quinta-feira, 11 de agosto de 2016

DESANUVIAR AS NUVENS, CELEBRAR O CORPO



Quando estou um dia sem ler sinto-me como o carreiro que se extraviou da sua formiga.  E gaguejo. Para retomar a articulação da fala preciso de alimento, isto é: de leitura.
Hoje calhou-me o Efeitos de Captura, de Luís Filipe Sarmento. E calhou-me bem porque numa região deserta um dia enevoado é sempre bem vindo.
Abre o Wittgenstein o seu Cultura e Valor com a seguinte proposição: «Temos tendência para confundir a fala de um chinês com um gorgolejo inarticulado. Alguém que compreenda o chinês reconhecerá, no que ouve, a língua. Muitas vezes, não consigo analogamente, distinguir num homem a humanidade».
O que gosto no livro do Sarmento é que: a) ele posiciona-se perante a linguagem como nós diante do chinês, b) nele, o «gorgolejo inarticulado» estende-se ao “mistério” do corpo, c) o espaço de abertura ao outro não descura o social (o político) e na sua busca, também ele, procura «distinguir num homem a humanidade».
O livro divide-se em três andamentos ou blocos temáticos:
- Do Abismo
- Da Superfície
- Do Raro
No primeiro fala do abysmo (é com ipsilon que o poeta o grafa nos poemas) que se abre no corpo em relação ao mistério do seu sentido intrínseco.
Logo nos dois primeiros versos do poema de abertura:
«Capto a imagem do corpo
e dou-lhe um nome: rosto.»
vemos que o rosto está no lugar do corpo, como  remate de um feixe que não traz logo consigo elucidação mas antes dúvida:
«O rosto não é uma face
mas a sua assinatura
plena de perplexidades».
Espantoso é o que vem a seguir, porque sendo embora uma evidência é um achado, no sentido que predetermina um ovo de Colombo:
«Porque sou um rosto que não vejo
nunca me libertarei da imagem
captada no corpo do outro,
capturando-me inexoravelmente.»
Portanto, o primeiro obstáculo da condição humana começa no facto de «tudo significar outra coisa» (uma asserção que Herberto já havia sublinhado) e só pela imagem do corpo que o outro me devolve se manifesta um vislumbre de assentimento. Antes desse apaziguamento erguem-se os «pontos de abstracção», obstáculos no caminho para a transparência, e que, aliás, nos tendem a enganar porque a luz que os assinala é afinal diferida, codificada:
«Como se tudo começasse
nos sentidos negros
da abstracção: a luz
sintética revela-nos
o conhecimento
que nos perturba.»
E por isso tantas vezes:
«Entre mim e o objecto do meu olhar
há um abismo que me aprisiona
a palavra libertária.»
Esta aporia, esta violência que enclausura a própria palavra na intransitibilidade com que os objectos estabelecem connosco uma “economia de relação” (sempre a merda de economia) que acaba por fantasmear-se, deixando-nos à míngua de significação, só tem escapatória na realidade do corpo, o qual, por sua vez, depende, para volver inteligível, da relação, da abertura ao outro e «à captura mútua» em que os significados permutam de valores até o vínculo impor uma liberdade (uma liberdade dilatada por rejeitar na base qualquer “economia de relação”) que se preserva pela sua paradoxal dádiva ao outro:
«Na experiência do corpo
a impossibilidade total do objecto
risco de fronteira
(…)
a boca inunda-se
de um dilúvio pleno
retomando o corpo perdido».
Portanto, um ser humano completo é mais do que uma disposição intelectiva e só se produz face à extrema coragem de abrirmos os poros ao «dilúvio» do outro, que começa como a água na boca. E nesta reciprocidade, como se diz a fechar o livro, há:
«uma tomada de posse
neste espelho que já não me pertence
a derrota de quem vence.»
O último verso do livro funciona como uma espécie de paráfrase a uma espantosa asserção de Maria Zambrano, a qual capatulta uma redimensão ética nos relacionamentos históricos e humanos: «e um dia os vencidos serão plagiados».
E por aqui creio estabelecer-se outro veio deste Efeitos de Captura, que começa por indagar o mistérios do corpo para clarificar o que existe de político no seu devido ou indeviso uso. Lê-se no primeiro poema que abre o andamento Da Superfície:
« (...) se Trimegisto tinha razão –
se tudo o que está em baixo
é como o que está em cima –
a evasão ao medo
será um confronto histórico
com os sequazes do dinheiro.
Não é uma luta divina
com a nova ordem mundial:
será o corpo a corpo
com a sobrevivência
em busca do berço perdido.»
E este corpo a corpo cedo é assediado por milhentas armadilhas, de entre as quais a massa de descrições com que o poder nivela a textura áspera da realidade numa superfície escorregadia e atreita à reprodução discursiva (convertendo em viciosos círculos a espiral que a libertação dos corpos funda ao reinventar a cada instante da relação a sua “linha de pensamento”), à retórica dos manuais-de-instrução que tecem as nervuras, os dispositivos de desejo impostos pela “natureza” redutora do “consumidor”:
«Corpo a corpo com a deceção:
luta de uma geração agnóstica
por imposição, o mundo à superfície
é um manual de instruções,
um ritual iniciático,
pela sobrevivência
no pantanal dos economistas eleitos,
(...) contra a humanidade desfalcada.
 (…)
e o mundo tremeu, desabou, ruiu em inglês
e deflagrou em mandarim»

