quinta-feira, 5 de março de 2015

ÉTER, DO LANÇAMENTO E DE OUTRAS FESTIVIDADES



Como escritor fui claramente recuperado por dois editores a quem estarei grato toda a vida, Nicodemos Sena, da Letraselvagem, de S. Paulo, e João Paulo Cotrim, da Abysmo, velho amigo e meu comparsa de escrita, e que decidiu apostar em mim nesta sua jornada editorial.
Acontecerá assim o nosso terceiro acto, ÉTER, um livro de contos, que será apresentado por Luís Carmelo, também escritor e homem de deambulações pelo guionismo de cinema, como eu.
Mas, incitado por uma manifestação simpatiquíssima de Isabel Pires de Lima, que na Póvoa do Varzim se me dirigiu espontaneamente para me dar conta do quanto lhe tinha agradado o meu romance A Maldição de Ondina (Letraselvagem, 2011, e Abysmo, 2013), e do facto de ter sido apanhada de surpresa pois desconhecia que, fora do jornalismo, eu tivesse livros de ficção escritos, surpresa que é a de muitos porque os meus livros anteriores não mereceram por parte dos editores o mínimo do esforço de divulgação que eventualmente mereceriam, vou pontuar estes dias que faltam até ao lançamento do Éter, divulgando alguns dos contos que lamento não terem sido lidos.
Começo com o conto que abre o Tormentas de Mandrake e de Tintin no Congo, de 2008 (Teorema) um livro de trezentas páginas, onde gastei dois anos, e que suponho ter sido guilhotinado pela Leya.



OS PÉS NUS DA SANDIE SHAW

O despedimento do meu pai, naquele meio-dia aziago, atirou-me para a casa de minha avó materna na rua Arco de Carvalhão. O nascimento da minha irmã, vaticinado para esse mesmo dia por sensores sísmicos, é que me forçou a atravessar o Tejo e a uma visita a Campolide. Os dois acontecimentos, nascidos do mesmo casulo, deliberaram a minha primeira ida a Lisboa sozinho.
Logo pelo início da manhã, o meu pai, que fervia em pouca água, ao compôr na linotipe o boletim da igreja, foi sugestionado pela sacanice do patrão não o haver dispensado para o previsível parto da mulher e escreveu por lapso em chumbo “o filho da puta” em vez de “santíssimo sacramento” — incidente que deixou coruscante o seminarista do encarregado.
“Vai, filho, quando vieres já passou tudo...”, exortou o meu pai, misterioso, ao almoço. Ruminávamos o polvo cozido em silêncio, enquanto a minha mãe tomava um banho e se rapava; a parteira já fora avisada.
O que me assustava não era provar que já era um homenzinho, o meu drama era outro, inconfessável, ou inconveniente para aquele dia.

Três horas depois, no Parque Eduardo VII, soube que uma desproporcionada medida punitiva se estendera a toda a família: um braço gordo e implicativo empurrou-me para o lago dos cisnes e eu catrapus num pinto. O cigano deu de frosques, nem esperou pelo gozo do espectáculo — a minha ensopada crista resgatou-se das águas para o eco das suas gargalhadas.
Aquilo é um cóio de valdevinos, prevenira a minha avó Judite, mas os meus nove anos corriam à minha frente, desprovidos de alarme, de Campolide ao Parque Eduardo VII e agora de retorno, ribeirinho da triste figura.
Abreviando, um pinto agarra uma niquelada cabeça de leão com a dextra tímida e faz soar três pancadas. Uma por cada andar. O prédio, pombalino, soma quatro vezes as idades dos seus inquilinos, à beira de cair da tripeta. Em 1967, na Rua do Arco de Carvalhão, num dos últimos prédios no centro de Lisboa sem luz eléctrica, quando um cigano gordo, de brilhantina, num empurrão de desdém me recomendou aos peixes.
Uma tia-avó — a gémea Albertina — vem recolher o triste, o candeeiro de petróleo acima da cabeça ilumina-lhe o pólipo no queixo, como é de hábito nas velhas solteironas e com cheiro a cola. Ai Toninho, que encharcadinho, o refrão perseguiu-me escada acima, como o bolbo da luz, comigo à frente a galgar o escuro — varado por uma vergonha inconsútil.
Eu avisei-te, reatou a minha avó, que só vislumbrava paz no mundo quando esticava com o rolo a massa tenra, eu avisei-te: quatro olhos não chegam para os matulões do Casal Ventoso. E agora, como vais para casa, perguntou o tio Pedro Ventura, marido da outra
tia-avó — a gémea Mariana — a da verruga na sobrancelha esquerda. Sim, como ir para casa, o único desígnio aceitável para essa noite.

Além disso, detestava aquela casa com um pé-direito onde se empilhavam sombras, o caruncho, a fuligem de séculos de petróleo queimado. Detestava a água borrifada de ferrugem e o corredor comprido com portas altíssimas e bandeiras de vidro, nas quais, caído o dia, lucilava o rasto de anjos tuberculosos. Ou pelo menos havia demasiada tosse por trás das portas, muito catarro a pegar de empurrão.
Como é que tu vais, miúdo, indagava o tio Ventura, expondo a gengivite que vagarosamente lhe defenestrava as favolas, seccionadas em três níveis: o gume amarelado, logo acima a massa parda das obturações, que dividiam o dente em ying e em yang, e por fim a haste, um corno de rinoceronte oxidado pelo tempo e a nicotina.
Não vai, sentenciou definitiva a minha avó, catando-me a última esperança e fazendo-a estalar entre as unhas dos polegares. Não, não veria televisão nessa noite. Ia ser o escárnio da escola. Aconteceu-me ler num moralista francês: ”O leopardo nasce com as malhas que tem e eu nunca tive tenção de me tornar melhor, nem de tal coisa me julguei capaz. Nunca reclamei qualquer espécie de virtude”. Absolutamente certo — e no entanto que preguiça, que desalento, que pequenez! Eu nesse dia não regatearia ter tido no jardim as malhas e as garras de um leopardo e à noite, nessa noite, projectava ser a Simone de Oliveira, ou, no mínimo, a glote que vibra nos trinados do Tom Jones. Mas não, um pinto não vai para casa.

