quinta-feira, 2 de julho de 2015

ACTOS DE CULINÁRIA

 
Ontem, no evento do lançamento do livro, coube ao Machado da Graça a apresentação. Eu li este breve texto sobre o mecanismo da recriação das fábulas:


«Ao pegar no molho de estórias que o Gianfranco Gandolfo reuniu desta vez – o Gianfranco é o fura-fura, o investigador deste grupo, aquele que vai aos arquivos farejar o que lá está perdido e esquecido – e nos trouxe para serem reelaboradas, apercebi-me logo de que havia no material todo o tipo de situações e de estado genético. Havia do mais suculento aos farrapos dificilmente aproveitáveis. No entanto, à partida quase todas as narrativas colectadas padeciam de dois problemas, primeiro o português do transcritor era de fracos recursos, e depois, em noventa por cento dos casos não tinha a menor noção de como se contava uma história e se arrumam os materiais, e sobretudo, de como se dá ritmo a uma frase. É elementar não esquecer que estas histórias orais foram recolhidas no princípio dos anos oitenta, ainda Moçambique dava os primeiros passos para sair da grave realidade de noventa por cento de analfabetismo em que se encontrava à saída da independência.
Acrescente-se que muitas das histórias estavam truncadas. Ou terminavam antes ou fora de tempo, ou algumas havia em que o fio era cortado, simplesmente. Vou dar dois exemplos. Começo com a história de O CEGO NWAVUTLARE.  Nesta história narram-se as desventuras de um cego que na sua condição não consegue governar a sua vida pelo que nenhuma mulher o quer. E então ele sente a falta, quer do direito à reciprocidade, quer, mais chãmente, do coiso e tal, daquilo que faz os gatos miarem em certos meses. Sob essa pressão de um desejo que ele não consegue calar, forja uma artimanha e assim arranja a primeira mulher. Depois, como ela tem uma voz prenhe de sensualidade que o derrete, compreenda-se, então imagina imediatamente os riscos de ser traído, e resolve partir com ela sem demora, para longe dos olhares da malícia alheia.
E chegam a uma terra sem homens, o que o deixa antenado, pois imagina-se um reizinho entre um cento de fêmeas sedentas. Só que há um problema naquela terra: não há homens porque um leão os come. E o combate entre um cego e um leão é com certeza um pleito muito desproporcionado, uma tarefa que tornaria cobarde o próprio Dom Quixote. Contudo, a sorte e a esperteza favorecem-no e lá consegue matar o leão, convertendo-se no herói da aldeia, o que lhe dá uma outra aura aos olhos de toda a comunidade... feminina. Vejamos agora, como termina o conto no texto original:

«Depois de matar o leão o cego foi eleito para dirigir a região tendo escolhido um elemento da população para seu colaborador. Este, como Nwavutlare, era cego e andava sempre a aldrabá-lo principalmente nos dinheiros. Assim, certa vez, a mulher pediu dinheiro ao marido para compra de certos artigos.
O cego puxou da gaveta, tirou umas dez moedas perguntando se aquela importância chegava para as ditas compras ao que a mulher afirmou tratar-se pura e simplesmente de dez escudos (meticais). O cego voltou a puxar da gaveta pedindo à mulher para tirar algumas pepitas de ouro e mesmo libras, ao que a mulher depois de espreitar informou não existir nada do que mandava retirar senão algumas moedas de escudo e cinquenta centavos.
Informado disto Nwavutlare mandou chamar o seu colaborador com quem discutiu acabando por batê-lo com a sua bengala e que este levantou-se socando no cego. Este levantou-se, saltou muito alegrando-se muito dizendo...»

