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uma palestra dada em Maputo, em 2008:
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Na Índia, Deus pode criar uma pedra que lhe seja impossível deslocar, e sonhar um sonho do qual não desperte. O que seria uma impossibilidade lógica para o pensamento ocidental.
Na filosofia, chama-se a este impasse lógico uma aporia.
Mas não existem aporias na literatura. A Rainha de Copas de Alice no País das Maravilhas, diante da observação incrédula de Alice a uma coisa de que ela se havia gabado de ter feito, responde: “Achas impossível? Eu concebo pelo menos duas ou três coisas impossíveis antes do pequeno-almoço!”.
O que nos dá uma esperança. “Quem não faria melhor de si mesmo?”, interrogava o poeta Henri Michaux, e não vejo mal em crer que, modestamente, podemos melhorar. Em quê?
Quando pensamos que Shakespeare utiliza na sua obra 25 000 palavras, que Camilo Castelo Branco chegou às 18 000, e que nós, normalmente, não passamos de 3000 ou 4000, vemos como temos muito a melhorar. Mas serve-nos para quê, melhorar a nossa competência lexical e linguística? Serve para ampliar a nossa liberdade e dilatar a nossa consciência do mundo, pois, como dizia Wittgenstein, os limites da minha linguagem são também os limites do meu mundo e os limites da minha realidade.
No filme Bird, de Clint Eastwood, sobre o saxofonista de jazz Charlie Parker, há uma cena em que é referido de modo depreciativo o início do rock’n roll. Charlie calcorreia uma rua onde dantes só havia clubes de jazz e onde naquele momento unicamente se ouve a batida do rock’n roll. O saxofonista resolve entrar num dos clubes, e vê a animação dos jovens, que dançam e no palco descobre um dos seus antigos companheiros numa banda. Fica um bocado a ouvir e o que ouve enerva-o, e então, num impulso, sobe ao palco e tira o saxofone ao amigo. Foge com ele pelos bastidores e segue-se a perseguição de Charlie pela multidão, pelo músico amigo e pela polícia. Até que o apanham num beco. E então Charlie devolve ordeiramente o saxofone e explica-se ao amigo: “desculpa lá, eu só queria ver se o teu saxofone estava avariado, pois só te ouvia tocar duas notas”.
No instrumento que é a linguagem passa-se o mesmo, se não tocamos com todos os pistões a expressão fica coxa e a nossa compreensão do mundo que nos rodeia também, posto persistirem zonas penumbrosas que não iluminámos.
Antes dos hipermercados, por exemplo, não sabíamos que havia quatrocentas qualidades de queijos no mundo, e o nosso sentido do paladar fica decididamente muito empobrecido se a nossa biografia gustativa se resumir ao queijo Flamengo. Quem só conhece o Flamengo julga que a música só tem um instrumento: as congas. E jura que não existe o piano, ou o violino.
Antes da descoberta dos microscópios nós diríamos, ‘o mundo dos átomos não nos diz respeito!’. Contudo, pensem, na cabeça de um alfinete cabem 60 milhões de átomos e basta a fissão, a divisão de um deles, por acção do plutónio, basta que um deles se parta como a casca de um ovo para num efeito dominó, se desencadear o processo de uma explosão nuclear. No perímetro de uma cabeça de alfinete habitam 60 milhões de hipóteses de arrasar uma cidade! Uma porcaria tão insignificante, invisível, um átomo nem tem tamanho para um tipo se assoar, um verdadeiro zero à esquerda - e acaba com as nossas peneiras em três tempos. Se até a porcaria de um átomo se pode emaranhar no nosso destino, como renunciar a reflectir no que uma relação mal resolvida com a linguagem pode fazer da nossa vida?
E a coisa não fica por aqui. O poeta basco Bernardo Atxaga narra num poema a história de um ouriço que saiu do bosque e se pôs a atravessar a auto-estrada. Na sua língua, contando os verbos, as palavras não passam de 27. E o ouriço demora-se pachorrento no asfalto a pensar nas 27 palavras da sua língua: inverno, ouriço, águia, rã, caracol, minhoca, insecto, rio, fome, o sol está porreiro, etc. Pela estrada aproxima-se uma carlinga que ele não reconhece porque na sua língua não existe qualquer vocábulo para nomear aquela coisa monstruosa que se aproxima. Fica quieto a observar. E no momento seguinte é esborrachado porque a sua língua não compreendia a palavra “camião”.