Um livro que se posiciona do lado da espiral contra o círculo só pode denunciar a usura que hoje abala a Europa (e neste aspecto o “fascista” Pound tornou-se profeta), mas, é uma das qualidades do livro, embora não ignore (e faz dele diagnóstico) o estado das coisas Efeitos de Captura não cede ao niilismo e antepõe ao «kaos» (curiosamente, o políticamente correcto) a vitalidade de um princípio de dilucidação solar:   
«Neste museu de destroços
não reconheço nenhum apocalipse: apenas o novo lugar
da minha residência destruída.
Nesta cidade impossível, o choro recém-nascido
devolve-me a consciência da memória
liberta de velhos ancoradouros.
Uma nova estética no palco de um teatro invulgar
abala a representação do passado: a derrota
do malogro descobre à superfície
um repositório desconhecido de sensações.»
Contra as aparências, portanto, ressalta o singular, o Raro, a terceira categoria dese livro e que organiza o “campo” do terceiro movimento:
«O raro
só deflagra, não se multiplica:
apenas a loucura dos meus olhos
o captura na sua efemeridade»
É o Raro que desanuvia o sombrio movimento da doxa, que repele as unanimidades e a realidade sensatamente organizada ( - ele «não se multiplica»). É o Raro que torna os universos (tal como os corpos) cambiantes e reversíveis e que re-converte o Kaos em sentido. É o Raro, por fim, que ilumina de forma tão apetecível as modulações sensíveis do vencido que se torna apetecível imitá-lo:  
«O indizível infinito
existe sem tréguas
como um espetáculo
que sensibiliza
o meu prazer. Rara
presença, o infinito
amedronta-me
no prazer de o tornar
finito: objeto percetível
cuja carne saboreio
numa lenta digestão
do kaos.
Rara ambiguidade:
a dor e o prazer de te comer
quando me capturas.»
É pois o Raro que permite distinguir, como um afloramento granítico, nas afecções do corpo o Amor e entre tantos supostos humanos a Humanidade. A qual continua a procurar-se, desesperadamente. Por isso há uma ambivalência no título do livro: aos efeitos de captura estamos sempre expostos, não há imunidade contra eles. Mas há os efeitos de captura patológicos, aqueles que nos aproximam da reificação, e aqueles que nos tornam autónomos porque eles são igualmente a combinatória da vulnerabilidade do Outro e o respeito integral que só o Amor desempenha nisso.
É também Raro este livro, com certeza um dos mais apaixonantes de 2015.


