miró, cão latindo para a lua
Sente-se de repente a meio duma frase
que estamos em convalescença
e um bosque avança no eco da casa
em sete divisões que a luz decompõe
como se fossem as serrilhas deste selo de Veneza
que martela no coração fatigado uma viagem por fazer
a viagem por fazer,
a vida por achar num caminho desimpedido
de chaminés de mármore preto.
Podia ser verão a meio desta linha
que a vida transformou numa longa carta
esquecida na cómoda que foi a leilão.
Somewhere, o lento processo de decomposição
do outro, tão inábil em admitir
que o lugar dos bolsos era o púbere desejo do mar,
avança, inexorável, mas paralelo à exaltação
quase imperceptível com que o túmulo
mudado em balaustrada sobre a desova dos salmões
se cala para não dispersar a vida -
porque só é irremediável a manhã
em que não fizemos amor.
A meio deste instante recebi um mail
a falar-me duma sombrinha chinesa
esquecida no miolo dum passaporte
roubado e que reapareceu em Curibita,
segundo o informe que recebi da polícia local.
Foi o inédito da sombrinha, assegura
o comandante Matias que os impeliu
a procurar-me num reenvio transatlântico.
Milagres para um gentio
que ao contrário dos reis magos nunca pernoitou
no Hotel de La Vallée, onde, dizem
que uma estrela faz cirurgia a um planeta
já descrente de que haja rapazes de olhos cor-de-rosa.
Por isso me parece a vida mais simples
do que antes: já não sou o guarda da prisão
e a alegria começa no puré de castanha
e nos salpicos de sal a meio de um umbigo
donde despontam petroleiros e uma asa
do mamilo que desenha um fio de sangue
na nossa boca. E já não passa a horas fixas
o comboio mas sei que ele passa
e me transporta aos jardins submarinos
do Niassa e aos rigores da criança que nos vê,
bêbados, e cruelmente mijados de compaixão.
sexta-feira, 20 de dezembro de 2013
segunda-feira, 16 de dezembro de 2013
BRAILLE: CATANDO CADERNOS/1
vasco manhiça, pintor moçambicano
DOS JORNAIS
Mafalala blues: quando viu o puto de onze anos
enforcado na mafurreira das traseiras
foi tocado pelo desespero: afinal, nada, nunca,
mudaria na penúria da sua vida. Até
o secretário do bairro era o mesmo
inútil há trinta anos. Ele vira,
o miúdo topou tudo num relance.
Aquele suicídio confirmava:
tinha a consciência vegetal dum songamonga.
VALA COMUM, SINOPSE:
O estranho plano para férias de Licurgo, o primeiro depois do seu divórcio, aos quarenta e três anos:
- dar a volta à casa, arrumar papéis, livralhada, catar os cadernos velhos (guardava-os desde o ciclo, nunca deitando nada fora), coligindo as cintilações dispersas por mil canteiros (sempre quisera ser escritor mas nunca passara da primeira página nas milhentas histórias que esboçara),
- e dar vazão à curiosidade telefonando para os quinhentos números de telefone que amealhara de nomes que lhe pareciam agora anónimos, mergulhados na vala comum.
Não me lembro donde tirei esta frase mas acho-a magnífica: “o que me arrepia no cristianismo é a ideia desse Deus que poderia amar-me a mim!” De facto, que pobreza de espírito!
A fogueira deitou-se
Para que a noite estrelada
Se pusesse em bicos dos pés.
“Éramos como navios que se saudavam em alto mar, cada qual baixando a sua bandeira”, escreveu Jung, com grande compreensão da alma humana. E o afecto desata-se quando num pequeno escaler os tripulantes se visitam momentaneamente e confirmam: a vida é o amor da vida.
O seu olhar é como o fogo que carcome intimamente todos os campos de trigo que a placidez duma vida amealhou, mas eu já não estou virado para escaqueirar a minha vida num gesto, no gesto. Por isso quando voltou a espetar os mamilos na direcção das minhas íris e insistiu:
«professor, se eu tiver treze dispensa-me de exame, não dispensa?»
eu atalhei:
«Não!».
Creio que a evidente racionalidade que fui adquirindo, como uma conquista árdua com mortos e feridos nunca me fará descrer do mistérios, da experiência, infelizmente intermitente, em âmbitos transpessoais.