A história ficou inacabada, terá dado um chilique ao narrador antes de a completar. E embora a sugestão de que um soba cego tenha como tesoureiro outro cego seja deliciosa – lembrando-me aliás a relação que hoje se estabelece entre os líderes políticos e os seus amanuenses na Europa -, ela por si só daria outro conto, e torna-se excessiva na economia da fábula, pois na arquitectura das narrativas também se intrometem as leis da proporção.
Visto que, no essencial, se trata de uma estória anti-determinista, de um homem handicapado que luta contra o destino que lhe armava o seu problema e que ganha a batalha, resolvi ir espalhando pela narrativa breves índices da importância que tinha para ele ser reconhecido pelas mulheres e terminar com as consequências felizes do seu feito heróico - e assim um homem que vivia duma carência tenaz torna-se um pródigo, o que insinuo elegantemente:

«Depois de matar o leão, o cego foi eleito para dirigir a região e ficou menos triste e pobre e é por isso que naquela região há tantos filhos míopes. »

Um caso de mais difícil resolução era o de A RAPARIGA QUE CAIU NA COVA, onde se lia:

«Uma vez certas raparigas foram à procura da lenha e uma delas caiu dentro de uma cova e as restantes continuaram a sua viagem sem ter em conta com aquela que caiu. Esta ficou a escutar... para quem passasse ou que cortasse a lenha por aí perto, onde de repente ouviu alguém a cortar lenha, esta cantando o seguinte:
Quem corta a lenha por aqui perto 
Quem corta a lenha por aqui perto 
Quem corta a lenha por aqui perto 
Que comunique à minha mãe em casa
Que a menina está morrendo
Por estar metida numa cova aberta
Pela pata do elefante...

Informador: Nhacuavane Uache
Colector: Grupo orientado n.º 3
Gaza, Chibuto, 2/7/1981»
Lida a coisa, a gente pergunta-se, ok, e depois? E durante muito tempo achei que este farrapo de história era um caso perdido. Até que, um dia, estou a explicar a uma filha o mecanismo das lenga-lengas e então fez-se-me luz. Espera lá, vou usar o dispositivo da repetição das lenga-lengas e dar-lhe uma chave moral no fim, como é hábito nas fábulas. Mas que moral? Não me decidia e meti a ideia no cabide, à espera de uma oportunidade. Esta surgiu quando percebi que neste caso só seria útil a continuação se a história se propusesse ensinar que por vezes é preciso desobedecer para sobrevivermos ao sistema que impõe que nos tornemos tolos.
Como vêem, o trabalho de adaptação destes contos oscilou entre a recriação pura e simples ou a “simples” arrumação dos materiais, para lhes dar persuasão narrativa, detalhe, ritmo e algum polimento verbal. E por vezes, como acontece na tradução, foi preciso distorcer um pouco os elementos diegéticos, para devolver maior veracidade e energia ao espírito da coisa.
Porém, convém esclarecer, mais do que querer dotar estes contos de um estilo literário e convencional estive preocupado em recuperar neles a originalidade e a frescura e até a argúcia do estilo popular, pois imagino sempre que os narradores populares, na sua língua-mãe terão uma graça, um brilho, uma habilidade com a palavra, e as pausas que a sustém, que o transcritor não soube transmitir noutra língua.
Portanto, nestes contos há uma gestão permanente entre a liberdade e o respeito; sujeitei-me, por exemplo, em absoluto à lógica narrativa das fábulas, uma lógica anti-aristotélica, na qual os acontecimentos se sucedem ao arrepio de um mecanismo causal e onde a mundivência e a relação com os limites físicos e a morte é manifestamente diferente, sendo por conseguinte normal, como se ilustra no conto Artesão de Flautas, que alguém volte à vida e a prossiga de uma forma feliz e bem sucedida, depois de ter sido morto e pilado pelo pai.
Acabo com um provérbio chinês: «tu não podes impedir os pássaros da infelicidade de voar por cima da tua cabeça, mas tu podes, ainda assim impedi-los de construir os seus ninhos nos teus cabelos...». Ou seja não vale a pena lamentar-nos sobre o tempo em que vivemos, e é preferível adoptarmos uma sabedoria de vida cujo antegozo só a música, a dança e a literatura nos podem dar. É preciso reencontrar a leveza nos tempos de chumbo. É esta uma das mais dignas funções da ficção e espero tê-lo conseguido nestes contos onde a comédia e a tragédia se fundem com a sabedoria que a cultura popular algumas vezes nos transmite.»

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