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Este textículo, impressivo e rápido, sob influência imediata da leitura fez-se a partir da leitura da versão parcial do livro, ainda que bilingue, saído na Argentina, na editorial Levíatan.
Para uma análise apurada e magnífica do texto integral deve ler-se https://mjcantinho.com/2015/10/04/apresentacao-de-efeitos-de-captura/ 
















sábado, 30 de julho de 2016

O VENTO E A ESCOLTA, 29/08/2016

irving penn


Quando estou num período mais repousado, por questões de equilíbro e ecologia mental, tento traduzir ou fazer versões de pelo menos um poema por dia. Hoje descobri outra razão adicional para o fazer: a busca de uma expressão exacta, como quem esculpe na água.
Mais dois poemas de Milosz. No segundo habita um verso que é particularmente luminoso do ponto de vista da intuição que nos inculca: «Amo a matéria que é só um espelho que gira». Este é um verso que diríamos herbertiano, não fora ser-lhe três décadas anterior – dele ressalta o veio profundo que navega subterraneamente na diccção de alguns grandes poetas, uma espécie de vsão transpesoal interior/anterior ao expresso. E repare-se como este «espelho que gira» é já «o andado desandado» do segundo poema, escrito sessenta anos depois.

MANHÃ

Bela é a terra
belas são as nuvens
belo é o dia
e muito intenso é o amanhecer.


Assim cantava um homem olhando para baixo, a cidade,
de onde fumegava uma bateria de cem chaminés.

E o pão da mesa era um segredo,
de vê-lo palpitava a fronte
o homem levantou alto o braço
e entre risos dançava ao redor, desfraldado.

O sabor do pão recorda a luz do sol
ao comê-lo, do pão irradiam raios.
Depois, indo para o trabalho, o homem sentiu o amor
e mencionou-o às pedras da rua.

Amo a matéria que é só um espelho que gira.
Amo o movimento do sangue, única razão do mundo.
Creio na destrublidade de tudo o que existe.
Para não perder-me, tenho na mão um lívido mapa de veias.


ESTE MUNDO

Acontece que houve um mal entendido.
Tomou-se por literal o que não passava ainda de uma prova.
Os rios voltarão às suas origens,
o vento deixará de dar voltas.
As árvores não brotarão e voltarão às suas raízes.
Os velhos correrão atrás da bola,
Olhar-se-ão no espelho e serão outra vez meninos.
Os mortos despertarão sem compreender.
Até que todo o andado se desandará.
Que alívio! Respirai, vós que tanto haveis sofrido!


COMENTÁRIO A PASCAL

Pascal: «il n’aime plus cete personne qu’il aimait il ya dix ans. Je crois bien: elle n’ est plus la même, ni lui non plus. Il était jaune e elle aussi; elle est tout autre. Il l’aimerait peut-être, telle qu’elle étais alors.»
A asserção é heraclitiana e há algo de pueril neste juízo. Próprio de um homem que nunca teve mulher. É evidente que  tempo nos muda e, simultaneamente, muda também as circunstâncias e o pano de fundo em que amávamos. De facto as relações afectivas têm estações como a natureza e conhecem o inverno. Na nossa imaturidade não acreditamos que o inverno prepara a Primavera, dado associarmos, com nefanda estupidez, o amor à intensidade emocional dos instantes. O amor é uma lenta aprendizagem do tempo à sua feição natural, que é cíclica. Ou antes, é uma forma de incarnar sem atrito as transformações silenciosas que o tempo produz em si mesmo ao vivenciar as suas manifestações.
Crescemos sem darmos conta, como amadurecem os frutos e os cães mudam de temperamento – um dia olhamos a criança e notamos: está enorme! Nós não nos vemos envelhecer, de forma consciente – a não ser que tenhamos a doidice de Frida Khalo que tinha um espelho no dossel, suspeito que para espreitar duas coisas: o seu rosto lânguido quando gozava e, no inverso, os estragos que o sacho e a enxada do tempo faziam no seu corpo. Provavelmente, por fim, para surpreender a chegada da morte, embora seja impossível estarmos em vigília permanente; suspeito que a morte lhe terá chegado pelas traseiras. Na verdade, a vida é sem esperança e o amor – essa entronização do tempo em nós através da atenção e do corpo de outrém – é a aceitação disso sem tragédia, com sabor incluído e um ligeiro patetismo. Não convoco aqui, para já, outro elemento vital ao amor mas suplementar: a dignidade. É um suplemente desejável, mas à parte. Pode haver paixão sem dignidade, pode ser até iníqua. Faz parte do espectro da paixão desvelar nódoas no carácter, porque é sem moral. O amor pelo contrário, é a polpa que aprende a não corromper-se. É a isto que se chama fidelidade. Que não tem nada a ver com os acidentes na paisagem – a passagem de um ou outro aerolito momentâneo – mas antes com a constância de acreditar que o inverno prepara a primavera. Pelo que a proposição pascaliana  (ou heraclitiana) não passa de uma puerilidade coroada pelo sucesso da sua fórmula.