PARA DISCURSO DE UM POLÍTICO, NUM CONTO:
«o problema em África é que o pobre não é nosso – é de outro. É o pobre do outro. Das organizações humanitárias, dos direitos humanos, da opinião pública ocidental (isto é, dos países que nos colonizaram), da Unesco, não é nosso.
Daí que a minha proposta seja: que cada branco adopte um negro!»
O Museu do Prado apresenta a mais antiga cópia da Mona Lisa. Há que fazer um Museu com as mais novas cópias das telas famosas.
Consideram-se os ossos palustres
Quando acima deles
Ainda sonha a carne.
CRÓNICA SOBRE UM CERTO PASTOR DE INCERTA SURDEZ
A sua esposa pintava as unhas de amarelo
para se lavar da ausência de pecados
e exibia-as ao almoço, ao pôr-lhe a terrina
de arroz à frente dos olhos. Alardes
& Sacrifícios em vão – ele não erguia
os olhos do seu decoro mumificado.
A chuva é um rio que se partiu,
já não lembro onde li,
no caso dele o rio partira-se nos mil
cacos da banheira onde colidira
o meteoro da abstracção.
Ela tentara já outras abordagens,
depilara-se, aprendeu o cha cha cha.
Era inútil saracotear-se como Salomé
na sua presença, só quem acreditasse
na ressurreição ao quarto dia.
Quanto à sombra dele padece de diabetes,
como todas as que se vão fixando
na glabra conversa
do boletim meteorológico.
Por isso bocejam os coretos e os cultos
por onde passa: perpassa-lhe
em cada palavra uma freira seca
como a virilha de um gnu.
Mas todo ele é fé,
da unha ao bolor
que lhe tomam as laranjas
no cesto da cozinha.
Todo ele se desdobra em petições, cego
ao espaço que gota a gota
nos penetra. Ainda que haja
deuses para tudo, e a boca
possa acolher a glória dos temperos,
concluiu finalmente a sua esposa
em casa de Marcolino Tembe
onde fora ver um sacrário de marfim
e surpreendeu um viçoso botão de rosa
a meio dum corpo enxuto: pátrias há,
como o Desejo, que não cabem
na pequenez da carne, e se enlaçam
em pequenas cadeias e sismos. É o escândalo
da semana no meu bairro. E o pastor
repete, alheando-se dos gemidos que ouviu:
«O ouvido é o que mais tende à surdez!»
«Há o homem e há também a omelete…», garantia Lacan.
Braille: um bom nome para um volume que me antologie a poesia.
DOS JORNAIS
Mafalala blues: quando viu o puto de onze anos
enforcado na mafurreira das traseiras
foi tocado pelo desespero: afinal, nada, nunca,
mudaria na penúria da sua vida. Até
o secretário do bairro era o mesmo
inútil há trinta anos. Ele vira,
o miúdo topou tudo num relance.
Aquele suicídio confirmava:
tinha a consciência vegetal dum songamonga.
VALA COMUM, SINOPSE:
O estranho plano para férias de Licurgo, o primeiro depois do seu divórcio, aos quarenta e três anos:
- dar a volta à casa, arrumar papéis, livralhada, catar os cadernos velhos (guardava-os desde o ciclo, nunca deitando nada fora), coligindo as cintilações dispersas por mil canteiros (sempre quisera ser escritor mas nunca passara da primeira página nas milhentas histórias que esboçara),
- e dar vazão à curiosidade telefonando para os quinhentos números de telefone que amealhara de nomes que lhe pareciam agora anónimos, mergulhados na vala comum.
Não me lembro donde tirei esta frase mas acho-a magnífica: “o que me arrepia no cristianismo é a ideia desse Deus que poderia amar-me a mim!” De facto, que pobreza de espírito!
A fogueira deitou-se
Para que a noite estrelada
Se pusesse em bicos dos pés.
“Éramos como navios que se saudavam em alto mar, cada qual baixando a sua bandeira”, escreveu Jung, com grande compreensão da alma humana. E o afecto desata-se quando num pequeno escaler os tripulantes se visitam momentaneamente e confirmam: a vida é o amor da vida.
