Um dos pouco livros que consegui nunca perder foi o Um Adeus aos Deuses, de Ruben A., um escritor ditirâmbico e não poucas vezes genial mas que o leitor médio português, preguiçoso, distraído com êxitos menores e a populaça dos sentidos com que a televisao o aturde, ainda não descobriu.
Aí se lê, na página 25, descrevendo uma visita a Museu Nacional de Atenas: «Não resisti. Disse ao director que para ver bem o museu tinha de me despir. Ele foi extraordinário. O primeiro homem que percebeu o meu desejo total, absoluto, de penetrar naquele mundo. Mandou sair os excursionistas, tocou a campainha do alarme, chamou os porteiros, guardadores idóneos dos Kouroi, trouxe pelo braço um inglês renitente que não percebia ordens correctas, que vivia no absurdo desde tempo imemoriais, e evacuou a salas. Foi uma grande ordem, nunca na minha vida teria sido tão feliz, nem me aperceberia da sensação espantosa, a única verdadeira, que é de se passear num museu tão fundamental na vida de um homem.» Seguem-se cinco páginas de cortar a respiração, de inteligência e simbiose de um homem no reencontro com os seus iguais.
Creio que já me estará vedada a possibilidade de ir à Grécia, de ir reverenciar a liberdade dos deuses, o reino efémero da alegria que em terreno tão pobre e recortado por tempestades aí se celebrou. Creio que nunca deixarei cair uma agulha na orquestra de Epidauro, para o arregalar do olho da Teresa no topo das bancadas, incrédula por ser atingida pela voz do minério.
Resta-me esta viagem por dentro de alguns livros, manuseados com a paixão e o desacato de quem nunca está quieto e às vezes escolhe lugares tão sombrios para ler e meditar.
Nesta Maputo bantu resolvi, em Julho/Agosto últimos, dar um Curso Livre de Filosofia, a que chamei «Dá-me cem gramas de Platão, mal passados?». O que me obrigou a muitas leituras. Correu bem o curso, teve atmosfera. Das leituras e desgeometrizações a que me vi obrigado, resultou este acervo de notas que aqui vos deixo, moitas ao vento.
Razões pessoais para ter embarcado nesta jangada grega e vos ter acolhido como fiéis remadores, neste meu curso?
Na Grécia, os deuses riem. Na expressão de Homero, o Olimpo vibra com “o inextinguível riso dos deuses”. Creio que a perenidade do riso dos deuses tem grandes hipóteses de se desdobrar no espaço, atingindo, em vagas, Maputo. E riem de quê, os deuses. Riem de si mesmo e isso é maravilhoso. Há uma cosmogonia tardia, que foi transcrita num papiro alquímico do século III, onde se lê:
«Depois de o deus rir, nasceram os sete deuses que governaram o mundo. Quando ele rompeu à gargalhadas surgiu a luz (…) Gargalhou segunda vez e tudo foram águas. À terceira gargalhada apareceu Hermes, à quarta a geração, à quinta o destino; à sexta o tempo. Depois, antes do sétimo rio, o deus inspirou fortemente, mas tanto riu que até chorou, e das suas lágrimas nasceu a alma».
A minha esperança, que era a mesma de Luciano, é a de que, se os deuses rirem, pode ser que os homens percam a pose e os queiram imitar. Maputo precisa.
1
Giges, personagem de A República, de Platão, é o exemplo do homem constrangido de fora mas sem um intrínseco estofo moral. Apesar da sua fama de homem impoluto e probo, à terceira vez que pôs o anel que o deixava invisível e se inteirou de que não seria visto, cedeu e roubou.
Como está à pinha de Giges o mundinho da administração moçambicana, basta ler a gordas nos jornais. Eu meto o anel – que pode ser uma metáfora do poder – e fico invisível.
Diga-se, como atenuante, que ao grego, para ser, é-lhe vital o papel da reciprocidade do olhar; faltando um dos pólos, natural seria que algo deslizasse na equação. E o Giges estaria ainda aquém dessa invenção da interioridade que é a do homem em diálogo com o seu daimon – o leal conselheiro de Sócrates. Talvez por isso, muito simplesmente, Giges faça o que é admissível quando a ocasião se oferece ao ladrão. A sua moral, fica patente, era um embrulho de celofane e não um sedimento.
A moral só nasce da renúncia, duma consciência e da sua deliberação.
A uma luz simétrica, diz Marcel Conche que só deve ser julgado o criminoso que se mostrou consciente do seu acto. Concordaria, embora sabendo que há zonas da perversidade que se ocultam.
Não se é moralmente atilado por condição. Não há nada de natural no acto moral. Ainda que uma determinada prática possa engatilhar hábitos de benignidade de modo automático, digamos assim, uma conduta que prescinda da volição na virtualidade do agir transforma-se numa morfologia – a qual dispensaria a moral.
A moral é um modo de divergir da oportunidade e só se exerce pelo negativo.
Quanto “à oportunidade” de fazer bem a partir de um cálculo moral, isso só avilta o ser que o pratica.
A moral funda-se quando eu, sabendo-me capaz de matar, capaz de traição, de ser tentado, de olhar o roubo como um pequeno desvio, de imaginar coisas cruéis sobre o outros, renuncio a fazê-lo.
Todos os dias – adúltero, safado, irrespeitoso - renuncio, na secreta invisibilidade do meu diálogo interior. E todos os dias recomeço, desafiando a minha oportunidade.