INFORME SOBRE A SITUAÇÃO NA TURQUIA

Formigam os homens endiabrados
À procura da pata de Deus.  

segunda-feira, 25 de julho de 2016

ESCRITOS NA VARANDA: IMPERMANÊNCIA



Uma vez em casa do poeta Joaquim Manuel Magalhães vi-o riscar com sanha uma palavra que a editora havia impresso ao fim da página de rosto do seu belo livro Segredos, Sebes, Aluviões, enquanto vociferava contra a impertinência da “sentença” intrusa.  A palavra era “impermanência”. Bom, o Joaquim era então um pequeno deus e eu um candidato a oficiante, teria ele menos dez anos do que os que conto nesta altura. Já na juvenília da veterania autorizo-me a pensar que, mesmo nos melhores de nós, além da soberba há vezes em que também nos sobra a imprudência.
Lembrei-me desta história depois de ter escrito o poema que se segue, no intervalo de uma dessas pesadas tarefas que impõem uma mudança de casa. Resolvi descansar uma hora e levei para o café uma antologia do Milosz. Foi no confronto com este magnífico polaco que se verteu o poema:

«IMPERMANÊNCIA

As estrelas exumam a luz
do fundo do seu próprio abismo.
Pestanejam e salta o tigre.

É infindável o núcleo das estrelas,
vive na ponta dos seus raios,
na transparência com que o felino

trespassa as suas presas,
alumbrando-lhes a carne e os ossos
- como a palavra, sentada

num grão de pó, lhes parece
agora saturada! A energia
que as estrelas despendem

neste esforço é a mesma que late
no teu coração, amor, e insuficiente

é o nosso fôlego para retê-lo.

sexta-feira, 29 de abril de 2016

MAGNÓLIA E DANTE / a parte maldita


A arrumar papeis redescubro este artigo que fiz sobre  o magnifico Magnolia, nos distantes anos 90. Porque o achei sem rugas, aqui o deixo



MAGNÓLIA E DANTE:
A PARTE MALDITA
Blake e Miles são os dois dálmatas que flanam pela mansão de Earl Partridge, o empertigado magnate da comunicação que se debate com a doença, num leito que se adivinha derradeiro.
Houvesse um terceiro dálmata (poderia chamar-se Bacon) e refazia-se assim a figura de Cérbero, o monstro com três fa(u)ces de cão e corpo eriçado de cabeças de serpente (que fisionomicamente têm semelhanças com as cabeças dos dálmatas, nasceram do mesmo padrão), que guarda Aqueronte, o rio da morte, e convocava-se, ao mesmo tempo, a poesia, a música e a pintura: três testemunhas fiáveis do “passamento” dos humanos neste trânsito terreno.
Magnólia, o filme de Paul Thomas Anderson, encena um mundo em queda, nos seus diversos círculos infernais. Precisamente, uma das leituras inesperadas que este filme proporciona nasce da consonância do seu universo com o que Dante desenha a pontas de fogo n’ O Inferno. E numa narrativa que começa com o insólito caso de um suicidado, Sydney Barringer, às mãos dos seus pais, e por expôr a serialização que as coincidências organizam, assestando uma nova mira para a inteligibilidade do real (as sincronicidades jungianas), a existência de inegáveis semelhanças estruturantes com a obra de Dante permite lê-lo como uma plausível variante cinematográfica da Divina Comédia.

