segunda-feira, 26 de agosto de 2013
A SÍRIA E A QUESTÃO DE ADORNO
Não creio que um poeta com um mínimo de seriedade possa, a dado momento, deixar de enfrentar a questão de Adorno.
Qual é a questão de Adorno?
Dizia ele, se admitimos que Auschwitz é o mal absoluto e que a poesia não pode, doravante, estimular a busca de uma beleza ideal, como é que a poesia, depois de um acontecimento que revelou aquilo que havia de mais negro na humanidade, é ainda possível?
Pode o poeta transmitir qualquer coisa que seja - malgrado o inferno com que modelizou a memória - da ordem do "canto lírico", face à violência, face ao aviltamento da indiferença a que uma sobrecarga de informação nos expõe, hoje?
Houve inclusive quem tenha afirmado, "um poeta que, hoje, se queira lírico não passa de um canalha".
Depois do que nos noticiam na Síria, estas questões são de novo actualíssimas.
Foquemo-nos pois no que "pode" a poesia.
A poesia, em meu entender, sendo "apenas" um meio entre outros de contribuir para a felicidade dos homens, como declarou Wallace Stevens, fá-lo resgatando-nos da monotonia a que todo o primado da representação propende, despertando em nós "o caçador de instantes".
Este caçador de instantes (a "figura" caçei-a em Rafael Argullol) é o homem que não admite a imagem de um continuum, seja para o tempo, seja para a vida, e entroniza com uma outra medida da existência, paralela, descontínua, livre, não normativa, em permanente transformação.
Então, a sua energia lírica estilhaça as margens da representação para se ancorar na expressão, essa melodia ou ferida incicatrizável que vivifica a linguagem e altera a nossa relação com a realidade, induzindo-lhe uma mudança.
Ao cantar as "rugosidades do real", a ténue fragilidade do aparente ou a força do gratuito, a poesia contagia a realidade, compromete-a com o contingente, e precisamente, por recriar sucessivamente as suas condições de existência, i.é, de inteligibilidade, desvia-nos da tentação de ficarmos dependentes das coisas ideais.
Ou seja, concebemos a poesia como uma "fuga" para a realidade e não uma fuga dela. Ainda que esta realidade, como a vislumbro, seja dilatada: o realismo é apenas um dos seus braços, e não ao contrário.
Pode então a poesia enfrentar o Mal Absoluto?
Existe, no meu entender, um erro de perspectiva na formulação de Adorno.
É uma falácia querer contrapor ao mal absoluto a inefabilidade de uma beleza ideal ou de um bem perene, que não faleça, pelo motivo mais drástico: toda a aspiração a uma idealidade tende a degenerar rapidamente num Mal Absoluto.
Mesmo que tenha como pretexto a poesia ou uma experiência espiritual ou religiosa.
Neste aspecto, as religiões orientais defendem-se mais do que as Religiões do Livro, ao partirem do princípio de que um estado de budeidade, por exemplo, ou a meditação, são experiências inapelavelmente individuais, nas quais a transmissão do dogma não substitui a prova da experiência. Abre-se aqui o espaço para um segundo nascimento, que independe duma instância suprapessoal, duma mediação impersonalizada. Aquilo que é aceite como experiência comum a alguns, e até como cânone, tem de ser verificado por cada um. É esse o sentido do conselho budista: «Se encontrares Buda, mata-o!».
Pelo contrário, o proselitismo ou o integrismo religioso, de outras esferas religiosas, são Males Absolutos onde somos interceptados pela "heteronomia do valor": agimos "em nome" de uma pura exterioridade, de uma mediação que nos administra os valores e a emoção. Somos então dominados pela patologia do simbólico, a qual reverte o qualitativo no quantitativo.
Nos antípodas disto, a poesia, pelo rigor da porosidade (o poeta é o homem mais "esburacado" do mundo) que a incorpora, o desenho do incriado e a consciência da sua vulnerabilidade histórica, não tolera a massa, a abstração, a obturação do nome.
É plausível mas não aceitável a ideia de um Mal Absoluto para as Massas. Este assemelha-se a uma formação coraligínea sem peixes: um anonimato. O Mal Absoluto é intrinsecamente pessoal, tem um nome, o nome que "eterniza" a vítima.