    O meu tio Isidro não parava de rir. Chegou do trabalho às sete da tarde, eufórico, tinha recebido a notificação de que vencera um concurso de textos dramáticos para a rádio, e ao ver-me a boiar dentro do pijama do Ventura, rebentou numa gargalhada sem freio. Ao pinto acrescentou o calçudo e estava tudo dito.
Era um pândego com pretensões à vida artística e algum talento esbanjado em jogos florais — na realidade, era um adicto em jogos florais. Há jogadores que depois de verem desfalecer os alazões favoritos metem o selim às costas para poderem continuar a apostar: assim o meu tio Isidoro, um eterno Poulidor dos versos, que salivava a esmo. Mas dessa vez cruzara a meta em primeiro lugar.
O êxito foi celebrado com ginjinhas e biscoitos de gato. A peça, anunciou orgulhoso, chamava-se “Um Bigode para Três” e aludia a um dito com que a minha avó esconjurava a força da improbabilidade: “qual impossível, qual carapuça, se eu já vi um bigode para três!”. O que ele ainda não sabia, e pela qual seria mais tarde acusado de plágio, era que o dito da minha avó era o nome de uma peça portuguesa do tempo da Primeira República, a que ela assistira em miúda.
Para o meu tio Isidoro era a segunda grande euforia num ano. A primeira sucedera ao convite para fazer o relato radiofónico de um jogo de futebol na Rádio Renascença. Preparou-se exaustivamente, com exercícios à porta fechada, que por isso mesmo, nenhum membro da família poderia descrever. Só se sabia que ele se fechava no quarto em exercícios vocais, corporais, mediúmnicos — amoedando uma concentração de arrasar. A rua em peso contava os segundos que faltavam para a prova da fama e à noite no Café do Arco, o meu tio Isidoro, pleno de eloquência, prometia não gritar golo antes da bola estar reposta no centro do terreno para não haver enganos.
      E chegou o dia, uma partida para a taça, 16 horas à canícula: Freamundo-Casa Pia. Os ouvidos atarraxavam-se aos aparelhos de rádio e o sr. Diamantino Farinha, o vizinho de minha avó, limpou com um cotonete embebido em água oxigenada a cera do ouvido para não perder pitada na sua telefonia amarela, que a filha trouxera de Badajoz. Assim que o árbitro apitou eclodiu um bruá pela rua, numa descarga de saudações eólicas: a prova da fama.
O que a seguir se passou ficou nos anais do jornalismo: o meu tio dividiu o campo em quartas e quartos (ao todo, explicou-me ele mais tarde, em 128 divisões) como na rosa dos ventos, estabeleceu que as balizas eram os pontos cardeais e os cantos os pontos colaterais, e a bola circulava de leste para nordeste, enquanto o ponta-de-lança corria de sudoeste para norte, numa angulação de 75º graus, o guarda-redes defendia por se ter metido nos cornos do Bóreas, enquanto um tiro frouxo de fora da área era comparado a um Zéfiro esmorecido. Uma sarrafada de um defesa do Casapia valeu-lhe o epíteto, ó Adamastor, e a casa veio abaixo quando o meu tio Isidoro comentou ao segundo golo sofrido pelo Freamundo: “Arcanjo, o guarda-redes do Freamundo, é conhecido por gostar de golos bonitos!” Impôs-se um silêncio de muito calado na rua Arco de Carvalhão e só horas depois, já a noite se estirava sonolenta, é que uma trovoada de verão desanuviou as tensões.
A euforia desta vez parecia contudo ter um título de garantia e a garrafa de ginjinha marchou num instante — até eu tive direito a um cálice. Mas a minha avó reparou que eu participava menos que o habitual no gáudio familiar e vi-me obrigado a confessar o desgosto de não poder ver nessa noite o Festival da Eurovisão. Igual ao Festival da Eurovisão, nesse tempo de gatos pardos, só vir do Minho para fazer duas romarias anuais ao santuário do Cristo Rei — era impensável falhar.
     Foi contrariedade que não a abalou sobremaneira. Guardou um segundo de silêncio, pôs-me a mão no ombro, atou os seus olhos de um azul seco aos meus, e disse-me, Toninho, sei que é aborrecido não veres o Festival, nós não temos televisão, nem nenhum dos cafés do bairro e vai ser difícil irmos mais longe, tu não tens roupa e já sabes que as tuas tias não gostam de sair à noite. Mas para que não penses que fomos sempre pobres como somos hoje, eu vou-te con-tar a história da nossa família. Escuta — e puxou-me para si — enquanto a sua voz se perfilou:

