matta, integral do silêncio
E de súbito apareceu em Lisboa com um urgência, um frenesim, uma energia fantástica. Durou três anos a nossa amizade, intensa; nesse período ele editou seis números da revista ibérica Canal, foi para o México e voltou, e passava a vida errante, entre Portugal e Espanha. De repente, numa véspera de natal teve uma morte macaca. Não há outra expressão, para morrer afogado dentro do próprio carro, capotado como uma peça do lego numa conduta de esgoto, na noite da maior chuvada da década.
Chamava-se Augusto Oliveira Mendes.
Fui agora buscar uma coisa à despensa e caiu-me aos pés o único livro que editou, já póstumo. Hei-de postar coisas deles, agora presto-lhe homenagem com o poema que escrevi sobre o choque da morte dele.
A ALMA CONTA OS PASSOS
À memória de Augusto Oliveira Mendes
«La destinée de chaque homme ne lui est personnelle
que dans la mesure où il arrive de ressembler
à ce que sa mémoire contenait déjà»,
Edouard Mallea
A surpresa é total: nunca tinha regado este meu morto.
Jura Caballero Bonald, poeta que partilhávamos:
«o futuro dura tão pouco que é já presente.»
Adivinho-o nas tintas para a matéria volátil:
a apalpar ainda, na extensão da pele, as junções.
Nele, nenhuma compreensão ulterior forçava
as fontes, as mãos - o silêncio que as rói.
Como dormir entre dois tornados? Em miúdo
laçava lagartixas com a destreza do felino
que s' esgueira ao pensamento. Mas
despertar entre dois tornados? Finou-se
escaqueirado pela água que temia, dentro de uma 4-L:
alcião mijote porque vidente. A morte, uma fraude
mais infalível que o Papa, despenhou-o nas suas capelas
imperfeitas. E mentiu-lhe: essas abóbadas não são
as da Sílvia Kristel da nossa adolescência,
nem é sedosa a unha que lhe greta a pele: o crapuloso anjo
que nele catava deus cata agora fungos. Como dizer
que este mundo sem excessos, com contas a prazo
e a expensas de Alardo e Vitalis não era o seu?
Que esta gente de uma glamorosa gelatina
não era a sua? Mesmo nos frutos abertos à pressão
dos polegares algo indeslindável resiste. Nenhum
morto é passivo: levou uma hora dentro de água
a debater-se, pois nem sempre é o genoma humano
Passport. Tinha três cães cor de absinto.
O Trovoada (minto de memória) tremia como um canavial,
quando farejava homens com o entorse das perdizes na venta.
Sexos com bigode e ostras com limão: indispensáveis,
uns e outras – é uma questão de género!, afiançou-me
na tasca do Turco, em Alcântara Terra,
aguardávamos pelo reboque dos seguros.
Os búlgaros e sérvios clandestinos tomavam-nos
por panascas ou bufos. É quase sempre
com razão que se enganam sobre nós.
Só que eu não percebi. Nem foi por mal.
Não lhe faltava ferocidade no sorriso. Melhor:
disponível como certas veias ao clamor de uma irrestrita
pândega, tinha o sorriso do frade
que sonha episcopal com a madre superior.
Dele dificilmente diriam: uma vida de estudo
e tão cediço movimento! Não há aqui nada de sincero,
as mil faces do plátano dão ouvidos ao vento
e o mais é o mudo desassossego de quem olha
– grafou num livro que lhe emprestei. Não são
as suas palavras que porventura faltam mas a malícia,
a mostarda que as impedia de exangues
quedarem-se ao primeiro assento. Enfadava-me
de
morte o seu William Clift (engates de segunda
nos
cinemas de subúrbio) e eu metralhava-o com o Hugo
Claus
(engates de morte às estrelas de subúrbio).
A chuva lá fora continua a soletrar-lhe o nome –
e já não sei por que ledo desengano s’extraviaram
o valão e o flamengo. Às vezes encafuava nas palavras
mas dilucido nitidamente como
profético o que, depois
de virarmos uma garrafa de
Jameson, repetia:
nunca vi um naufrago tremer de
ansiedade! E eu retorquia,
imbecil: Khrisna
estigmatiza a ilusão de não-agir.