Magnolia compõe um mosaico de destinos que se animam como labaredas à medida que se vai impondo o âmbito dramático. As personagens de Magnolia, nove como os círculos deO Inferno, só descobrem a sua verdadeira dimensão quando acossadas pelo carácter emergente, irreversível, inaceitável da dinâmica que a morte descongela.
O feliz prazer da repetição ou reiteração, que governa a vida da infância até à estação final, vê aí amputado de súbito aquilo que futuriza a vida: o poder de antecipar (Julian Marias). É pela voragem da morte que o filme lhes sega as ilusões e nos faz penetrar na autêntica dimensão das personagens: a Dor, letal e impensável “latência manifesta”. Aquilo que obstrui à vida o seu delta de possibilidades.
Mas lembremos os traços gerais da trama: Earl Partridge/ Jason Robards (1), dentro de poucas horas, vai morrer. A sua jovem mulher Linda/ Julianne Moore (2), que sempre o atraiçoou e herdará a sua fortuna, devia estar radiante. E no entanto... O moribundo só tem um desejo: rever o filho, Frank Mackey/ Tom Cruise (3), que ele, um dia abandonou à cabeceira da cama onde a sua primeira mulher morreria do “mesmo” cancro que agora o abate. Frank converteu-se num falocrata irado, um guru da misogenia que quer converter os vínculos sexuais à lógica do «fast food». Para realizar o contacto com o filho Earl só pode contar com a solidariedade de Phil/ Philip Seymour Hoffman (4), o devotado enfermeiro que o assiste.
Entretanto, outro núcleo duro de personagens orbita à volta de Jimmy Gator/ Philip Baker Hall (5), um celebrizado pivot televisivo que por sua vez também morre com um cancro. Gator, para os telespectadores incarna os valores da família americana, mas existe um fosso entre as aparências e a realidade. Como sabe Claudia/ Melora Walters (6), sua filha, de quem o pai abusou e que agora é um farrapo humano entregue à toxicodependência. Na vida desta, por via de uma queixa dos vizinhos entra Jim (7), um polícia de falas mansas absolutamente devotado à causa do bem. Implicados com Gator estão também Stanley(8), um menino prodígio que é um barra nos concursos de temática cultural, e Donney (9), um ex-campeão dos concursos, e cujo sucesso não o deixou amadurecer para o amor (como ele diz:«tenho mesmo amor para dar mas não sei onde o pôr»).
Entre a agonia de Earl e a apocalíptica chuva de sapos perfazem-se as poucas horas desta narrativa quase contada em tempos reais.        
As sequências do filme incrustam-se umas nas outras: não se desenvolvem, como é corrente, de modo espasmódico, linear, até à sua tensão final, funcionando antes como elásticos que se esticam e contraem. À maneira de uma boneca russa que assimila ou incorpora bonecas semelhantes, o filme cruza tramas que desenham um padrão comum. E assim pelo entrelaçamento de histórias paralelas, de destinos activados pela dor que os isola, instaura-se uma sincronia, a mesma que Ossip Mandelstam, em Colóquio sobre Dante, detectava em O Inferno: «O tempo para Dante é o conteúdo da história, entendida como um acto único e sincrónico».
Escrevia Mandelstam: «o terror do presente, uma espécie de terror praesentis» estampa-se com tal veemência no poema que «o presente puro equivale a um exorcismo.Ao separar-se de todo o futuro e do passado, o presente conjuga-se como dor pura, como perigo».
Repare-se agora no que diz Dante, no Canto XVI: «Eu estava onde ouvia o ribombar/ da água caindo noutro círculo, semelhante ao que soa um colmear.» É espantoso verificar como isto ilustra a montagem de Magnólia. A montagem do filme processa-se por cortes verticais, não faz “avançar” o tempo, é –lhe interior. Cada cena é um estrato, de onde a “água” (o caudal das imagens) transborda, caindo no seguinte: o mecanismo é normalmente um travelling lento que vai aproximando a câmara da personagem até ao GP (grande-plano). Quando a câmara foca esse mapa que é o rosto, o instante conjuga-se como dor pura, como perigo, e os sulcos da emoção acabam por emaranhar-se, decalcar-se uns nos outros, por transbordar, alterando assim o desenho do mapa, isto é, do rosto.