«Vou-te contar como minha mãe me contou, e juro-te por ela, tão séria que tomou votos religiosos depois da morte do meu pai, e pelo meu finado marido, o teu avô, Henrique... escuta: que um filho me morra de saúde se isto que te conto não for a verdade...»
Oh, mãe, olhe que o miúdo assim adormece... — atirou, divertido, o meu tio Isidoro.
«Bom, então foi assim... — humedeceu os lábios com a língua antes de continuar — A primeira alminha de que há registo na nossa família foi devorada pelos gafanhotos, numa praga famosa que veio de Marrocos e só deixou de semear a lamúria e a miséria quando tropeçou no Douro, que é rio profundo e turbulento e engoliu os demónios um a um e um a um...»
Devorado, avó, inquiria eu.
«É uma maneira de dizer. Os bichos comeram-lhe as colheitas, foram-lhe às papas na barriga, acharam a agulha em todos os palheiros, deixando o madeirame areado como prata, aquela revoada ia do chão aos quarenta metros de altura e roía de baixo para cima, avôs gafanhotos afiavam a mandíbula na pata dos filhos, que por sua vez abocanhavam as inadvertidas entranhas dos netos, e os de baixo entravam nas narinas das vacas e era um ver se te avias, houve porcos, os poucos que sobreviveram, que durante mês e meio só obraram olhos de locusta, durante uma semana, já depois daquela desgraça, continuavam a cair do céu penas de grous, patos e cegonhas, roídos até aos ossos, de tanto correr de susto houve coelhos que mudaram de sexo, e só em Reguengos desapareceram seis homens e o sino da igreja. O nosso antepassado, o João Falcato de Noronha, perdeu cinco hectares de boa terra lavrada, uma vara de porcos e a tosquia das ovelhas que lhe apareceram absolutamente carecas e consumidas duma insónia que durava até à morte. O rei D. Filipe, o cão espanhol, lá se apiedou do povo e distribuiu uns luíses de ouro que não compensaram os prejuízos mas davam para vestir as vergonhas, que o desmazelo de muita gente deixou os cueiros às janelas. Foi o caso do nosso familiar, o João Falcato, que não aguentou ver a sua quinta devastada e abalou para Sines. Aí se estabeleceu no negócio dos cabedais — fazia malas, sapatos, cintos, selas, casacos, tinha uns mãos de ouro que a tia Albertina (a tia-avó que cheirava sempre a cola) herdou, e por isso ela trabalha numa fábrica de malas e carteiras. A miséria do reino foi tão grande que o rei Filipe, o cão espanhol, foi falar com o Papa Gregório, e este, num gesto de misericórdia alterou o calendário, de modo a que esta data funesta fosse apagada para sempre da memória do povo...»
Como é que se muda o calendário?, tornei eu, atordoado.
«É simples...- humedeceu de novo os lábios — passámos automaticamente de 4 de Outubro para 18 do mesmo mês, para nos ajustarmos, segundo as explicações oficiais, ao Calendário Gregoriano. Mas toda a gente sabe que na verdade essas duas semanas foram roídas pelos gafanhotos e disso fala o enorme silêncio que se fez sobre o assunto nas Crónicas do Reino. Foi a única coisa boa perpetrada pelos Filipes, e foi o que lhes valeu, se não os portugueses tê-los-iam varrido para os seus quintalinhos da Mancha. O povo é que é grato... Bom, continuemos, passemos por cima dos descendentes do João Falcato, que colaboraram com o cão espanhol. O seguinte membro da família que merece a nossa atenção é o Barão francês...
Francês? — exprimi eu, a medo.
O tio Ventura fora buscar mais um candeeiro a petróleo, que acendia, para alegrar as paredes com mais umas sombras bruxuleantes, e a guitarra portuguesa, que afinava, baixinho.
«Já estudaste na escola as invasões francesas? O barão Hypolite d’Argot, era fidalgo de muitos cabedais, aqui Toninho, no sentido de uma riqueza que atrai as invejas e as concubinas...»
Mãe...- atalhou, censurador, o meu tio Isidoro.
«Era assim mesmo, e se quisesse ser prolixa e descrever as casas dos criados da casa, as camas de dossel dos moços de mantearia e das cavalariças; os muitos pátios de gado em que a água caía dos telhados, os passeios dos cavalos, corredores, serventias, passagens, saguões, escadas, janelas, fogões, palheiros, casas de lenha e carvão, fornos, e mais oficinas do seu Palácio estaria ainda a ser avarenta. Ele e o Napoleão eram unha com carne. E percebe-se porquê, em 1805 oferecera ao Imperador uma contribuição de vinte milhões de francos para o exército. Qualquer coisa que hoje daria para pagar a ponte sobre o Tejo...»
O tio Ventura sublinhou o meu espanto com um acorde na guitarra.
     «Mas Hypolite tinha uma vida graciosa, liberta das paixões da guerra, e governada por duas inclinações benfazejas: o xadrez e a ópera. E no belo canto o nosso Hypolite tinha um béguin... uma paixoneta... a avó está a treinar o francês, não te esqueças, “béguin...”, ele tinha essa pendência por uma cantora de ópera contratada pelo Teatro S. Carlos, em Lisboa... o que incitava o seu gosto pelas viagens. Ora, tu sabes que em 1804, um Bonaparte ensoberbecido quis que as nações europeias adoptassem o bloqueio continental à Inglaterra, pelo que exigiu, ele não pedia, exigia, o encerramento de todos os portos portugueses aos navios ingleses. E vendo o seu amigo Hypolite aos suspiros pelos cantos do palácio, intuiu ali saudade da ave canora que gorjeava no S. Carlos e encarregou-o de verificar o cumprimento das disposições imperiais em Portugal. Hypolite ficou radiante, ainda que um tanto apreensivo, pois o seu mutismo nos salões não era unicamente fruto das longínquas moradas do coração, e reflectia igualmente a sua genuína entrega ao jogo de xadrez que mantinha por correspondência com o conde Tommaso D’Arcy, de Lampedusa.
Partiu o nosso Hypolite, de Paris, com uma esquadra de doze cavalos, um tenente, e dois correios. A trote, suave, pois Hypolite, que era de ideias muito definidas tinha uma regra que não transigia: não se podem fazer duas coisas ao mesmo tempo. E enquanto se mantivesse concentrado na sua partida por correspondência, o passo não podia ser veloz.
A atravessar os Pirenéus, uma desgraça: um relâmpago fulminou o cavalo que levava o tabuleiro, reduzindo as peças a cinza. Foi uma tarde de desnorte, pois apesar de cultivar as ideias claras, de recorte inapelavelmente lógico, Hypolite não era portador duma grande memória. Houve que endereçar um pedido de socorro a Tommaso D’ Arcy, que duas semanas depois lhe enviou um esquema do jogo, acompanhado duma certificação assinada pelo arcebispo de Lampedusa em como não o estava a enganar sobre as posições das peças. E não devia estar a mentir, pois Hypolite tinha um peão de vantagem.
     A urgência punha-se em achar um tabuleiro, mas aí foi que o seu tenente teve uma ideia brilhante. Eles levavam com eles um tosquia dor que, garantia o oficial, era capaz de caprichar nas tesouras desenhando na perfeição uma mosca sobre o nariz de um cão desenhado no pêlo do cavalo. E assim, fazendo desenhar à minúcia o tabuleiro e os últimos lances no dorso dos cavalos da esquadra, Hypolite, na travessia duma planície, a descer uma colina, numa subida a pique, acordado, a dormir, como moldura para a sua própria e involuntária distracção, teria permanentemente à vista as últimas evoluções das peças no tabuleiro, o que redundaria numa suma vantagem. E cada cavalo comportaria um mínimo de seis jogadas.
Hypolite nem hesitou, distribuiu vários luíses pelo tenente e pelo tosquiador, que de facto desenharia um perfeito cavalo branco em corrida no dorso de uma abelha (as suas tesouras eram amoladas hora a hora), e assim retomou, com vagares — à medida das exigências do jogo, das cartas de Tommaso, da requintada minúcia do tosquiador, dum pequeno desvio às oficinas de Goya — o rumo a Portugal.
Quando em 13 de Dezembro de 1807 Junot hasteia a bandeira francesa no castelo de S.Jorge, em substituição da bandeira nacional, o nosso barão passa o Zézere a vau, a cismar se movia o Bispo branco para Bg8+Rg6 5, em posição de ameaçar a Rainha preta. Feria-se a batalha do Buçaco quando o nosso antepassado, a 25 km da refrega, dava instruções ao seu tosquiador para avançar o cavalo para Cxe4!fxe4, que lhe auspiciaria o definitivo cheque-mate.
No dia seguinte, ainda enlevado pela sua vitória e habituado ao tutear sem freio com Napoleão, o Barão Hypolite comentou com o General Francês Massena: “É contornando o inimigo, mordendo-lhe o flanco, que se ganham as batalhas!”. Falava do xadrez, mas Massena julgando que ele criticava a táctica que lhe ditara a derrota no dia anterior, no Buçaco, mandou-o prender...»