Capacitem-se: nós todos somos este ouriço e o nosso trabalho consiste em alargar tanto a consciência do mundo como a sua nomeação.
A consciência era, para Fernando Pessoa, “a escada sem degraus”. Em cada patamar da escada ilumina-se um novo tipo de percepção, dado que ver uma paisagem do cimo da montanha altera a visão que se tem do vale.
Nessa “escada sem degraus” da consciência sucedem-se os andares. Demos a cada andar o nome de “um limiar”. Tomemos agora como metáfora da consciência o hotel Sheraton, em Lisboa: olhando a volumetria daquele edifício não cessamos de imaginar que o seu interior abrigará muitos graus distintos de acolhimento e de inteligibilidade, consoante se sucedem os limiares.
Coexistem naqueles 33 andares muitos tipos de níveis de consciência e de níveis de realidade. Todavia, a co-existência de um leque de consciências e perspectivas não as supõe equivalentes nem autoriza a irresponsabilidade com que hoje se opina que tudo é igual a tudo.
Tomemos uma pequena semente e uma cadeira. Uma cadeira decompõe-se em partes, uma semente é indivisível, e ao contrário da perna da cadeira - que serve para montar naquela cadeira, ou para espantar um ladrão, ou para se converter em dois mil palitos, e nada mais - a semente contém em gérmen a árvore. Outra árvore. E na árvore os troncos de cima estão expostos a outro tipo de ventos. Melhor: ser semente de jacarandá implica um conhecimento dos ventos ou do peso dos ninhos muito diferente do que aquele que está inscrito na semente de imbondeiro.
Na Índia, que desenvolveu um pensamento que, ao contrário do ocidental, repousa não sobre o objecto observado mas sobre o espírito que observa, a consciência é uma variável susceptível de se contrair ou de se expandir. A consciência é um balão, que pode mirrar ou encher-se magnificamente.
Podemos aceitar agora que durante a subida das escadas do 33, na subida de um para outro patamar do 33, de um para outro limiar, ocorra uma expansão da consciência e a sua conversão semiótica correspondente. A conversão semiótica designa a operação que permite a “passagem de mudança de qualidade sígnica, decorrente do cruzamento e inversão das funções situadas no alto e no baixo de um determinado fenómeno, em decorrência da mudança de dominante no contexto”.
Diante de uma frase destas fica-se logo sem fôlego, mais vale ir jogar bilhar. Que raio significa uma frase tão exdrúxula? Uma conversão semiótica, i. é, uma mutação do nosso olhar sobre o que nos rodeia, assemelha-se ao processo de virar uma luva para fora: o que estava dentro exteriorizou-se, o que desconhecíamos brotou, o lado das coisas que não víamos expôs-se. Verifica-se então uma dobra da consciência que amplia o mapa daquilo que conseguimos captar da realidade.
É o que acontece no seguinte verso do argentino Roberto Juarroz: “como uma árvore tombada do fruto”. Que imagem estapafúrdia - pode lá uma árvore tombar do fruto? Mas se pensarmos que um mau filho, o fruto, pode demolir uma familia respeitável, a árvore, verificamos que afinal isso acontece todos os dias. Se pensarmos que o insecto que se vai alimentar do fruto ainda na árvore é portador de um fungo que irá fazer adoecer essa árvore, vemos mais uma vez como a inversão que a metáfora produziu é afinal mais frequente do que julgávamos. Nós é que nos habituámos a pensar quadrado, de um único ângulo de visão. A poesia ajuda-nos a detectar outros ângulos, faz-nos realizar a conversão semiótica.
É como se um cego aprendesse a descer as escadas do 33 a pé-coxinho. Outra coisa impossível - sem tropeçar, e partir uma vértebra ou magoar um túbaro na queda? Sim, é possível quando a escada cresce à medida do passo do cego.
No século XVIII, o naturalista Lineu acreditava que as rochas, as montanhas, e a terra no seu todo cresciam à medida que se descobriam os aparelhos de medida. A régua, o telescópio, o teodolito – eis alguns aparelhos de medida. Por exemplo: para o Lineu, o camponês que viva numa quintinha e se debata com a pobreza tem vantagem em comprar uns binóculos pois de cada vez que espreita nas lentes o seu terreno ganha o perímetro de uma enorme propriedade. Brinco, mas para o aparelho de medida que é a nossa consciência convém um passeio frequente às veredas da poesia, que actua nela como a lente que amplia a escala do real. Ampliar os perímetros, eis um atributo da poesia. E isso leva-nos à segunda parte da nossa comunicação.