O erro de Adorno foi ter admitido, legitimado, a abstração, cedendo às relações de força que o fascismo potenciou: um morto apenas repete outro, converte-se num número. Só um nome materializa o lugar da memória.
Se os média não fossem já essa produção maquinal de «incultura informada» (Konstantinos Tsatos) que nos ejecta para a abstração, os mortos da Síria (as crianças, cuja morte escava dentro de nós) tinham todos nomes. Mil e tal mortos não me diz nada, o Francisco, o José, o Joaquim o Ahamad, a Fátima, têm um rosto - interpelam-nos.
Uma Massa é uma simultaneidade de movimentos em fusão, rapidamente indistintos, cegos.
Ao aceitar nomear a obscenidade de um Mal Absoluto dirigido às Massas, Adorno sem querer polinizou um conceito que torna imagináveis outros genocídios, dado que o Bem, o Mal, ou a Beleza, concebidos como uniformidades, aparentemente têm os ilimites (é sempre possível alargar os seus limites, como a sua actualidade, no caso da Beleza) do mercado da comunicação - estão sempre em expansão, como o universo.
O que os gregos anteciparam com o conceito de hybris (a desmesura).
O que se pretendeu liquidar em Auschwitz? A singularidade. Aquela morte programada, colectiva, ilustrava a crença de que se podia burocratizar – i. é neutralizar – as intensidades humanas, a subjectividade, impersonalizar o fluxo. A vida era ali encarada como o pequeno acidente, a paráfrase, que dá proporcionalidade ao lugar-comum.
A poesia, pelo contrário, desconcerta o lugar-comum, opera nos antípodas dele e ilumina o que escapa à linguagem, ao que a atravessa e ultrapassa, em nome de uma incidência particular, de uma experiência concreta, que só a palavra galvaniza. E dirige-se a cada um.
Por este viés, a beleza não emerge como a cristalização de um ideal, algo embrionário que chegou à sua perfeição, antes se valida como o que harmoniza momentaneamente o caos e desperta um padrão no informe, uma melodia, relevando «um sentido para a existência que estava até aí fora do conceito» (Yves Bonnefoy).
É por isso que a morte não atinge a motricidade da expressão poética e que a questão de Adorno afinal visa um alvo errado ou se concentra na época errada.
Creio que Adorno se dirigia ainda ao poeta épico, enquanto no Eliot de Terra Baldia, por exemplo, já se entrevê um caminho de aporias. A poesia de Terra Baldia é a soma das estrias que foi possível salvar à fragmentação e à incomunicabilidade; já Celan consegue ser fulgurante naquilo que gagueja.
Ou seja, Auschwitz foi a ilustração de uma lei determinista, enquanto a poesia que não se confina ao género – porque também há uma poesia parafrástica, condicionada pela representação - é o que é de todo indeterminado, uma dança que exigisse que estivéssemos atentos aos intervalos do ritmo, pois só aí se recupera a imprevisibilidade do vento.
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quarta-feira, 21 de agosto de 2013
ELUCIDAÇÃO ÀS FONTES
O que parece impossível pode acontecer: na Abysmo
reuniram-se uma série de amigos escritores que em vez de rivalizarem entre si
dialogam, em vez de competir riem mutuamente, em vez de serem egoístas discutem
os livros uns dos outros, na tentativa, muitas vezes ainda em embrião, de que
cada um dê o melhor de si na senda do seu projecto. Isto é raro e deve ser
mantido, e vale mais que contractos milionários em editoras que só têm para
oferecer relações de utilidade.
Pior, estamos todos evidentemente irresignados com as nossas
situações pontuais, mas não com o mundo, o que nos leva a todos – e esta é
outra característica comum – a afirmar e a agir, em vez de nos confinarmos à
energia do ressentimento.
Não somos nem queremos ser “marginais profissionais”, ou “revolucionários
façanhudos”, com morais bicudas que não admitem transigir com a ética,
unicamente escritores que fazem aquilo em que acreditam, convicta e com o
máximo de verdade e persuasão possíveis.
Parece que isto dá azo a todas as interpretações malsãs e
equívocos. Paciência.
É engraçada a minha história com o Cotrim e como ela tem
dado azo a tantas desembocaduras.