Eu estava realmente fascinado, mas para desafortuna da História e da exímia narradora, no prédio ao lado, a cinquenta centímetros de argamassa, tijolo, caliça e tinta, começou a soar, na televisão, o hino da Eurovisão, que indicava o começo do Festival. Caíram-me duas lágrimas.
Houve um momento de paralisia; as maçãs-de-adão boiaram sem remédio num mar de esquinado silêncio. Não durou muito, o meu tio Isidoro levantou-se num grito de eureka e dirigiu-se à cozinha, voltando de imediato com uma série de funis de lata.
O meu tio Ventura apanhou a ideia no ar e, lançada a gargalhada, distribuiu os funis, enquanto se colocava a jeito, o bordo do funil encostado à parede, o ouvido encaixado na boca do funil, a guitarra ao peito e os dedos da mão no prolongamento do ouvido. Ficámos atónitos, mas rapidamente aderimos à ideia, eu numa lágrima convulsa de risos.
Começou a primeira canção, francesa. O meu tio Ventura, ao terceiro compasso já a acompanhava, reproduzindo a melodia, a minha tia-avó Mariana (a mais musical das três irmãs) imprimia o ritmo estalando os dedos, e o meu tio Isidoro improvisava uma letra que coubesse no molde que a guitarra desenhava:

«Via-a nos correios comprava um selo para os Bijagós.

E o mundo éramos nós naquele novelo
     sem bloqueios.

Refrão:

Vem, vai
     o coração não bate
num só dia
Vai, vem
comigo a Marte
num passe de magia»

E seguiu-se a espanhola, a alemã, a belga, a italiana... a portuguesa, num riso e êxtase pegados. As sombras na parede acompanhavam aquela desgarrada presa por funis ao coração lucilante dum miúdo e eu sentia que aquele velho aposento de caliça e canos rangentes era maior que o mundo, que nele cabiam jardins de cura às desilusões de uma vida.
Ainda hoje me recordo das melodias e de três dos refrões, e, nessa noite mágica, a única coisa que eu não vi do Festival da Canção foi os pés nus da Sandie Shaw.