A dor de Earl, por exemplo, que lhe reduz a expressão à afasia, permite o raccord com a elocução de Gator, que também está minado. Ou a volúpia de Frank a enaltecer nos seus seminários o membro viril tece um raccord com o grito de remorso de Linda quando alude aos felácios com que traiu Earl.
Sublinha-se este procedimento formal em duas sequências onde a montagem desenha uma “panorâmica” de 360º pelas personagens: primeiro no começo da emissão do concurso televisivo, O Que É Que As Crianças Sabem?;depois, no momento anterior à queda dos sapos, quando todas as personagens interpretam o terrível refrão da canção de Aimée Mann,Wise Up: «A dor não vai parar/ Até que consigas despertar». Despertar para quê? Para a morte? O que é iniludível é que essas duas “panorâmicas” perfazem um círculo, infernal, que a todos contém. Ninguém está ileso.
Adiantava-se acima que as personagens são nove como os círculos do cone invertido doInferno. E serão atribuíveis a cada uma características que as afinam com os diferentes tipos de «pecadores» recenseados em cada círculo? De imediato podem-se identificar três dos protagonistas centrais da fita – Earl, Franck, Gator – com as três feras assustadoras que aparecem a Dante, no início da sua jornada: a pantera, o leão, a avareza. A jovem pantera com o filho, Frank, o leão com o pai, Earl, a avareza, por antonomásia, com Gator – o animador televisivo que pode manipular o destino financeiro dos concorrentes. Curiosamente, estão os três ligados à “indústria dos media” e neste caso, ousemos extrapolar, nesta Trindade coube a Gator o papel do Espírito Santo, aquele que na realidade corporiza e valida o “espírito” da televisão.
Mas podíamos ensaiar algumas outras afinidades: Stanley, o menino prodígio da televisão, Don, o ex-menino prodígio, e os pais de ambos, podem perfeitamente caber no círculo IV, os dos «avarentos e pródigos» (os pais são avarentos porque retém «o dom de amar», ou o condicionam às performances dos filhos, os pródigos);Linda teria o destino dos «luxuriosos», o Círculo II; Frank engrossa a lista dos «fraudulentos» que recheiam o Círculo VIII, como aliás o seu pai e Gator; a filha deste, Claudia, inscreve-se no Círculo VII, o dos «violentos contra si mesmo»; Jim, o polícia, identifica-se com os «pusilânimes» do Vestíbulo, que se situa aquém do Aqueronte, etc.
O facto de Jim ser um pusilânime, defeito que o coloca, digamos, no hall do Inferno, ser-lhe-á favorável. A sua exterioridade abre-lhe as portas da narração, dando-lhe o direito de ser um dos cicerones desta visita aos labirintos das trevas que a malha urbana tece. Ainda que o deixe duplamente sozinho face à consciência de que pouco pode fazer para alterar o seu e os restantes destinos. Jim e Phil, um enfermeiro de tal forma devotado que só lhe resta uma réstia de vida «por procuração», simbolizam «o bem» nesta fita. Ambos altruístas, embora impotentes: a nenhum deles é reservado o poder da cura. A situação deles compara-se à que Dante definiu para Virgílio: «mais do que uma sombra e muito menos que um homem».
Jim, com honras de narrador final, resume deste modo a sua missão no mundo: «Às vezes as pessoas precisam de ser perdoadas. A parte tramada é que não posso abrir mão disto...». Subentenda-se: a parte tramada é não lhe caber o livre arbítrio, condenado a esse papel de uma vã misericórdia! É caso para invocar a terrível fórmula de Séneca: «antes de sermos marinheiros somos naúfragos!». 
A única finalidade aceitável das actividades humanas como a cultura é a produção de singularidades que enriqueçam de modo contínuo a relação do sujeito com o mundo. Nos concursos televisivos esta relação é pervertida pois a cultura é convocada para ser diluída como item ou molécula no fluxo informativo. Stanley sabe identificar e mesmo cantar um trecho de Carmen de Bizet mas não é um fruidor do «belo canto», pois esta qualidade requeriria um desperdício de tempo; tão vital à sua abulimia de dados informativos.
O que é que as crianças deste concurso televisivo sabem? Que as esferas cognitivas e a da emocionalidade estão de costas voltadas. Que a concorrência começa em casa, o que as obriga a viver num cenário onde o tempo já não devaneia, sonha, ou se extravia. O tempo, neste filme, sofre-se como um desgaste ou um veio por onde correm a especulação e o embuste. Tempo é dinheiro. E por isso caiem sapos do céu, como se moedas de lama fossem. Na realidade, em Magnólia, o céu já não existe, foi convertido numa enorme pantalha luminosa onde cada sapo equivale a um grão.