O seu olhar é como o fogo que carcome intimamente todos os campos de trigo que a placidez duma vida amealhou, mas eu já não estou virado para escaqueirar a minha vida num gesto, no gesto. Por isso quando voltou a espetar os mamilos na direcção das minhas íris e insistiu:
«professor, se eu tiver treze dispensa-me de exame, não dispensa?»
eu atalhei:
«Não!».
Creio que a evidente racionalidade que fui adquirindo, como uma conquista árdua com mortos e feridos nunca me fará descrer do mistérios, da experiência, infelizmente intermitente, em âmbitos transpessoais.
PARA DISCURSO DE UM POLÍTICO, NUM CONTO:
«o problema em África é que o pobre não é nosso – é de outro. É o pobre do outro. Das organizações humanitárias, dos direitos humanos, da opinião pública ocidental (isto é, dos países que nos colonizaram), da Unesco, não é nosso.
Daí que a minha proposta seja: que cada branco adopte um negro!»
O Museu do Prado apresenta a mais antiga cópia da Mona Lisa. Há que fazer um Museu com as mais novas cópias das telas famosas.
Consideram-se os ossos palustres
Quando acima deles
Ainda sonha a carne.
CRÓNICA SOBRE UM CERTO PASTOR DE INCERTA SURDEZ
A sua esposa pintava as unhas de amarelo
para se lavar da ausência de pecados
e exibia-as ao almoço, ao pôr-lhe a terrina
de arroz à frente dos olhos. Alardes
& Sacrifícios em vão – ele não erguia
os olhos do seu decoro mumificado.
A chuva é um rio que se partiu,
já não lembro onde li,
no caso dele o rio partira-se nos mil
cacos da banheira onde colidira
o meteoro da abstracção.
Ela tentara já outras abordagens,
depilara-se, aprendeu o cha cha cha.
Era inútil saracotear-se como Salomé
na sua presença, só quem acreditasse
na ressurreição ao quarto dia.
Quanto à sombra dele padece de diabetes,
como todas as que se vão fixando
na glabra conversa
do boletim meteorológico.
Por isso bocejam os coretos e os cultos
por onde passa: perpassa-lhe
em cada palavra uma freira seca
como a virilha de um gnu.
Mas todo ele é fé,
da unha ao bolor
que lhe tomam as laranjas
no cesto da cozinha.
Todo ele se desdobra em petições, cego
ao espaço que gota a gota
nos penetra. Ainda que haja
deuses para tudo, e a boca
possa acolher a glória dos temperos,
concluiu finalmente a sua esposa
em casa de Marcolino Tembe
onde fora ver um sacrário de marfim
e surpreendeu um viçoso botão de rosa
a meio dum corpo enxuto: pátrias há,
como o Desejo, que não cabem
na pequenez da carne, e se enlaçam
em pequenas cadeias e sismos. É o escândalo
da semana no meu bairro. E o pastor
repete, alheando-se dos gemidos que ouviu:
«O ouvido é o que mais tende à surdez!»
«Há o homem e há também a omelete…», garantia Lacan.
Braille: um bom nome para um volume que me antologie a poesia.
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MISCELÂNIA,
VASCO MANHIÇA
sexta-feira, 13 de dezembro de 2013
HOMENAGEM A VIRGÍLIO DE LEMOS EM DOIS ANDAMENTOS
tapiès
Um filme que o Virgílio de Lemos adoraria:
1
Com o habitual atraso que me dá “o exílio” vi esta noite L’Amour, de Michael Hanek. Um filme que hoje seria impossível de ser feito nos EUA e que, por reconhecimento dessa vergonha, só poderia ter ganho o Óscar do Melhor Filme Estrangeiro.
Há claramente um texto a fazer sobre as relações subterrâneas entre este filme e Viagem a Tókio, de Ozu, no que toca a uma idêntica visão do que seja a dignidade de “desaparecer” deixando que o fluxo da vida permaneça intacto - de que a música e a sua persistência pelas “bagatelas” (para glosar a sonata de Beethoven que “enche” o filme) que cada interpretação traz é aqui a metáfora.