segunda-feira, 2 de março de 2015

DOIS ALEGRES ESTAROLAS NA PÓVOA DO VARZIM

foto de ricardo martinho gaspar

E ao fim de dez anos reencontrámo-nos. Foi estupendo e rimo-nos muito, sobretudo de nós, pois estamos ambos naquela fase em que rimos mais com os outros do que dos outros. Chegámos exactamente ao mesmo tempo, uma hora antes do comboio para o Porto, a Santa Apolónia, e despachámos nestes dias algumas garrafas e um ror de memórias. Ambos os mesmos trafulhas que nos conhecêramos. Para se dar conta da inabilidade com que lidamos com a vida vou fazer uma inconfidência. A dado momento neste almoço no Cais de Sodré, depois de libertarmos o Cotrim para um almoço de família, o Paulo vê uma valquíria ruiva a entrar na tasca e diz-me abismado: Cara, eu fiz passagens de modelos com esta rapariga, quando tínhamos vinte e tal anos. A seguir à gargalhada de nunca o ter imaginado como modelo (já nos conhecemos nos trintas), instiguei-o a meter conversa com a senhora, pois seria engraçado conversarem trinta anos depois. O Paulo encheu-se de coragem, pôs-de de pé, esperou por ela cinco minutos, enquanto a senhora despachava a bica ao balcão, e quando ela saiu como uma brasa na algidez da tarde perguntou-lhe, com a voz mais suave que conseguiu: Desculpe, a menina onde estava há cinquenta anos? A senhora - altiva, bonita, senhora de si, os cabelos ruivos caídos até meio das costas - olhou para ele incrédulo, fez um sorriso fatal, como se diagnosticasse aí toda a tolice do interlocutor, e atalhou: Há cinquenta anos? E zarpou, abanando a cabeça por ter sido tão fácil desmanchar o figurão, sem dar tempo a que ele pudesse ripostar, Mas nós conhecemo-nos. Depois rimos como perdidos, com a inabilidade dele, que seria a minha, se fosse ao contrário. Só damos para a literatura, por isso aqui fica o texto que o Paulo leu sobre o meu livro, Éter, na Póvoa do Varzim, nas Correntes de Escrita, e a comunicação que aí fiz. 
O texto que sobre o belo livro do Paulo, A Doença da Felicidade, li na Póvoa, postarei amanhá, pois tenho ainda de transcrevê-lo do caderno:  