A dado momento, não vaticina um jovem rapper que o crime que Jim investiga foi cometido pelo «Verme»? Verme era um dos nomes que designava o Diabo na Idade Média. E consequentemente justifica-se o espanto do jovem rapper em relação à cegueira com que as forças da ordem sonegam o evidente.
Uma sociedade na qual o tempo já não é transporte no sonho e onde sobrevém uma dificuldade em fixar o que se apresenta à frente dos olhos produz uma modelização restritiva quer do sujeito, quer do social. Ángel Crespo num ensaio sobre as «metamorfoses» em Dante conclui que, em O Inferno, estas estão subordinadas ao que o pecado de cada um potencializava. Ou seja, as metamorfoses (os suicidas transformados em árvores, por exemplo) espelham uma eterna confirmação da falta praticada e a maior condenação estaria nesse impedimento em ser-se outro, ou outra coisa. A impossibilidade de esquecer, em suma. Queixa-se Gator, a dado momento: «Nós podemos cortar com o passado mas o passado não corta connosco». 
No filme, o drama de Donney, que sintomaticamente quer mudar a sua imagem com uma operação aos dentes, reside na sua impossibilidade de esquecer que já foi, como Stanley um menino de ouro e que agora não passa de uma nódoa-em-aberto. Este insofismável sentimento da queda tem raíz na sua «imagem televisiva» - de um implacável vencedor - em contradição com a sua débil presença «ao vivo». Donney não sabe descartar-se da sua imagem, o que precipita uma extrema indistinção sobre o que em cada momento sente. 
E isto leva-nos a outra analogia, a da esfera televisiva com Dite, a cidadela que se implanta no Sexto Círculo de O Inferno e à beira de cujas muralhas se localiza o cemitério de Epicuro e dos seus sequazes.
Segundo Epicuro o bem supremo do homem está no prazer negativo, na ausência completa de dor para o corpo e de perturbação para a alma. O pensamento de Epicuro está para a filosofia como as poluções nocturnas estão para o amor mas o figurino antecipadamente «virtual» das suas posições - o bem é substituído pelo prazer e o mal pela dor - estatui como norma de conduta um critério eminentemente subjectivo, que contribui para a dissolução de qualquer vínculo moral.
Perfil que me parece encaixar no perfil desse «espectador televisivo» que Fernando Belo evocava num dos seus livros (em Filosofia e Linguagem) ao relatar o caso daquela senhora das Avenidas Novas que à menção da bomba de neutrons replicava, excitada: «Não hei-de morrer sem ver. Ora, está consumada a aspiração das guerras «em directo». E com ela chegaram o turismo televisivo, a ginástica ou o sexo televisivo, a lotaria e o confessionário. Hoje, o hedonismo social persegue o êxito televisivo – que entre outros atractivos converte vícios em virtudes e até um aprisionado Capitão de Abril (o Otelo) numa inesperada fera sexual – que, com uma irónica vocação mallarmeneana, tende a olhar o mundo como um atributo da sua caixa virtual.  
Em Dite, a cidade onde se acolhiam, repare-se, os «violentos contra Deus, a natureza e a Arte», todos os seus «internos» se encontravam sob vigilância de uma tropilha de demónios. Esta vigilância medida ao décimo de milímetro não me parece distante da que é hoje ensaiada por uma Entidade Audiovisual que procura moldar o mundo ao seu circuito interno. E que dizer quando até o interior do corpo (como nas tomografias de Earl) é vasculhado pelas «imagens», transformando a doença num ruído?
Saliente-se, por último, o paradoxo que desencadeia o facto de que quanto mais nos sentimos vigiados pelas câmaras menos queremos ver o que está diante dos olhos.  
Conta Boccaccio na sua “Vida de Dante” que os últimos treze cantos do Paraíso se haviam extraviado e que acabaram por ser encontrados quando um sonho revelou a Pedro Alighieri, filho de Dante, onde se escondiam. Não teria Dante, para quem a sua obra se inscrevia no quadro das profecias, achado que esta precisava de ser actualizada soprando aos ouvidos de um adormecido Anderson a trama para o filme?
É uma hipótese: é mais que um dizer.