Não renuncio ao mundo, isto é fundamental deixar claro, apenas digo sim ao direito de dizer não, afirmando o meu livre-arbítrio. Nada me impede de amanhã mudar, não declinando outro convite.
Fazê-lo numa incisiva alegria, no ritmo de quem segue o seu, sem uma marca de má-fé é dar um passo para a ética; a qual podemos conceber como a forma como o homem moral se adapta a cada nova circunstância – que exige uma pragmática – sem perder a face, numa espécie de meta-moralidade.
2
Dobrámos a ilusão de que ver seja conhecer com a eclosão das imagens numéricas. Deitámos cal sobre uma das mais fecundas crenças gregas e ficámos mais sós, porque termos visto, doravante, não nos servirá para nada.
3
Ulisses, apesar de receber Circe e Calipso no seu leito, recusa a imortalidade que esta lhe oferece, rejeitando a naturalização divina. Ulisses prefere permanecer humano e reencontrar Penélope.
Diz Naquet que é essa opção pela humanidade que dá significado à Odisseia: de facto, essa recusa da hybris empresta ao astucioso Ulisses um atributo moral inesperado. E, acrescentaria, Ulisses rejeita trivializar a memória. É o que lhe (nos) dá densidade.
O penhor da memória é o único resgate da trivialização, o mecanismo que nos verte na irrelevância, na poalha do olvido.
Entretanto, não sei porquê, este episódio dá mais sentido a uma afirmação de Alain Badiou: «Defenderei mesmo de bom grado que a obra de arte é, de facto, a única coisa finita que existe. Que a arte é criação da finitude», substituindo embora o termo «obra de arte» pela «memória».
4
Para Vernant a religiosidade do homem, entre os gregos, não toma o caminho da renúncia do mundo, preferindo o seu desenvolvimento estético.
Neste sentido, o cristianismo foi um tremendo passo para a retaguarda, e quanto à renúncia prefiro chamar-lhe obliteração do mundo. E obliteração chegou a um ponto tal que houve teólogos a assegurar que Cristo não defecava, seria o único homem a não enriquecer o estrume.
Entrementes, parece-me terrível a aposta com que as deusas tramaram Páris, o pastor.
Deram-lhe uma maçã, onde se lia a inscrição: «à mais bela», ao mesmo tempo que se ofereciam como candidatas.
Hera propõe-lhe em troca um imenso poder, e Atenas a mais ampla das sabedorias, mas Afrodite ganha a maçã depois de lhe ter prometido a mulher mais bela do mundo. Helena de Esparta.
Como não ver aí que Páris terá de escolher entre os três princípios que regerão a arte na Grécia: o da imitação (só o seu reiterado domínio gerará o poder como valor), o moral (o valor é aferido pelo efeitos que ela produz), e o estético?
Impregnado pela cultura grega, Páris só podia escolher a oferta de Afrodite.
E a perversidade da escolha a que Páris é obrigado faz-nos subentender a verdadeira dúvida que motivou as deusas: alguma vez conseguiremos fugir a nós mesmos? Quem se descontamina do que o impregnou?
5
Um Deus é, escreve Herberto Helder, “uma potência que se manifesta pela unidade rítmica”, uma espécie de inteligência não adstrita – como o inconsciente – que nos fascina, hipnotiza, e dispersa a atenção até nos perder no extravio de si mesmo.
E acentua o poeta: «Deus dorme, dentro de um sono pesadíssimo e por isso pesa tanto aquela cabeça».
E nós somos os seus sonhos dispersos.
O que Platão corrobora nas Leis: «os deuses foram-nos dados não só como companheiros de festa mas também para procurarmos o sentimento do ritmo e a harmonia unida ao prazer, com a qual nos põem em movimento e dirigem os nossos grupos, enlaçando-nos uns aos outros com as canções e a danças».
Além do ritmo, os deuses emprestam-nos a sintaxe.
Cabe-nos a nós, sacudir ou não o molde, ou até criar outra unidade rítmica.
11
Sentiam-se fracos como o junco, os deuses gregos. O temor de Urano é que lhe dava a grande boca. E a possibilidade de serem junco na margem do Estige, o rio que delimita a metade inferior do Hades, o Inferno, apavora-os totalmente, aí consideravam total o desamparo do olvido.
O que nos lembra um excerto do Fausto de Pessoa:
«O segredo da Busca é que não se acha.
Eternos mundos infinitamente,
Uns de outros, sem cessar decorrem
Inúteis; Sóis, Deuses, Deus dos Deuses
Neles intercalados e perdidos
Nem a nós encontramos no infinito.»
Os deuses não passam do hólon inferior de outro hólon superior.
Os gregos consideram o mundo como um imenso mise-en-âbime e no escudo de Aquiles pode Platão encontrar bons motivos para censurar Homero pois a sua fractalidade opõe-se à configuração do limite em que navega o mundo da Ideias.
12
Das coisas mais perturbadoras na relação entre deuses e homens na Grécia é que se os deuses comunicavam com os homens através dos sonhos, nada garantia que este canal fosse fidedigno: os sonhos provocados pelos deuses podiam ser enganadores.
Como no caso do sonho que precipitou Agamémnon para o assalto a Tróia, a qual estaria por um fio, o que se revelou falso, uma mentira do Deus.
Está visto onde Freud foi buscar a ideia para encarar os sonhos manifestos como puros enganos, dissimulações com a chave lançada ao mar.
13
O sangue dos deuses chama-se Ichór. Nome de pneu. Estão explicados os Grandes Prémios da Fórmula 1 e o seu fascínio – que sempre me passou ao lado.