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Vou ler-vos o poema de um grego, Yannis Ritsos, que se chama O Corpo do Vento:
“Eu vi-o, em corpo inteiro, o vento, em corpo inteiro – diz –
deu-me bofetadas na cara, deu-me socos
no peito e nas pernas; os seus joelhos
bateram nos meus joelhos; pisou-me
os dedos dos pés; - vi-o, digo-vos eu,
aqui, corpo a corpo, ambos de pé. Agora,
tenho na boca uma enorme solidão
e nove folhas carnudas à volta do pescoço.”
Que qualidade nos fascinam no poema? A sua claridade, embora o poema inverta as perspectivas, o seu suspense, pois só no fim percebemos que fala uma árvore, e a plausibilidade – acreditamos que é uma árvore quem fala.
Desponta aqui uma das maiores aventuras da poesia, bem caracterizada pelo francês Christian Bobin: “Nomear o que se ama, é amar superlativamente, e um suplemento do amor, e é o que eu tento readquirir hoje. Mas isso não chega: sonho nomear a rosa com a língua que é sua e não apenas com os nomes correntes.”
Vemos aqui como, pelo menos enquanto projecto, a poesia tende a abrir o espaço do indizível e a activar uma nova experiência na realidade que o poema inaugura. Do que decorre que a poesia seja muito mais que uma “receita verbal”, um amontoado de versos ocasionais aprimorados pelo tricot que resulta de uma tradição de gosto induzida e caucionada numa prosódia, numa técnica discursiva.
A poesia, pelo contrário, faz-se de experiências que têm a sua carne no poema e que nos imbricam, alterando o nosso corpo e o nosso espírito.
A quem duvidar do poder da palavra refira-se o que acontece no decorrer de uma litania religiosa, onde, por indução da crença na palavra, o nosso cérebro segrega endorfinas, que têm uma função psico-biológica tranquilizante. Eis por que se enlouquece de palavras, através das palavras, ninguém enlouquece de comer bacalhau, ou por estar triste ou por ser abandonado, ou por ir à pesca com um urso, o delírio da loucura é causado pelas alterações químicas com que um fluxo ininterrupto de palavras intencionadas abala o sistema neuronal.
Espanta-me sempre que as pessoas limitem a nossa relação com a linguagem à sua função pragmática e a julguem anódina, transparente. As palavras não são inocentes de todo e uma das funções mais nobres da poesia é curá-las. O argentino Robert Juarroz di-lo esplendidamente quando afirma que a poesia deve «desbaptizar o mundo/ sacrificar o nome das coisas/ para ganhar a sua presença».
Os índios guarani no Brasil tinham um método imbatível para curar as palavras. O corpo semântico da língua guarani mudava sempre que alguém morria. Ou seja, falecendo alguém, todos os objectos que existiam nessa casa tinham de mudar de nome, salvaguardando o risco dos vocábulos ficarem contaminadas pela morte. Balde passava a designar Deus, e o vocábulo Deus aplicava-se a arco, enquanto a rapariga mudava nominalmente em rapaz. Caricaturo, mas era uma língua dunar, que colocava muitos problemas aos padres jesuítas que lá foram tentar doutriná-los, dado que como se queixava um em carta para o Vaticano, é difícil persuadir alguém sobre a superioridade dos nossos argumentos se em dois meses o jaguar, o verdadeiro símbolo do temor para os Guarani, muda 7 vezes de termo. Da mesma forma que a linguagem entre os Guarani nunca saía de um patamar adâmico, inaugural, na poesia a palavra procura a sua infância.
Pois deixem-me dizer-vos um segredo: a juventude encontra-se, não se tem.
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O que nos leva ao terceiro ponto da nossa comunicação.
Disse o escritor Vargas Llosa, numa entrevista:
“A ficção literária não pode competir com a do cinema ou TV. As ilusões forjadas pela palavra exigem participação activa do leitor, algum esforço de imaginação e às vezes, no caso da literatura moderna, complexas operações da memória, associação e criação – algo de que os espectadores são poupados pelas imagens.”
O que o peruano diz para o romance vale a dobrar para a poesia. Dantes o poeta escrevia metade do poema e o leitor com a sua interpretação “escrevia” a outra metade. Com a nossa imersão no mundo das imagens o jovem leitor, ou o mais maduro mas preguiçoso, encontraram na aparente evidência das imagens o melhor dos álibis. Nem sequer avaliam que a velha máxima de que uma imagem vale por mil palavras só era adequada antes da era dos “efeitos especiais” e das imagens digitais, voltando hoje a fiabilidade a comer maçãs à ombreira da palava.