Há vários momentos extraordinários neste filme sóbrio e justo, que me faz lembrar uma frase memorável de Camus: "sofrer não te dá direitos", mas quero referir-me a três:
- a cena inicial do concerto musical, onde Hanek nos mostra a plateia em vez do palco, com o casal de idosos protagonistas já anónimos no meio da mole humana, o que imediatamente nos diz que o drama a que vamos assistir é transitivo e há de desencadear-se em cada um de nós, no seu momento próprio;
- a cena que começa quando o marido num acto de vida esbofeteia a sua acamada mulher que, em querendo morrer, rejeita a água que ele carinhosamente lhe dá, e se desdobra numa sequência de pinturas bucólicas (as que pontuam nas paredes da casa) nos quais a figura humana se vai gradualmente diluindo na paisagem, até se tornar invisível ou rarefeita, como um efémero sinal entre dois infinitos: o da escarpa e o do mar do quadro final;
- a cena do pombo, quando Trintignant no afã de agarrar a vida e de a sentir pulsar entre as mãos, o abafa (com uma manta) como havia feito com a sua mulher (com a almofada) ao dar-lhe a morte (horror que neste filme é uma forma de dádiva), simetria ambígua em que se joga toda a complexidade do amor e da vida.
Três momentos fortes de um filme que merece os encómios de que vem laureado.
2
O Virgílio de Lemos, homem de naturaleza "leve", matérica, que nunca conheci pessoalmente (- ele em Nantes e eu em Maputo, a falta de taco nunca nos deixou cumprir a vontade profunda de nos conhecermos) mas com quem troquei centenas de emails, alguns divertidíssimos, para concretizarmos a antologia dele que preparámos juntos, A Invenção das Ilhas, era um homem que ria da metafísica para lhe opor os acenos da sensualidade e do riso, e gostava de uma boa irreverência. Por isso, ao arrepio já das solenidades, que ele odiaria, lhe dedico esta pequena narrativa que escrevi ontem:
A LIÇÃO DE HISTÓRIA
Depois de bater uma boa sorna, nada como acordar com a Sónia ao nosso lado a bater-nos uma punheta.
A Sónia tem seis dedos em cada mão, como de resto os teve el-rei dom Sebastião, e é vão querer saber se isso lhe dá uma tactibilidade especial ou se será da fantasia que a sua anomalia provoca em nós, o certo é que somos quatro a testemunhar o mesmo facto: "aprés" uma punheta batida pela Sónia ficam-nos a doer os colhões.
Eu tinha comprado uma rede, em Fortaleza, no Brasil, onde fiz uma exposição de fotografias cuja receptividade foi nula, e habituara-me a bater um choco todas as tardes depois do almoço, não mais do que uma hora para não ficar mole. Ontem, convidei a Sónia para almoçar, preparando-a para a sessão de nus que iríamos fazer no estúdio à tarde. E perguntou-me ela, como me vais pagar isso. Na brincadeira, olhando-lhe as mãos, respondi, com uma pívia. Para surpresa minha, isso provocou-lhe um sorriso mais aberto que a calvície do Yul Brynner. Adoro mostrar os meus dons, justificou.
Do vinho passámos à sonolência, na rede, até que ela, com a precisão de um metrónomo, uma hora depois, quis justificar a fama.
Nunca lhe serei suficientemente grato, ela foi buscar o ouro a 50 m de profundidade, ainda que me tivesse deixado o cavername a zunir. Confirmo o que dela me foi referido pelos três amigos comuns que desfrutaram duma idêntica experiência angular. A quem não acreditar que da associação duma boa sorna com a Sónia possa nascer um deleite que é em si mesmo uma arquitectura da dor, a tais cínicos, lembro o aviso de Jim Harrison: (também) a morte tem para nós a inverosimilhança que terá a realidade da nossa viagem à lua para uma zebra - a morte que, em nosso nome, já faz uma batida.
Um filme que o Virgílio de Lemos adoraria:
1
Com o habitual atraso que me dá “o exílio” vi esta noite L’Amour, de Michael Hanek. Um filme que hoje seria impossível de ser feito nos EUA e que, por reconhecimento dessa vergonha, só poderia ter ganho o Óscar do Melhor Filme Estrangeiro.
Há claramente um texto a fazer sobre as relações subterrâneas entre este filme e Viagem a Tókio, de Ozu, no que toca a uma idêntica visão do que seja a dignidade de “desaparecer” deixando que o fluxo da vida permaneça intacto - de que a música e a sua persistência pelas “bagatelas” (para glosar a sonata de Beethoven que “enche” o filme) que cada interpretação traz é aqui a metáfora.
