Texto lido no dia 16 de Dezembro, no lançamento do livro de poesia de Tânia Tomé, Conversas com a Sombra:
Eu estou aqui para ocupar pouco espaço e pouco tempo, pois como já fiz o prefácio, entendo que o papel de dar chaves sobre o livro deve recair agora sobre o Nataniel Ngomane, aqui ao meu lado na mesa.
E se aqui estou é só para legitimar com a minha presença o que adianto no prefácio e afirmarei a seguir. Mas antes farei um pequeno preâmbulo a explicar, porque as pessoas que não são do ofício não o sabem, que o segundo livro é o mais difícil de qualquer autor.
O primeiro livro emerge do seu próprio ímpeto. Há um fulcro empurrado pelo entusiasmo que o nutre. Conseguir transmitir a corrente do entusiasmo e traduzi-lo num bom ritmo, num acervo de metáforas pertinentes, refrescantes, e bem arrumadas numa estrutura funcional, é já por si um valor, sobretudo se o resultado funda uma voz original.
Mas o entusiasmo, por si só não chega. É preciso encontrar uma densidade humana e reflexiva que compense as precipitações do entusiasmo e culmine num cais seguro e profundo.
É raro um primeiro livro ser entusiasmante e profundo ao mesmo tempo e o desafio do autor é dar esse passo no segundo. A grande dificuldade decorre, a meu ver, do facto de que do primeiro para o segundo livro o autor ter muitas vezes perdido a solidão. Quando o poeta escreve o segundo livro já está sob influência da imagem que o primeiro livro instalou. Já sente que tem de provar ou que confirmar, e aí o poeta já não está a sós com o seu combate, e interferem no seu trabalho as sombras do efeito que causou. O reconhecimento social do poeta é sempre um pau de dois bicos e pode transformar-se numa companhia impertinente e inibidora. Autores há que por causa disso do primeiro para o segundo livro perdem o gás da espontaneidade. Quando se consegue manter, ao mesmo tempo, a espontaneidade e renovar os motivos e os modos discursivos, ou dilatá-los, então o poeta acosta a um cais profundo, dado que ao contrário do que muita gente julgará, a um bom cais convém ser profundo.
Este arrazoado para declarar que a expressão poética da Tânia Tomé se renovou e cresceu, sendo agora não já apenas uma promessa como uma certeza, diante da qual podemos até sermos peremptórios: quando se reúne o melhor da Noémia de Sousa – na sua construção de uma identidade nacional e de uma voz colectiva –, o melhor da Glória de S’Antanna – na subtileza dos processos e da linguagem –, com a invenção sintáctica e vocabular de Craveirinha, a liga que daí resulta só pode ser excelente. É o caso.
Diria até desde a velha geração de Luis Carlos Patraquim e Eduardo White talvez não se encontrasse na poesia moçambicana uma expressão poética com o mesmo fulgor. Tânia será certamente a voz poética mais interessante da nova geração, e julgo que neste momento a poesia moçambicana, com Guita Júnior, Mbate Pedro, Rogério Manjate, Florêncio Edender e a voz mais recente e plena de cromatismos de Tânia Tomé, começa lentamente a renovar-se.
Por último faço votos para que a gravidez adiantadíssima que a poeta exibe não tenha hoje, que é um dia de emoções para a autora, o seu desenlace, mas que já agora espere pelo 25 de Dezembro, dia mais propício à presença de anhos, burros, bovinos, anjos e Reis Magos, que com o seu sopro cálido quente tornarão o parto mais risonho.
Alguns poemas do livro:
1
Quem serei do que fui? Olhava à volta. E o algodão
crescia-me na carne, depressa como água
na areia, como o sol esquenta na palhota
da minha vida. Onde eu me exilei, eu
com mais meu futuro por vir. Às vezes
a M’bique atravessa-me nesse pensamento sorrindo
de amendoim nos olhos, nasce
comigo nessa angústia de esperança. Ela
gargalha cheia de sementes nos olhos.
Brilham como diamantes negros correndo
a vapor no seu corpo doce. Eu e eu
nascemos um para o outro. Digo, eu
e ela, ela e eu, somos dois: dois em um. Entendes?
Nem eu próprio sei do que digo, mas meu coração dói
quando lhe vê, quando o corpo dela sorri para mim.
