Soutter, "il est sanglante!"
08/06
Tenho de fazer uma mesa pé-de-galo
para perguntar ao meu pai como se enlouquece. Seria um conforto tão grande. Eu
que estive tão próximo aos 19, 20 anos, por causa das drogas, preso a um ramo
de paranóia que alucinava o que se dizia à minha volta, mas salvo in extremis pelo declarar-se da loucura
dele, e pelo amor da Alice, a quem eu nunca tive a coragem de contar o meu
estado, e que apesar de estranhar certos comportamentos em mim manteve a sua
confiança e fidelidade. Depois rebentou a paranóia dele, uma coisa aracnídia,
uma estrela negra – e sugou tudo. Sugou também as minhas crostas em ferida,
obrigando-me a reagir. Não podia haver duas estrelas negras na mesma casa. Às
vezes pergunto-me se ele não enlouqueceu para me salvar, se o amor de um pai
chega a isso. Conseguiria eu enlouquecer no lugar de uma filha? Espero que sim,
gostaria de ter a dignidade disso. Mas não sei, sinto-me tão vulnerável e
cobarde.
Vou dar teste aos alunos de
Filosofia de Arte. Estou muito curioso em ver como se vão desenvencilhar na segunda
pergunta: «Escreve Alain Badiou, na página 24 do ensaio que teve de ler:
“Defenderei mesmo de bom grado, que a obra de arte é, de facto, a única coisa
finita que existe. Que a arte é criação da finitude.” Interprete.». Acho extraordinário esta concepção
da arte como “bonsai”. O contrário da sublimidade romântica, dos mitos da
glória e da arte “maior do que a vida”. Apenas uma janela para a singularidade.
Pequena, mas fulcral.
O que tentei dizer neste poema, inédito:
O QUE SOBROU
AO FIM DO MUNDO
Assim
que me livrei, como lastro,
dos
brilhos, precipitou-se sobre mim,
anelada,
fulgurante, a noite.
Sobejam
ainda pequenas vaidades
e
um drama insolúvel para um lerdo animal
de
carga: não tenho a memória na ponta da língua.
Daí
que, quando, na senda do que respiro,
a
imaginação me afunda no seu lençol
freático,
tenha que me certificar se não nado
como
um coentro, pois a morte é a granel,
não
escolhe os filhos. Eis o farnel
de
prudências que retive.
Do
mais me desfiz: sinais de identidade,
amores
aparatosos, palavras
que
fulgem como isqueiros. O importante
na
mão é a sua leveza, abrir-se
para
dar, abrir-se para receber.
É o que o pulso e o ninho têm em comum:
o vento. E
agora, mal fecho as pálpebras,
uma infância
tropeça nas escadas,
uma galinhola,
em pleno voo,
tomba de
joelhos, um prego
finalmente
respira fundo.
É uma vigília
que não cessa
a fadiga de
ser prodigaliza a sede
de ser outro e
a fome de outra
pele
descarrila a minha.
Levei
décadas a libertar-me dos “brilhos”, das “palavras
que fulgem como isqueiros”. E foi este gesto que muitos não entenderam nos últimos
Herberto.
A Jade gosta de ir ao “tira-dentes”, está radiante. Até
nisto é única. (Horas depois) Desta vez doeu-lhe, e visto o dente arrancado
percebe-se, a raíz parece um bico de corvo, enorme e rubicundo. Meto-me com
ela, Hum, não vais querer ir mais ao dentista. Resposta pragmática, Não sei
porquê, só volto daqui a seis meses.
Interessante a pergunta de Jean Clair, em A responsabilidade dos Artistas: «Como é
possível que entre todas as ideologias do nosso século (século XX) seja a
vanguarda a única que não soube afrontar a crítica?». E é uma questão fulcral.
Durante décadas, os movimentos de vanguarda sucederam-se sem tréguas (um contra
o outro, ou considerando-se o avatar que superava o anterior) e sem verdadeiro
debate ou crítica – não se concedia tempo para o sedimento, a espessura da
reflexão. A doxa vanguardista convidava o artista a “encarnar” o novo espírito,
não “a tornar-se” ou ”a “evoluir de uma postura antecedente para”... era
exigido um salto quântico e que se acatasse unilateralmente as novas regras,
sob pena de se cair no rol dos caducados, dos dispensáveis. A forma
intolerante e fanática com que Breton expulsava os “funcionários” do seu “clube”,
ilustra este tique de vanguarda.
O século XX e a história fratricida das vanguardas lembra-me a frivolidade
com que em Moçambique se pratica a poligamia. Um homem, desde que tenha meios
materiais (e no campo nem isso) e o cenáculo das mulheres o ature, tem duas,
três, quatro mulheres. E está com cada uma enquanto não surge um atrito – ao menor
sinal de desconforto, zás, muda de lar. É um conforto. Mas com nenhuma acaba por
criar "uma intimidade", pois esta nasce do equilíbrio possível entre os momentos
de prazer e os momentos de resiliência gerados pelo casal, quando enfrenta as
decepções mútuas e se reinventa nisso. Ou seja, noventa por cento dos polígamos (não quero dizer que seja com todos a mesma nódoa) tem o comportamento próprio de um campeão olímpico do sexo destituído da menor vontade para cultivar a inteligência emocional ou relacional.
Claro que caricaturo, da mesma forma que envolvidos nas vanguardas havia muita gente capaz de dialogar e de afrontar a crítica, mas como esquema geral é o que fica, e as caricaturas não são fumo sem fogo.
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