Não me lembro exactamente do dia em que o conheci e que
entrámos imediatamente em empatia. Sei que já convergimos maduros na amizade e
que sempre nos divertimos juntos. Fomos cúmplices várias vezes: tentámos vender
histórias às televisões, em várias edições que publiquei sobre indicação dele
quando tive uma pequena editora, a Íman (olá Vera Tavares, olá Pedro Nora, olá
João Chambel, olá Daniel Lopes, olá Jaime Rocha, olá Vicente Franz Cecim, olá
Nicodemos Santos, olá Nuno Torres, olá António Rodrigues, olá Vergílio Alberto
Vieira, olá José Mário Silva, olá Teresa Aica Barios, olá Diniz Conefrey, olá
Ondjaki, olá João Jesus de Paes Loureiro, olá Vasco Baptista Marques, olá Celso
Martins, olá Paulo Ramalho, olá Maria Velho da Costa, olá Rui Tavares, olá Helder
Moura Pereira, olá José Amaro Dionísio, olá Teresa Noronha, olá Amadeu Baptista, olá José Teófilo Duarte… - meus cúmplices,
autores, tradutores, sócios da Íman), em projectos e desânimos vários… mas
divertíamo-nos sempre como brutos. E às vezes divertíamo-nos de uma forma tão
desproporcionada que um dia o nosso almoço, regado como soía acontecer na corte
de Salomão, acabou comigo com a cabeça do úmero esmigalhada.
Em consequência do qual passei um semana no hospital,
assistindo a todos os bombardeamentos de Cabul. De onde saiu um dos meus melhores poemas de
sempre (um ribeirinho de dezoito páginas em que endereço uma carta ao poeta
sírio Adonis, e que depois seria publicado no livro «Combate de Flautas», pela
&etc.).
Não. Não foi um caso de violência doméstica. Eu havia
comprado uma ópera brasileira «Guarani», e discutíamos a ópera italiana contra
a alemã. Ele queria à viva força levar o CD para gravar, sem eu o ter ouvido, e
eu insistia na devida necessidade de eu ter a primazia. E a meio da praceta do
Camões ele, de brincadeira, agarra-me no cd e dá-me um piparote com a anca. Eu
surpreendido pelo inusitado encosto da nave Apolo 13 dei um mau passo para o
lado, tropecei numa pedra da calçada e caí desamparado sobre a caldeira de uma
árvore tendo batido com o ombro numa esquina da caldeira.
A única coisa que tenho a lamentar é que nunca ouvi a ópera
Guarani.
Portanto, devo ser o único autor no mundo que parte os ossos
sempre que almoça com o seu editor.
Isto liga.
Mas isso não me dá direitos de propriedade. Portanto ao
contrário do que diz a Isabel Coutinho (por amabilidade, o que me alegra) não
sou co-proprietário nem co-editor da Abysmo.
Aquilo é mesmo dele, do má-raça-Cotrim, e nós, os seus
amigos e autores, estamos todos interessadíssimos em que resulte, e por isso
falamos uns com os outros, mas os livros saem como saem porque é ele quem os
faz e porque ele os faz como o poeta que é – o resto são balelas.
Claro que a amizade pode ser uma espécie de
proporcionalidade que é indeterminável e que vou tentar arrastá-lo para o
casamento da minha irmã (pá, temos gim, grappa, uísque, uma piscina e uma
cantoria infindável), mas isso são outras favas por contar.
quarta-feira, 14 de agosto de 2013
"LINCHADO POR ENGANO"
foto de josé teixeira
Eu não sei se alguma vez estive
com o jovem escultor Alexandria, “linchado por engano” (que destino!) num dos
bairros periféricos de Maputo, por um povo a quem a indiferença dos políticos
anda a deixar colérico. É provável que sim e o luto em que anda a malta da
Garajinha, uma das poucas tertúlias que frequento em Maputo, indica-me que sim.
Mas fique registado a minha perplexidade e desconsolo. A minha revolta.
Tenho vários amigos artistas que
vivem nas periferias e estão todos muito, excessivamente, inquietos com a vaga
de violência que nesse momento campeia por lá.
Sobre este assunto, veja-se o
excelente texto do José Teixeira no blogue Ma-schamba, aqui. http://networkedblogs.com/O5HTJ.
Aqui deixo também uma foto do Pimentel, suponho, com alguns trabalhos daquele
que era considerado uma das novas vozes mais originais da arte moçambicana.
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