«Éter trata-se de um livro de contos e que têm como leitmotiv a impossibilidade de se apreender o mundo, não só porque ele mesmo é múltiplo, mas principalmente porque nós não somos lineares como a aprendizagem imaginária que fazemos do tempo. Nós somos como a nuvem electrónica de um átomo. Se sabemos onde estamos, não sabemos quem somos, e se sabemos quem somos não sabemos de onde viemos, e se sabemos de onde viemos não sabemos quem somos.
No primeiro dos contos, “Coração Quase Branco”, o autor recupera um acontecimento real e trágico da Lisboa dos anos 90 do século passado, o suicídio do alfarrabista, tradutor e surrealista Ricarte-Dácio de Sousa (precedido do assassinato da sua mulher e filho), relato que tem como fundo um certo underground literário da cidade, e de cernelha espeta-nos a farpa curta da Maputo de hoje e das suas misérias. Uma miséria que é extensível ao próprio narrador, e que com isso estabelece um paralelismo com o acto do alfarrabista de Lisboa do século passado, e uma tentativa de encontrar nas fezes dos actos de uma vida, a pista que nos conduza ao animal que se pretende caçar. O conto é extraordinário a vários títulos, e o seu melhor encontra-se precisamente na capacidade de transladação do corpo do morto para a cidade de Maputo. Da miséria do objecto da narrativa para o autor da mesma. E neste acção mostrar-nos aquilo que parece inevitável: ninguém é ninguém, somos sempre migalhas de “por acasos”, e com isso temos de avançar, porque a vida não tem narrador. A miséria é muito maior do que se pode imaginar, mas a cobardia ou a coragem, ou apenas uma capacidade tremenda de insensatez, nunca iremos saber, leva-nos sempre a ultrapassar o pior, nem que seja com uma flor, como se torna de evidente beleza no final do conto: “Vou à varanda. Fumo, balançando o corpo contra a amurada. No quarto andar da embaixada da Rússia há duas luzes acesas. Às três da manhã, alguém lê uma biografia de Laika, a cadela. Os tiros não param; quantas crianças baquearam nesta rajada? Os motins na cadeia terão vingado? É caso para recear o pior. Até as buganvílias se apagam no escuro, no muro lá em baixo. Adoro buganvílias. Está uma noite óptima. Inclino-me.
No quarto conto, “O Beijo no Arame”, a narrativa abre-se, deixando ver o mundo da criança a tornar-se maior, onde tudo é mito, principalmente o sexo, que a mais das vezes não passa de uma palavra estrangeira. Estes mundos diferentes, diria mesmo mundos paralelos, pois é o que melhor se aplica à técnica narrativa de Cabrita, explodem em nós só pela presença de um rio e tudo o que ele separa, como no caso desta passagem em “O Beijo de Arame”: “Uma tarde magnífica foi a que nos fez deambular por Cacilhas e imediações. Estava um sol radioso mas um calor brando e metemos pelo cais do Ginjal, dispostos a vasculhar os meandros, pátios e becos daquele casario à beira Tejo, com Lisboa, para nós outro mundo, do outro lado.” Esta obsessão por escrever o mundo em camadas, como se o mundo fosse vários em simultâneo, encontra o seu paroxismo no conto “Kamasutra para Rouxinóis”, também ele o conto mais extenso do livro, onde a narrativa convive em simultâneo com tempos e espaços diferentes. Nós mesmos somos mundos paralelos para nós mesmos ao longo da vida e em cada instante. Se em “O Beijo de Arame” tomamos uma consciência táctil do mundo em que atravessámos o rio que nos leva da infância à adolescência, em “Kamasutra para Rouxinóis” a consciência de sermos vários, de que atravessamos diariamente rios entre um e outros uns que somos, chega a levar o leitor à náusea, ao desconforto de se ver a ser sem região demarcada, de se ver como a nuvem electrónica de um átomo. E nem o final brilhante e belo nos deixa mais aliviados. Mas “O Beijo de Arame” mostra-nos ainda um outro lado da realidade, bem mais pertinente neste livro: a de que em pouquíssimas décadas o mundo mudou de tal forma, que temos dúvidas se esta narrativa será alguma vez entendida pela carne de alguém nascido depois da década de 1980. Este conto, que em outras décadas atrás poderia muito bem ser entendido como um conto de formação, na sua metade, hoje é apresentado quase como uma provocação. E isso, em quem como eu nasceu na década de sessenta do século passado, transforma-se em mais um corte no coração. Os mundos das nossas infância e adolescência estão definitivamente em outra galáxia, perdida para sempre no espaço e no tempo. Pois quem aqui pode imaginar isto: “(...) queriam ir ao cinema para verem pela primeira vez uma vagina. Como nós. Pena o rigor da entrada, proibida para menores de 21. Mas nos cafés, nas paragens de autocarro, nos ajuntamentos de rapazes, não se falava de outra coisa, dos mirabolantes formatos que podia ter uma genitália feminina. Em gancho, com a forma de um prato, ou do bico de um polvo, da cor de melancia, ou prateada, com dentes, algumas tinham por dentro as cataratas do Niagara e outras apresentavam-se mais secas do que nozes; instalara-se um charivari diabólico. O Falua garantia que parecia uma ostra, mas nenhum de nós havia visto uma ostra, pelo não podíamos medir a plausibilidade da comparação. Alguém de repente murmurou que na cervejaria Farol, em Cacilhas, havia ostras, e descemos em corrida dois quilómetros até à montra preciosa. Éramos cinco. Embasbacados, porque as ostras na montra estavam fechadas e parecia-nos impossível que o Falua se referisse à forma exterior da concha, laminada e brutal. E que feia, como disse o Spencer, quem teria a coragem de olhar uma cona pela segunda vez, se fosse igual?
E embora haja aqui e ali algumas pinceladas de ternura, não é esta que vamos encontrar no conto, mas o escândalo. O escândalo de ficarmos face a face com um mundo perdido, o escândalo de estarmos vivos e nada existir para provar de onde viemos. Aquilo que vivemos já não existe. Nenhum dos nossos descendentes poderá encontrar aquilo que foi a nossa vida. Estamos vivos neste planeta, mas como se tivéssemos descido de uma nave espacial mais obsoleta do que este planeta Terra. Tornámo-nos numa geração sem passado. Um dia nós mesmos iremos duvidar de que isso tenha acontecido. Quem sabe não nos aconteça em relação às nossas vidas, o mesmo que acontece ao francês, herói do conto “Cemitério dos Navios”, que indo enterrar o seu cão morto, encontra um autóctone a quem pergunta:
– Conhece o Cemitério dos Navios?
O outro fica um instante a pensar, antes de encolher os ombros e lhe responder:
– Não existe.
– Não existe? – interroga Raoul, aflito.
– Não – sentencia o outro –, nunca existiu.
Já no segundo conto do livro, “Chinas e Matraquilhos – um réquiem para três gerações”, onde dois irmãos visitam o pai, ao fim de muitos anos, e ao levarem-no numa viagem em que ele morre no banco de trás, ficamos prostrados de comoção e metafísica, como se só depois de não estarmos cá, nos fosse possível uma centelha de atenção. No fundo, toda a vida acaba sempre num banco de trás de um carro, parece dizer-nos o autor, na maestria com que nos leva nesse conto.
A escrita de António Cabrita, ao longo dos contos, vive acima de tudo da preocupação com o uso que as ruas dão à língua, a chamada linguagem coloquial. Estamos diante de alguém que quer cristalizar as palavras que formaram pessoas, as palavras que fizeram parte de um tempo, que pode ser o de hoje, e que se vão inevitavelmente perdendo. Por outro lado, de que modo poderia António Cabrita mostrar-nos o que não existe, se não com inexistentes palavras, inexistentes expressões? Inexistentes no sentido em que, na maioria dos casos, já não são mais empregues no uso dos nossos dia-a-dia, ou são usadas em regime de excepção, contrariamente ao que já foram. São os casos exemplares de “aldra”, “zuca”, “sarapitola”, “escarumbas”, “turras”, “embarcado”, “salgalhada” “à pinha”, “chavascal”, “catrefada” e muito outros.
Há também ao logo do livro frases de esplendor, frases de poesia, como são os casos de: “Nunca tinha encontrado uma miúda assim, com uma asa de avião em cada palavras.” (O Beijo de Arame); “O Falua estava lívido, faziam-se oito camisas com a sua brancura (...)” (Ibidem); “(...) Deus não olha as coisas como elas são, mas como elas eram. Por isso é que para Deus é sempre verão...”; “(...) não sabes como achar dinheiro para dar ao teu filho a educação de casta que sempre imaginaste (Columbia, Oxford, oito anos de piano e quatro línguas mobiladas por dentro)” Ou esta que é simultaneamente poesia e um risco teórico, indicando-nos com bastante precisão o que podemos esperar deste livro: “(...) voltava a escorregar para o negrume da literalidade (...)”. Negrume da literalidade, que fica quase sempre lá fora, fora das páginas do livro.
Termino por salientar a pertinência, e o feliz achado, do título do livro: Éter! Pois é precisamente aqui, na insubstancial matéria pensada da antiguidade, que estes contos se passam. Naquilo que em cada tempo não existe, nem nunca existirá, mas será sempre o mais importante.»

E aqui posto a comunicação que fiz, nas Correntes de Escrita:

