um balde de água no terraço.
Quem,
cansado do sol, pode querer
manhã
dentro os pés frescos como juncos?
Abnegadamente
teu, hesito – para quê
arejá-los,
se me esbraseia o resto
do
corpo ao teu contacto? Quem
acrescenta
assim a amenidade de um jorro
ao
orvalho que a alba ainda escolta?
Eu
encosto os meus pés aos dela -
valoriza
sim, o meu amor, o pequeno
istmo
que faltava carbonizar
no
seu fogo. Um balde despeja um coração
abúlico
no chão frio do terraço,
e
na amurada canta o bulbul.
Os Elevadores… é um livro de
pequenos ensaios que afloram a literatura mas é sobretudo um livro de
admirações, sobre alguma poesia alheia. E onde há bastante poesia moçambicana
mas sempre num diálogo, num reenvio, à poesia do mundo, posta a condição que
descobri: somos em arquipélago e a identidade isolada é quase sempre o
trampolim para os maiores disparates.
Mesmo que seja
atractiva eu sei, e eu a busque apaixonadamente para finalmente deixar de escrever,
sentado sobre a tremenda originalidade do meu silêncio. Desejem-me sorte.
Lido
o texto a actriz Josefina Massango declamou o seguinte poema inédito:
DE
LOBO PARA LOBO
Há dois lobos que lutam
no coração de todos os homens.
Um
deles é o amor.
Olho a tua nudez (a mão
precipita o musgo
onde a fonte parecia
áfona)
e pergunto-me:
que terei eu feito
para merecer esta feliz morada
do esquecimento?
O coração tem dois lobos
que se disputam.
Um deles é o amor.
Anda,
devolve-me ao sangue
que todos vertemos,
restitui-me ao cunho
das palavras em desuso,
como desejo
ou néon.
Se quiseres quebrar
o velório,
eu alinho.
Saudades de amoras.
Saudades de ler Cortázar na cama,
a dois, sublinhando
“dói negar uma colher,
negar uma porta,
negar tudo o que o hábito seduz
com suavidade satisfatória,
e não há nada de mal em que as
coisas
nos não vejam mudar”.
Dói a saudade de surpreender
na tua mão
o espesso corrimento
e de que um dente
bata no meu
- praguejando
contra as línguas mortas.
Tudo o mais é a poça
onde estrelas se inquinam
coalhadas pelos hábitos
que engessam
nos sonhos
barcas e barcas de mortos.
Porém amanhece,
tudo tem a precisão do que
amanhece,
a sombra é agora o lobo
necessário, aquele que no seu
coração
entrelaçará
o teu passo,
a claudicação
do teu salto
no piso arrombado da cidade
sob o suculento fogo das acácias,
enquanto
nos teus olhos se deslaçará o
passado,
vagas só as do mar.
Não há aqui sentimentos à deriva
–
assim que sorris
sei que a tua função
é tornar-me imortal,
dessa imortalidade que se mede a
pulso
nas torneiras
e se auto-intitula:
“A que mantém a água na boca!”
Sem tréguas, quem dança?
Talvez os cubanos.
E os homens de ocupação rara,
como os toureiros.
E o sol que quando pranteia
faz vicejar o pólen.
E as tuas ancas
no jogo do arame
quando a noite nos perde
finalmente
para lá do último candeeiro
e a si mesmo se perde
na escarpa do amor
enquanto dois lobos
se lambem, convalescentes.