Resulta deste estado de coisas um divórcio constatável entre o leitor e a poesia, na sua tradição mais genuína e criativa. O leitor só absorve o que é mais fácil, consumível e prescinde da sua participação no poema, do encontro que pode nascer desse adentrar-se no verbo. E defensivamente declara-se, ‘este poeta é hermético, não se entende nada do poema…Deixemos esta chumbada para os profissionais’.
Já dos versos do poeta renascentista espanhol Garcilaso de la Vega se dizia serem tão obscuros que havia que entrar neles com archotes, para entendê-los.
Na verdade, a poesia aponta o seu binóculo a um conteúdo comum para pesquisar uma nova escala e falar do desconhecido. Tentar dar uma forma inteligível ao desconhecido não terá naturalmente tradução simultânea para a linguagem coloquial. Aliás, apenas a comunicação publicitária é que faz uso de uma linguagem já testada. O que é que nos dá a comunicação publicitária? Flamengo, com embrulhos extraordinários, mas Flamengo.
Outra dificuldade se apresenta. A poesia do século XX, realiza uma segunda operação que cansa o leitor: o poema auto-reflecte sobre os seus processos criativos e a linguagem. No entanto, repare-se: o prédio do 33 não se ergueu sem andaimes. De igual modo, o poema não comunica sem montar os seus andaimes, a estratégia de como comunicar: daí que todos os poemas, apesar de veicularem um conteúdo, só respirem pela relação que estabelecem connosco, tentativamente.
Poemas que nos comuniquem a emoção causada pela morte de um filho, a beleza da namorada ou o desgaste do tempo são aos milhares, raros são os que nos transmitem também essa nova que é a experiência do poema e nos projectam como leitores para um outro lugar onde pressentimos, pela palpitação do verbo, uma superação do tempo e da contingência que provocou o poema.
A arte nasce da contingência (das coisas que acontecem à nossa volta, das alegrias, sarilhos, dramas e situações em que a vida nos atola) mas opera uma sublimação e não uma mera transcrição. O poeta surrealista Paul Eluard revela-nos o que é a sublimiçao ao definir o mecanismo do poeta deste modo: «o poeta quer falar da mulher que ama e fala de pássaros, quer falar da guerra: fala de amor, tão pouco conhece o poeta o título do seu poema senão após tê-lo escrito...».
Deduz-se obrigatoriamente daqui que não se fazem poemas sobre o sentimento, a guerra, a paz, a liberdade, as escolhas sexuais, mas com o sentimento, a guerra, a paz, a liberdade, o amor ou o ódio. Esses fluxos emocionais desembocam no poema como um feixe de energias e não como conteúdos em moldes pré-formatados. Aliás, o poeta distingue-se – diz o filósofo Rafael Argullol, e nós concordamos - por ser, não exactamente o homem mais sensível, mas antes aquele que atraído pela voragem do acontecimento consegue distanciar-se até poder articular em palavras que lhe sejam próprias.
Voltemos agora ao problema sobre a dificuldade de leitura dos poemas, ao seu hermetismo e ininteligibilidade. Talvez o problema radique noutro lado. Esperimentemos ler um trecho de um poema sofrível de José Miguel Silva, poeta de quem habitualmente até gosto. O poema chama-se Feios, Porcos e Maus, e diz assim:” Compram aos catorze a primeira gravata/ com as cores do partido que melhor os veste./ Aos quinte fazem por dar nas vistas no congresso/ das juventudes, seguem na caravana das bases,/ aclamam ou apupam segundo o mandato das chefias (...) Aos trinta e dois e bem o momento de começar/ a integrar as listas, de preferencia em lugar elegivel,/ pondo sempre a vileza em primeiro lugar. A partir/ do parlamento tudo pode acontecer: director/ da impresa municipal, coordenador, assessor de (….) No final, para os mais afortunados, pode haver nome de rua,/ com ou sem estátua, e flores, fanfarras de formol». Assim que acabamos a leitura, podemos voltar a cabeça no travesseiro e adormecer, absolutamente indiferentes à sorte do poema, que verteu o seu conteúdo sem estabelecer connosco uma relação. O poema deu-nos a sua mensagem, mas como num comunicado, no momento seguinte está esquecido. O poema não passa de uma “coisidade” exaltada.