«A PALAVRA E O SILÊNCIO: CONVERSA DE TIAS

Talvez não seja o melhor modo de começar, reconhecer que às vezes se desprende uma uma tal solenidade no uso e na evocação do silêncio, como este se fosse um espelho demasiado límpido, que me vem logo à cabeça, em contraponto, um verso de Haroldo de Campos: “O redondo oceano ressona taciturno”. E por isso, para apalpar o território movediço do silêncio sem nos colocarmos em bicos de pés, vou contar a história de duas tias. Vamos à primeira.
A minha mulher teve uma tia, a dona Escolástica, que aos vinte anos, viajou de Goa para Lourenço Marques no fito de casar com o noivo que a família lhe arranjara. E, após três semanas de mar aberto, assim que da amurada do paquete ela assestou os binóculos no cais e se apercebeu do sujeito ridículo, um caga-tacos bexigoso e barrigudo, que esperava por ela, tomou a decisão de entrar no quarto de núpcias para só sair dali para a tumba. O que cumpriu. Nos 40 anos seguintes nunca viu sequer, por uma vez, as acácias vermelhas a florir, nunca. E durante 40 anos só falou com a concisão necessária para repudiar a sua sorte. Obedecera aos ritos e à lei – em contrapartida o seu gesto silenciou o mundo à sua volta, obliterou-o.
Já se fizeram inúmeras narrativas em torno desta personagem que pôs uma pedra sobre a sua vida. Todas as tentativas falharam, pelo mesmo motivo: adoptam um ponto de vista exterior, o do marido e das figuras em torno da que se emparedou em vida, e mesmo que polifónico o enredo manca, ou fica rapidamente saturado, sobra-lhe algo. Porque afinal a densa experiência do silêncio é intransmissível, do mesmo modo que não se comunica pelo telefone a espessa experiência do sarampo (Wittgenstein).
Pior, pressinto que os poderes do silêncio podem ser devastadores, como se verifica nesta parábola que nos mosteiros zen se conta aos iniciados.
Havia um monge budista famoso pela sua imensa sabedoria, coroada por um silêncio inquebrável. Todos os noviços do mosteiro o reverenciavam, mas, cumpridos os 85 anos, ao verem que declinava a sua saúde, decidiram pedir-lhe que, por fim, falasse.
- Explique-nos, antes de morrer, o que em todos estes anos haveis aprendido e contemplado. Não vos ides sem deixar-nos uma pista que nos oriente.
E o ancião, respondia a tudo com um sorriso. À medida que a saúde lhe empalidecia, a impaciência crescia entre os noviços. A um ponto que, no seu leito de morte, desataram aos berros, para que ele reagisse. - Não sejais egoísta e cruel! Para quê levar para o túmulo tudo o que pode servir-nos como luz e guia. Porém, o ancião continuava emudecido, imperturbável entre os jovens que começavam a maltratá-lo. E foi só no momento de exalar o último suspiro que disse uma palavra, a sua única palavra: - Fogo!
E o mosteiro começou a arder. O mosteiro ardeu até aos caboucos.
Nem sempre, como aqui, menos é mais, e não creio infelizmente que estejamos à altura de recuperar para o silêncio esta medida incandescente, pois temo que não passamos de ociosos bombeiros dominicais que, como diria o Montale, até para sonhar o fazem a dez por cento. Contudo, contei esta história a seguir à outra porque suspeito que a suposta renúncia da tia Escolástica se alimentava da expectativa de que a força do seu sacrifício desencadeasse nas parcas palavras que emitia um poder mágico, o tal menos que é mais; e que um dia ao sussurrar Fogo o desamado caga-tacos do marido fosse imediatamente consumido pelas chamas, carbonizado. Ora, a tia Escolástica, para conservação da sua sanidade mental, devia ter feito aquele espectral exercício que o encenador Peter Brook inventou para os seus actores quando os mandava para um canto da sala de ensaios e recomendava: «vai, e não penses no urso branco!», pois aí ter-se-ia dado conta da fatuidade de pensar que podemos comandar o silêncio.
Façamos agora um intervalo, antes de irmos à segunda tia, para lembrar que em todo o século XX houve uma valorização estética do silêncio, seja pelo lado da desconstrução como no movimento Dada, seja pelo inescapável fascínio que fazia da arte uma disciplina para o silêncio, condensando-se neste uma meta inatingível mas sempre almejada, como se o silêncio fosse o propulsor que nos projecta na região inefável do indizível. O mais difícil nesta equação julgo que se prende com o facto de sermos portadores da palavra e de estarmos convencidos que o pensamento é linguagem, esquecidos de que não pensamos exclusivamente por palavras, embora pensemos às vezes em palavras, sendo estas arquipélagos flutuantes e esporádicos.
Será o silêncio a substância dessa ondulante consciência oceânica, a que voltamos sempre, carenciados de sigilo, como a um útero? É uma hipótese. Mas vulgarmente a nossa relação com o silêncio está viciada ainda pelo dualismo, o ou é menos ou é mais, e isso abstrai-nos do facto de que as suas manifestações são múltiplas, intermináveis, oraculares, no sentido em que o silêncio só indica uma probabilidade e não traz respostas prontas, e, no fundo, prefere bifurcar-se numa deriva sem fim.
Mais: o paradoxo é que não existe silêncio sem contacto, pois não será o silêncio isoladamente tão pouco perceptível como o vento, que necessita de uma árvore, da rebentação do ar nas suas ramagens?
Portanto, resumindo, há uma linhagem de criadores para quem a palavra não passa de uma sombra mitigada do silêncio, atribuindo-lhe uma dimensão transcendental, uma espécie de polinização do Absoluto, que só na nossa fusão com o silêncio, se deixa entrever. Deixem-me confessar-vos que, pelo meu lado, não sou tão ambicioso e deixo essa acareação com o Absoluto para os místicos, aceitando para mim uma formulação de um aliado improvável, o Melo e Castro, quando escrevia, que “o silêncio é comunicação sem mensagem”.
Bom, agora, em minha defesa, tenho de puxar à liça a outra tia prometida e contar que durante a minha infância convivi diariamente com uma pessoa surda-muda, que vivia em minha casa e me levava à missa. O verdadeiro enigma para mim, naquele caso, não era a mudez dela mas o enigma da distribuição da Palavra de Deus. Como é que o Sopro de Deus lhe chegava aos ouvidos? E, se ela lia nos lábios do padre, como mensurar o quilate da Palavra nessa comunicação semi-adivinhada?