Espalha-brasas, sempre que eu procurava ligar isto
à ilusão da poesia pura, da sua despersonalização,
anuía
solene «hum, hum» e
voltava a encher-me o copo.
Ele, que até na morte agiu demais. Grandeza
de homem: falhar o encontro e não perder o humor.
Grandeza de pássaro: estudar a migração das tartarugas.
Grandeza de poeta: serenar, quando no cockpit da morte
o telemóvel nos falha. Tinhas razão, inadvertido amigo,
a rádio devia servir os alpinistas e assombrá-los
com o mar, e aos lavadores de janelas com os chilreios
tropicais
– perdoa-lhes, passam Mozart! Algo que não calque
uma madrugada de risos e giestas – tudo o que pedias.
A rosa transparente que se desfaz no gelo
sustém nos espinhos um livro de horas: segredou-me
o tordo de Eliot. Tão inútil, o tordo de Eliot.
Olha, meu caro, um peixe é um reflexo que não conheceu
retorno - e a vida te guarde de voltares. Lázaro
nem sempre ri. Via-se: tinhas a teimosia do temerário
que se lança ao fogo antes de aceitar que queima.
Deixa agora que as veias corram como mato.
É perdulária a memória, como o vinho desarrolhado?
Deixa, o corpo precisa de imagens e a terra de chuva.
Por isso, nunca o desejo cerra as cancelas.
Bebo: não me esqueça Dante, em revisão pé-de-galo.
Bebo: o silêncio atrai os assédios e é ainda cedo para
honrar
os dissabores. Bebo: gosto de ver as barrigas a rir,
sacolejadas pelo medo. Bebo, um olho indómito
escava do topo à bainha, onde o rasgão que atou o teu olhar
à palavra descortinou um fundo impróprio.
Não provinha de Delfos - hélas! – a palavra deste poeta-
-agricultor: ele há sempre o estorvo e o estorninho!
Um sonho sem margens, querido Augusto, chamava Pascal
à infância. Mas quando se depara um futuro sem leito, é o
quê?
Choca, a exuberância com que deus quis subir
pela escada rolante que desemboca na cave. Sentes
ainda as agulhas da dormência, a estrela polar
que te lucila o sangue? Acertaste Vladimir Holan:
os mortos são invejosos. É esse o visco irrevogável,
o drama: a pretérita inveja dos mortos. O único invejoso
que conheci puro foi o meu amigo Augusto,
que deglutia sem gelo, do sangue até à alba.
Nas condutas, a água contrai-se ao contacto do betão.
O mesmo protocolo não se aplica à carne.
Está para saber se foi a sua reprimida gaguez
ou o decoro mas deu um morto exemplar e, fora
uma unha ou outra, manteve as cores. O nevoeiro
que por ora o decanta e as pegadas que imprimia
nas areias do México são uma, a mesma coisa?
Às vezes parecia querer fugir. Fugir, apenas. De Lisboa
para Sevilha, e dos bares de flamenco para Tampico,
fugia das mulheres. Aflige-me vê-las lânguidas
e de repente lívidas! - essa imagem transtornava o amor
que lhes tinha, e de mulher em mulher fugia da morte
que nele habitava como o crocitar nocturno da
madeira.
O sangue coalhado nos lábios e o clac das tesouras
no silêncio comprovam, a morte nunca nos é familiar:
há que purificá-la noutras sombras e noutros medos,
como o dos vimes contra o vento, como o da plaina
contra os nós, o das urzes à beira do açude, ou no medo
do sexo quando rompe a disformidade do xisto.
Habituado a que me aparecesses
sem avisar (o último
dessa estirpe), desprega-se agora
um silêncio
novo, sem rugas, igual ao do
lençol estendido
por mãos acostumadas. O nome é o caule onde deus
sustém a sua queda? Desconfia - à mínima
distracção, rio que desças é a fonte que perdes.