Se, pelo contrário, lemos este trecho de Herberto Helder (que também tem poemas menos conseguidos): «Minha cabeça estremece com todo o esquecimento./ Eu procuro dizer como tudo é outra coisa. / Falo, penso./ Sonho sobre os tremendos ossos dos pés./ É sempre outra coisa, uma/ só coisa coberta de nomes./ E a morte passa de boca em boca/ com a leve saliva,/ com o terror que há sempre/ no fundo informulado de uma vida.» somos sensibilizados por uma significação radiosa, mas dupla, que nos escapa à primeira e obriga a reflectir e a passear com o poema nos escaninhos mais arejados do cérebro até conseguirmos que o tempo nos dê a resposta a cada uma das metáforas que nos intrigam no poema.
A inapreensão ou a incompletude da nossa leitura vai perfazendo um trajecto, onde nós e o poema fazemos «um», no perpétuo vaivém de uma relação. E como a nossa inteligência sofre da ilusão entranhada de que temos de ver «tudo claro» voltamos ao poema que nos intriga várias vezes, dando conta de que em cada leitura obtemos uma resposta diferente para o mesmo. E então subimos várias vezes as escadas do 33 só com este poema a jogar xadrez conosco no nosso íntimo, e de cada vez que tornamos a descer as escadas a configuração fisica das escadas está diferente porque o poema, com as inúmeras perguntas que nos colocou, nos transformou, provocando uma mutação, a tal conversão semiótica.
O poema absorve-nos, transforma-nos, vai incubando em nós que tudo é outra coisa para lá das aparências e em cada limiar abriu novas janelas. A mesma janela que se abre quando dançamos e não somos mais nós que dançamos, e a dança que dança em nós, ou a mesma janela que se abre quando tocamos piano, e damos conta de que não somos mais nós ou as nossas mãos que tocam, mas é a música que se serve das nossas mãos para acontecer. Por muito que nos custe, tanto a beleza como a arte ou o amor acontecem mais quando o “eu” está ausente. Agora para isso precisamos de estarmos desnudos, e e necessário estarmos implicados na relação – na que, por exemplo, o poema estabelece connosco. Temos de participar.
Julgo ser nesta diferença que tudo se joga, não no facto do poema ser acessível ou não, simples ou complicado. Um poema que não altere a nossa percepção do mundo, do corpo, do tempo e dos outros, que não incuba em nós, serve para quê – para além de servir a vaidade do seu autor? O que é complexo não pode deixar de ser complexo – e para visitarmos esses “novos mundos” apenas precisamos decidir se queremos ser leitores exigentes, que admitem a longa duração, ou voláteis frequentadores do shooping, se queremos ser velhos de espírito vivo e gaiteiro ou jovens que o tempo gastou como as borrachas.
Tudo depende de exercitarmos ou não os músculos da imaginação no espaldar da escuta e da interpretação. Tendo, embora, bem presente que interpretar um texto não é esgotar-lhe um sentido mas sim, pelo contrário, apreciar nele, o plural de que está feito, como jurava o velhinho Roland Barthes. Aquilo que as imagens já não nos oferecem. E para tal precisamos de voltar a ser leitores participativos, precisamos dessa viagem.
Agora, como lembrava o filósofo Wittgenstein, a experiência é intransmissível - será possível transmitir uma conversa, mas não o sarampo, por telefone. Daí que as viagens da literatura sejam também tão ricas.
E para acabar vou contar-vos um sonho que tive e que me colocava como inquilino do 31° andar do 33. Eu era aquele cego do pé-coxinho e estava na sala a ver a televisão com os meus doze filhos, à africana. Levantei-me, cansado da algazarra das crianças e fui à varanda fumar um charuto e divisar a linha da costa de Madagáscar. E veio a minha filha mais nova, uma cachopa de 4 anos e perguntou-me: pai, lembras-te daquele ouriço que queria atravessar a auto-estrada? Com 27 palavras que histórias é que o ouriço conta à baleia. Não a quis desanimar e dizer-lhe que com uma pauta tão reduzida as histórias não podem ser muitas e sosseguei-a: Filha, estamos no 31° andar. O pai vai dormir, sonhar que está no 33° andar, e aí há-de ser-me dada uma resposta; amanhã digo-te. E peguei em mim ao colo e fui para o quarto dormir. E isso que vos recomendo: o sonho de alargar com as escalas da poesia as fronteiras da vossa consciência.
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