quinta-feira, 21 de abril de 2016

AS AMORÁVEIS CAUTELAS, O REGRESSO DE OZO

                                                                  Roberto Matta

Escreveu-me Ozo, o meu amigo mais herético. Está em Hong Kong. Enviou-me um novo poema, que corre em baixo


AS AMORÁVEIS CAUTELAS

1

Pela invasão capilar
instalei-me nos versos.
Sobre
sob
a derme
de um deus careca
instalei-me nos versos.


2

O coração disparado
pisoteia-lhe
a flor.

Merda para as estrelas
perfumadas do Mallarmé
pensa, A mim
é o coração disparado
quem digita inteiro
o som
da morte.


3

Amplio-me.
Sou a última gota
no teu corpo
de vinho.
Aí se turva
a linha,
na acidulada rosácea´
do teu ânus
inflecte o horizonte
para dentro.
E aí nada se deslassa,
hélas!


4

Olhando de viés
despejei-lhe o chumbo
nas tripas.
Não custa abandonar
cidades
que só têm meandros
e perfídias.
A caixa estava quase
vazia,
entre mim e a vida
não há uma ganza
há uma gaze.


5

Já não sabe estar só.
Em estando sozinho
sente-se em ressaca.


6

Pode uma vida agastar-se
sem reboco,
os fios de electricidade
bamboleantes
ao vento;
o tijolo descontínuo,
pardo?

A delida cinza
das gaivotas
satura o ar.

A boca seca,
assoreada.


7

Não faças como os antigos,
não te assoes
ao poema.
Não lhe imponhas a constipação
de Pessoa, nem a tua,
tácita.

O único drama
com a metafísica
é que não se coaduna
com a exaltação da raposa
quando trincha
a perdiz.
Não existe o azul,
simplesmente
o para lá
dos cipestres.



8

Dar à identidade
uma pele de galinha?
Há que recuar.

A minha mãe pariu-me
com táximetro.
Juro não cair noutra.


9

Que as estrelas que latejam
no meu crânio
lá se mantenham depois da enxaqueca!

És ambicioso, pá!


10 (releitura de Lispector)

E a Clarice
sem mover raciocínios
nem guindastes
tirava um macaquito do nariz
e pensava distraidamente
no que um querubim
tinha segredado
ao S.Pedro:
a sua tremenda saudadade
de morangos.


11

Rasuras, reenxertos:
extravagando.

Cidades em divisas:
uma folha de jornal
que o vento desdobra
aos baldões.

Desafeita glande
Adormecida.


12

Numa amorável cautela
saiu-me o verso de um poeta sueco
dos mais caros:
“Nunca houve
degelos

Iníquos!”