2
M’bique? Sim é a Moça da minha vida.
Sabor de cacana. Sabor amargo, mas que faz bem à alma,
cura-me de mim, aquela dor de ser.
Sim com ela sou. Sou?
Mais do que um nome,
mais do que uma palavra nascida da carne.
Sou mais com o corpo dela sorrindo para mim.
Através dos olhos dela, ah M’bique eu encontrava outros lugares,
milhares deles, gotejando a chuva que perdi de ter.
Precisamente agora que o algodão também me é.
Atravessou-me outro pensamento enquanto M’bique
me acaricia com as palavras da terra,
sim aquelas que eu queria. Liberdade.
Liberdade é? É o que perguntas-me? É.
O meu gosto em falar uma língua que não existe.
Gosto do violeta, que atropela meus olhos.
Confundiste-te agora? Deixa, desperta aí
o florir agudo do conhecimento.
Percebe-se tudo, não entendendo nada.
6
Enquanto te falo cresce uma lua redonda
luminosa no ar. E outra lua sai-me pela boca.
E outra lua pelos meus dedos. E
morre para eu nascer. Minha mãe sou eu.
É tudo o que eu queria ser.
Montanha e mar na mesma cabaça
por onde bebo o mundo.
Ah mãe como te agradeço por me existires.
Já viste como está agora o tempo lá fora?
O céu está terrivelmente belo, vermelho redondo, as casas estão
viradas do avesso. Serão casas? Ou serão palhotas?
Serão palhotas as casas? O que terá vindo primeiro?
Sei que já estás a movimentar a tua cabeça,
e os teus olhos encolheram de tanta estupefacção.
Mas é que o mundo é lá fora,
a forma como vejo o mundo, profundamente dentro.
E se te dissessem que o tempo não existe?
E que nós estamos parados e estáticos.
8
Eu tenho uma ilha dentro de mim, navegando-me inteiro o todo, o tudo.
Oi ilha, dentro de mim!
A resina reside ali, inteira sobre a minha cabeça de zinco nos corpos tatuados de
madrugadas
longas
e violentas
Houve tempo em que andávamos todos de rastos eu mais meus cinco irmãos.
Magros, tristes, violentos. Não existíamos.
Os nervos esticados à procura de pão. E lutámos muito
até nascermos, para existirmos. Lutámos
com tudo que podíamos, bocas, mãos, pés, olhos, unhas, cabelos.
O impossível e o impossível. Queríamos sair do ventre da mãe.
E sofremos afundados na bolsa, erguíamos
as mãos e pés em contracções violentas.
O canal era estreito, apertado não era possível perman
muito mais tempo. Crescíamos e
e precisávamos de espaço, de ar de ar de ar de ar…
Oi, irmão dentro de mim!
Estás assim como eu, trancado dentro de uma gaiola
mais redonda que o mundo?
15
Desculpa, não sei se estarias preparado para receber
o que sou. Mas eu sou precisamente essa barata
que encontras vezes sem conta, na cozinha da tua casa
bebendo o escuro. Ah essa sou eu, essa barata de pau preto,
que te fala: Meu nome é Carol. Sou irmã dos irmãos
do mesmo sangue, nasci contigo e comigo, estamos juntos,
mais nosso futuro por vir. Estou tonta
comendo dos meus próprios versos,
exilada aqui neste buraquinho onde cai de tudo o pior.
Sou uma boémia nas horas tortas.
E a miséria é o luxo na minha vida.
Agora olho-me no espelho, olho porque o mim
ainda é uma incógnita do eu quando se parece
com o mais simples da minha inexistência.
Olho-me de novo. Incrível, quase a vida
se encerra no começo do arco carnudo dos meus lábios,
ansiando o beijo, o mar no toque das patas.
Mas como tenho medo da água, da espuma,
só me resta sonhar e tocar-me sem pressa,
na esperança de ouvir as ondas.
Sentir na epiderme como é ter o muhipiti
preso, electrocutado na minha garganta.
Olho-me: estou-me comendo com os olhos.
Devorando cada pergunta de mim -
assim se devoram a rosas em princípio de primavera.
A mim, que, de tão pobre a vida que tiram, sai barata.
20
Olha para o V comigo. Estas a ver?
É quase um buraco fundo. Um côncavo
refúgio. Voltado para o céu.