Há vários momentos extraordinários neste filme sóbrio e justo, que me faz lembrar uma frase memorável de Camus: "sofrer não te dá direitos", mas quero referir-me a três:
- a cena inicial do concerto musical, onde Hanek nos mostra a plateia em vez do palco, com o casal de idosos protagonistas já anónimos no meio da mole humana, o que imediatamente nos diz que o drama a que vamos assistir é transitivo e há de desencadear-se em cada um de nós, no seu momento próprio;
- a cena que começa quando o marido num acto de vida esbofeteia a sua acamada mulher que, em querendo morrer, rejeita a água que ele carinhosamente lhe dá, e se desdobra numa sequência de pinturas bucólicas (as que pontuam nas paredes da casa) nos quais a figura humana se vai gradualmente diluindo na paisagem, até se tornar invisível ou rarefeita, como um efémero sinal entre dois infinitos: o da escarpa e o do mar do quadro final;
- a cena do pombo, quando Trintignant no afã de agarrar a vida e de a sentir pulsar entre as mãos, o abafa (com uma manta) como havia feito com a sua mulher (com a almofada) ao dar-lhe a morte (horror que neste filme é uma forma de dádiva), simetria ambígua em que se joga toda a complexidade do amor e da vida.
Três momentos fortes de um filme que merece os encómios de que vem laureado.
2
O Virgílio de Lemos, homem de naturaleza "leve", matérica, que nunca conheci pessoalmente (- ele em Nantes e eu em Maputo, a falta de taco nunca nos deixou cumprir a vontade profunda de nos conhecermos) mas com quem troquei centenas de emails, alguns divertidíssimos, para concretizarmos a antologia dele que preparámos juntos, A Invenção das Ilhas, era um homem que ria da metafísica para lhe opor os acenos da sensualidade e do riso, e gostava de uma boa irreverência. Por isso, ao arrepio já das solenidades, que ele odiaria, lhe dedico esta pequena narrativa que escrevi ontem:
A LIÇÃO DE HISTÓRIA
Depois de bater uma boa sorna, nada como acordar com a Sónia ao nosso lado a bater-nos uma punheta.
A Sónia tem seis dedos em cada mão, como de resto os teve el-rei dom Sebastião, e é vão querer saber se isso lhe dá uma tactibilidade especial ou se será da fantasia que a sua anomalia provoca em nós, o certo é que somos quatro a testemunhar o mesmo facto: "aprés" uma punheta batida pela Sónia ficam-nos a doer os colhões.
Eu tinha comprado uma rede, em Fortaleza, no Brasil, onde fiz uma exposição de fotografias cuja receptividade foi nula, e habituara-me a bater um choco todas as tardes depois do almoço, não mais do que uma hora para não ficar mole. Ontem, convidei a Sónia para almoçar, preparando-a para a sessão de nus que iríamos fazer no estúdio à tarde. E perguntou-me ela, como me vais pagar isso. Na brincadeira, olhando-lhe as mãos, respondi, com uma pívia. Para surpresa minha, isso provocou-lhe um sorriso mais aberto que a calvície do Yul Brynner. Adoro mostrar os meus dons, justificou.
Do vinho passámos à sonolência, na rede, até que ela, com a precisão de um metrónomo, uma hora depois, quis justificar a fama.
Nunca lhe serei suficientemente grato, ela foi buscar o ouro a 50 m de profundidade, ainda que me tivesse deixado o cavername a zunir. Confirmo o que dela me foi referido pelos três amigos comuns que desfrutaram duma idêntica experiência angular. A quem não acreditar que da associação duma boa sorna com a Sónia possa nascer um deleite que é em si mesmo uma arquitectura da dor, a tais cínicos, lembro o aviso de Jim Harrison: (também) a morte tem para nós a inverosimilhança que terá a realidade da nossa viagem à lua para uma zebra - a morte que, em nosso nome, já faz uma batida.
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VIRGÍLIO DE LEMOS
terça-feira, 3 de dezembro de 2013
BAGAGEM À VENDA EM LISBOA
ESTÁ À VENDA NA GALERIA DA ABYSMO - Rua da Horta Seca, 40 R/C – 1200-221 Lisboa | info@abysmo.pt, A CEM METROS DO CAMÕES.