Porém a partir desta minha experiência deixei de considerar o silêncio como algo de mítico para o qual toda a palavra deve confluir, ou de reduzir a palavra a um trampolim deficitário para a expressão do inefável. Eu tive uma educação pelo silêncio, como uma experiência material, inapelável, concreta, que ainda por cima se mesclava com o afecto, e essa relação fez-me perceber que existem modos de comunicação que estão fora da consciência, no sentido de prescindirem de verbalização, tendo intuído aí o que dizia o Bateson sobre a impossibilidade de existir a não-comunicação.  Esclareceu-se-me aí que o silêncio pode ser uma comunicação ainda sem mensagem, da mesma forma que há pensamentos que procuram os seus pensadores-veículos.
Por outro lado, a circunstância de ter vivido com alguém que fazia as consoantes com o corpo e as vogais com os olhos mas a quem não saía uma palavra claramente articulada, ainda que movesse os lábios, em imitação dos outros, ensinou-me que a palavra é um luxo que não se pode desperdiçar, nem pela mentira, nem pela frivolidade, e que nos cabe a responsabilidade ética de não deixar por formular uma única palavra que seja necessária.   
Esta experiência prematura de contacto com a presença do silêncio na comunicação fez-me adoptar, já adivinharam, uma relação com o silêncio que se aproxima mais da polarização oriental, onde o silêncio não é o oposto do som ou da palavra mas antes uma posição embrionária, que prepara e antecede a expressão.
A partir daí o que me interessa não é tanto o esforço de definir o silêncio, mas, de modo mais prático, como acomodar a cama, o percurso e o estuário que o silêncio faz em nós. O americano David Thoreau iluminou tudo o que eu desejaria dizer quando escreve: «Não é a forma que o escultor dá à pedra que importa mas o que a escultura faz ao escultor».
Até porque no meu entender só há inefáveis relativos e não absolutos, ou seja impõe-se uma nova dimensão indiscernível em cada ciclo da nossa evolução ontológica, dado acreditar que começamos de uma maneira e acabamos de outra. Passamos da madeira, ao ferro, para usar uma metáfora, e nesta passagem, por termos mudado de configuração atómica acontece não reconhecermos as constelações e precisarmos periodicamente de uma nova carta astral. Alvitro, assim, como dizem alguns antigos que o caos é quase sempre uma ordem por decifrar, a ventania que despenteia a estatística. E sublinho o «quase» porque, por uma questão de sanidade mental, devemos conservar uma margem de liberdade para o aleatório e para nunca nos esquecermos dos limites da racionalidade.
Do que advém, no meu caso, que o silêncio seja o outro nome que damos ao acto mediante o qual a concentração nos esvazia. Do mesmo modo que a dança se intensifica quando se apodera do corpo, ou a sonata soa mais expressiva quando o seu intérprete se esquece de si mesmo no acto, o silêncio é o acto de esvaziar, e de nos pôr à escuta, e a partir daí a palavra e o silêncio retroalimentam-se e todo o real potencia-se no processo desse engendramento recíproco, diria até, desse entusiasmo recíproco.
Entusiasmo que legitimou males-entendidos e que Platão escrevesse: «o poeta é uma coisa leve, alada, sagrada, e não pode criar antes de sentir a inspiração, de estar fora de si e de perder o uso da razão». Confesso que só lhe perdoo porque, quando por trabalho o tenho de ler, em seguida vou invariavelmente ao talho e, apontando a máquina do fiambre, peço com Nicanor Parra “dê-me cem gramas de Platão mal passado, por favor!”.
Abra-se um parêntesis para referir que se até aqui ainda não falei do tópico da liberdade isso decorre desta estar implícita no estado de exaustiva evasão de mim que ocorre de imediato sempre que me esvazio para deixar que aconteça o poço da escrita. O que não dizer que este esvaziamento seja um estado de mudez, pode haver vozes e até algazarra, pois o silêncio orbita também na alegria visível nos almoços dominicais que víamos no cinema italiano, onde o silêncio se manifestava pela teatralidade duma comunicação que flui sem ruído, irmanando.
Neste sentido, e incompatibilidades (com o Platão) à parte, por muito que quisesse não posso escamotear que sou agido pelo silêncio de uma forma concreta, fertilizadora, sendo que nesse estado de fluidez só existe o perigo de o entravar,  quando estupidamente desato a perguntar pelo porquê do que estou a escrever. Para que nos continue a nutrir, o silêncio necessita de encontrar em nós um pouco de inocência e diria até de idiotia.  Dado haver um kairos do silêncio, um sentido de oportunidade em relação ao momento exacto para apanharmos o varão do eléctrico do silêncio que desliza à nossa frente, no começo da subida. Não se julgue porém que o apanhamos à nossa vontade, embora depois de muito adestrados possamos por vezes conjugar a oportunidade.
Lamento não ter mais nada a dizer sobre tema para além do que relataria a sela suada de Lord Byron, que era um óptimo cavaleiro e se lixou quando, por vício da rima, quis ser marinheiro.
Uma última nota para lembrar a aliança entre o silêncio e o desejo.
Acontece interrogar-me como nos expressaríamos se não houvesse uma palavra para designar o silêncio e fico receoso. Mas o desejo liberta-me destes sarilhos. Pelo menos, tal como aparece neste poema de Brecht:
REMO; DIÁLOGO: «Fim de tarde. Passam deslizando/duas canoas, dentro/ dois jovens nus. Lado a lado remando/ Conversam. Conversando/ Remam lado a lado.»
Nada é dito, tudo permanece na sombra do sugerido, na ambiguidade que o silêncio também requer e, contudo, que a minha tia surda desvie os olhos neste momento grave, imaginem os meus amigos, como se pega nos remos, e na pesada analogia de tal gesto, embora o poema explicitamente silencie o que mete em presença.
Por isso quando este simpático auditório se vir à brocha com o peso do silêncio, aconselho-lhe que reme o possível, ou, se por índole ou educação for mais austero, que se dedique à vela.  »