segunda-feira, 8 de junho de 2015

UM DIÁRIO AFRICANO / 4


                                                                 Soutter, "il est sanglante!"


08/06

Tenho de fazer uma mesa pé-de-galo para perguntar ao meu pai como se enlouquece. Seria um conforto tão grande. Eu que estive tão próximo aos 19, 20 anos, por causa das drogas, preso a um ramo de paranóia que alucinava o que se dizia à minha volta, mas salvo in extremis pelo declarar-se da loucura dele, e pelo amor da Alice, a quem eu nunca tive a coragem de contar o meu estado, e que apesar de estranhar certos comportamentos em mim manteve a sua confiança e fidelidade. Depois rebentou a paranóia dele, uma coisa aracnídia, uma estrela negra – e sugou tudo. Sugou também as minhas crostas em ferida, obrigando-me a reagir. Não podia haver duas estrelas negras na mesma casa. Às vezes pergunto-me se ele não enlouqueceu para me salvar, se o amor de um pai chega a isso. Conseguiria eu enlouquecer no lugar de uma filha? Espero que sim, gostaria de ter a dignidade disso. Mas não sei, sinto-me tão vulnerável e cobarde.


Vou dar teste aos alunos de Filosofia de Arte. Estou muito curioso em ver como se vão desenvencilhar na segunda pergunta: «Escreve Alain Badiou, na página 24 do ensaio que teve de ler: “Defenderei mesmo de bom grado, que a obra de arte é, de facto, a única coisa finita que existe. Que a arte é criação da finitude.” Interprete.». Acho extraordinário esta concepção da arte como “bonsai”. O contrário da sublimidade romântica, dos mitos da glória e da arte “maior do que a vida”. Apenas uma janela para a singularidade. Pequena, mas fulcral.
O que tentei dizer neste poema, inédito:

O QUE SOBROU AO FIM DO MUNDO

Assim que me livrei, como lastro,
dos brilhos, precipitou-se sobre mim,
anelada, fulgurante, a noite.
Sobejam ainda pequenas vaidades
e um drama insolúvel para um lerdo animal
de carga: não tenho a memória na ponta da língua.
Daí que, quando, na senda do que respiro,
a imaginação me afunda no seu lençol
freático, tenha que me certificar se não nado
como um coentro, pois a morte é a granel,
não escolhe os filhos. Eis o farnel
de prudências que retive.
Do mais me desfiz: sinais de identidade,
amores aparatosos, palavras
que fulgem como isqueiros. O importante
na mão é a sua leveza, abrir-se
para dar, abrir-se para receber.
É o que o pulso e o ninho têm em comum:
o vento. E agora, mal fecho as pálpebras,
uma infância tropeça nas escadas,
uma galinhola, em pleno voo,
tomba de joelhos, um prego
finalmente respira fundo.
É uma vigília que não cessa  
a fadiga de ser prodigaliza a sede
de ser outro e a fome de outra
pele descarrila a minha.

Levei décadas a libertar-me dos “brilhos”, das “palavras
que fulgem como isqueiros”. E foi este gesto que muitos não entenderam nos últimos Herberto.



A Jade gosta de ir ao “tira-dentes”, está radiante. Até nisto é única. (Horas depois) Desta vez doeu-lhe, e visto o dente arrancado percebe-se, a raíz parece um bico de corvo, enorme e rubicundo. Meto-me com ela, Hum, não vais querer ir mais ao dentista. Resposta pragmática, Não sei porquê, só volto daqui a seis meses.  



Interessante a pergunta de Jean Clair, em A responsabilidade dos Artistas: «Como é possível que entre todas as ideologias do nosso século (século XX) seja a vanguarda a única que não soube afrontar a crítica?». E é uma questão fulcral. Durante décadas, os movimentos de vanguarda sucederam-se sem tréguas (um contra o outro, ou considerando-se o avatar que superava o anterior) e sem verdadeiro debate ou crítica – não se concedia tempo para o sedimento, a espessura da reflexão. A doxa vanguardista convidava o artista a “encarnar” o novo espírito, não “a tornar-se” ou ”a “evoluir de uma postura antecedente para”... era exigido um salto quântico e que se acatasse unilateralmente as novas regras, sob pena de se cair no rol dos caducados, dos dispensáveis. A forma intolerante e fanática com que Breton expulsava os “funcionários” do seu “clube”, ilustra este tique de vanguarda.
O século XX e a história fratricida das vanguardas lembra-me a frivolidade com que em Moçambique se pratica a poligamia. Um homem, desde que tenha meios materiais (e no campo nem isso) e o cenáculo das mulheres o ature, tem duas, três, quatro mulheres. E está com cada uma enquanto não surge um atrito – ao menor sinal de desconforto, zás, muda de lar. É um conforto. Mas com nenhuma acaba por criar "uma intimidade", pois esta nasce do equilíbrio possível entre os momentos de prazer e os momentos de resiliência gerados pelo casal, quando enfrenta as decepções mútuas e se reinventa nisso. Ou seja, noventa por cento dos polígamos (não quero dizer que seja com todos a mesma nódoa) tem o comportamento próprio de um campeão olímpico do sexo destituído da menor vontade para cultivar a inteligência emocional ou relacional.    
Claro que caricaturo, da mesma forma que envolvidos nas vanguardas havia muita gente capaz de dialogar e de afrontar a crítica, mas como esquema geral é o que fica, e as caricaturas não são fumo sem fogo.

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