A PARTIR DA PRÓXIMA SEMANA
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BAGAGEM À VENDA EM LISBOA
domingo, 1 de dezembro de 2013
BAGAGEM NAO RECLAMADA/LADRILHOS 2. O HUMOR
Se em 180 páginas de sonetos não houvesse, para além da marmelada, uma pitada de humor a atenuar tanta meditação sombria, o pataco de um lirismo de malha caída, não sei que vos diga.
o poema relaxa,
como o guarda na guarita
que vê a manhã dourar
lama, folhas, os estalidos
que lhe amotinavam
a noite. Aceita
então de bom grado
um cálice, algo
que o distraia da missão
cumprida. O ventre
descai, engasta-se
no débito da rola:
rô rô rô Rõ (é fêmea…)
Mas aqui vos deixo outros ladrilhos, e vejam lá que a meio até tem blandícias:
Outros vinham bêbados,
A volúpia de poder ser
π
(…) A palavra
conspícua que desabotoou
a mini-saia à rapariga num lavabo
do estádio, perdia o Benfica por 3-1,
para que um sáurio desaustinado
lhe arrancasse do sexo a saxífraga.
------
Topas a romena? É tramada, mas ,
(…) Nem a faxina
π
Lês: «Beijo-a. Aqui
não seria fortuito um eclipse».
E chega dos fundos, na longa avenida
de acácias em sangue,
a buzina de uma ambulância.
(…)
Na lágrima da viúva via-se um velho cisne
que tossicava muito. Ela escamava à bancada,
enganchando a unha na guelra. Lembranças de miúdo,
ainda a alegria trotava no seu pequeno porte exangue.
A quem seguir quando «a cidade é um poço inumerável?»
-----
Um dia, num semáforo, bati
porque ruminava distraído num verso
da Primavera Autónoma das Estradas.
(…)
Um dia ofereceram-me um bonsai
que me lembrava o Mário à procura de
ventoinha nos armazéns do Grandela.
Um dia escrevi o Mário é imortal como todas
as Marias que calam o trilo de São
Francisco de Assis no corpo do seu soldado.
-----
-----
Ter um corpo e não lhe sentir
o cansaço: uma pretensão que avilta.
igual só a literatura armada
em piscina de condomínio privado.
O cristal cala o calafrio ou afia-o,
dúvidas de neófito à entrada
do Museu Gongora. Contudo, é
improvável morrer-se na fonte onde
se nasce. O "em-si" atrai muito pó,
já viste crica empoeirada?
Num sonho a sombra de Cristo
(…)
--------
Desta altura da minha vida – um sétimo andar
sem elevador – vejo a minha adolescência a pular
na mesa alemã e enxergo o modo doméstico
com que me fui estatelando ao comprido.
Vem isto de longe, em várias frentes e lugares
(…)
------
conduz-me ao muro
AUTO-RETRATO NO COMBOiO PARA RESSANO GARCiA
Que homem tão original, pensava a menina
que me enchia de macacos o cabelo,
mucos tenros extraídos das narinas
que a obstipavam (palavra tão bonita!). A mãe
não via, a mãe era um caso de cegueira e paciência,
o contrário da petiz que, para regozijo
dos poetas, compensava em ranho verde
a friagem do mundo. Ai o (cobrador!), corou
(…)
------
Esgarça-se a nuvem, é uma questão
de sintaxe, sem esta
há lá emoção duradoura!,
nem seria a cerejeira reminiscência
nas costas da cama que te ouve
em blandícias.
-----
Ir de cana, pintar o sete,
erguer em palafita sobre delgadas patas
de aranha o tabuleiro do medo
ou ir-lhe à rata abocanhar o queijo grié
– propósitos que esculpem uma vida
na sua jaula. Há quem prefira o comedimento
ser rato de biblioteca ou a convalescença
da ternura no passo da devastação,
a jaula é a mesma. O pão sonha
ser intratável farinha
ao vento. Deseja ter um prego
imaginário espetado na cabeça.
Que quando se olhe ao espelho
só se veja o prego.
A foto é do atelier do Bacon, um tanto parecido com o meu escritório e foi uma das imagens hipotéticas para a capa, hipótese que a editora (influenciada pela minha mulher, tenho a certeza)
rejeitou.
rejeitou
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