«Fogo Posto»: um poema escrito
para um espectáculo teatral sobre os desafectos portugueses, «Dona Inês de
Portugal Foi ao Cabeleireiro», e que ficou na gaveta:
FOGO POSTO:
A VIDINHA A MONTE DE UM
LUSO-CABO-VERDIANO
Para o José Luiz Tavares
A vida é que nos chiba e faculta
os cavalos
errados. Ninguém pede o céu mas, a
Astuta,
um féretro numa mão um par de
estalos
n’outra, nem pestaneja. E lavra o
fogo posto.
Como ao magano que em queda livre
quis
agarrar-se a uma palha, assim a
contragosto
me tem mimado: quebra-me o nariz
no hipódromo, e fora dele. A
última
foi Tê-La visto empoleirada em
saltos
de agulha, numa reclinação sobre o
bilhar
que danaria o arcanjo. De fuças no
asfalto,
podiam ter-me dito que era campeã
distrital
às três tabelas, e foi a morte do
artista.
Estoirado o ordenado na parcial
tarefa
d’a impressionar, até com S. João
Baptista
lhe mandei, mas abileza fez
vista grossa,
agora nem o telelé atende. E eis-me
a desoras,
a acartar frigos, móveis e outras
mossas,
três e quatro andares sem elevador
- e foras
nada: k.o. técnico e anilhado ao
sopro
dos seus olhos. Não a culpo; a
realidade
é que dispara p’las costas em
legítima defesa
ou te entra em casa c’um grão na
asa, e, por caridade,
rasga cortinas, quebra os bibelots
da fantasia.
O tio Alfredo joga às sextas, seis
duplas
e uma tripla, um sistema que é um
missal.
Fala disso de manhã à noite, a
mulher upa
upa no galho do melhor amigo, mas
ele dribla
o desgosto: dois valetes e três
ases:
e assim põe rédea curta aos
floreados
com que a verdade sangra os mais
audazes.
Saí a ele, a vida pariu-me num dia
um bocado mosca. Sinal de dolo,
constatar que fui espichado no
muro
das traseiras, onde, remoto
consolo,
me vingo e mijo, sobre as
suásticas.
Benévola entra – uau -, gandas óculos,
suéter vermelho e rabo de cavalo -
acoroa dá-me pica.
Taciturnos
sessentas, como os da AvaGardner,
quando me descobri candidato
a amásio de velhinhas, muito
sedado,
pelo ínvio desacerto das idades.
“Arigatô,
dona Benévola”, e beijo-lhe a mão.
“Pagas-me o café, ó formusuras?”.
E eu, um trouxa de antemão
salivado
pelo que nunca será, pois até as
maduras
olham os dentes ao cavalo excitado
antes de o montarem, pago. E levo
a língua
ao esmalte, pardo e quebradiço,
por via
da heroína - lá se vai o cunnilíngus.
Três anos a bater no fundo, a
escabrear
expectativasc’a expectoração do
diabo.
E agora, elas topam. Dizem que
não.
Mas antes de dizerem sim, vão ao
lavabo,
não por vontade, mas por ter
janela.
E vai de mal a pior, que de há uma
semana
a esta parte, à noite, nas minhas
barbas,
dou nota que Algo em filigrana
me respira. É um soluço rangente,
inaudível, que me desaparelha o
silêncio
e tergiversa. Assim que sustenho o
ar
apanho-o em flagrante dispêndio
de energias, e o mistério põe-me à
coca.
Como avivadas patas de moscas: a
memória
fricciona os pensamentos uns nos
outros
e no seu verso abre-se então a
divisória.
Aí se encontram um dilema e três
agoiros.
O dilema pulsa como a minhoca
cingida
à carne do anzol, que mesmo
perfurada
grita, e o cerne do raciocínio, em
f’rida
fica cheio de picos e listras
escuras.
Os três agoiros é que o incitam,
rémoras
cravejadas no dilema, como o
sangue
nas naifas aos meus patrícios.
Cedo às metáforas,
que correspondem no futebol aos
passes verticais,
porque quero contar-vos o que me
lixa
desde miúdo, uma carência de terra
que avilta, e dá à palavras pele
de lagartixa
e, por dentro, buxo, em limalha
incandescente.
Tudo nasce da Orla que um dia
desapiedado
rompeu, como do bagaço jorra o
chavascal.
Assim, no rodízio de nascimentos,
fica apeado
o que primeiro ousar acordar o
barqueiro.
O meu pai chegou como actor, de
Santiago.
E acabou ébrio e cegueta a tocar
rebeca à janela
de um saguão. Mil vezes rejeitado
como Iago,
ali ao menos actuava p’ra estrelas
cadentes.
Era um artista português,
rodopiava
a cadeira com os dentes - oráculo
televisivo
que já não sacrifica nem entrava
a bacorada aos que um crucifixo
desbotou.
Se abria a boca soava o gongo
da brancura, rijos como aço; a
cadeira,
uma casquinha pintada que pronto
se desmancharia em voo se ele não
fosse
um cavalheiro. Take à primeira.
Elogiada a sua loquacidade
teve direito a cachet e, a um kit,
“made
yourself”, com instrumentos de
serralheiro.
Pasta Medicianal Couto: a mordaça
do actor.
O impasse que se seguiu atirou-o
para guarda
sanitário, o 2º emprego, onde, por
um ror
de rios, se anunciaram cataratas.
Eu comecei
por imitar a sorte e fui
porta-estandarte
da recreativa. Era o passaporte
das fanfarras e julgava que se ia
a Marte
a vau, não ao sabor de cunhas mas
dos fagotes.
Veio uma ruiva e, como cera que
vigia
a chama, fez-me faltar ao serviço;
a de Macau
era um desatino, levava as noites
a ler poesia;
e a negra ligou-me ao hip-hop e à
“chinesa”.
Pior que nos pôr a chibar é
roubar-nos os dentes.
A vida quer-te a benzer
relâmpagos. A mim
foi a toque de caixa; repele os
inocentes
e é de antemão autárquica e em
latim.
Não gastei mais que uma caixa de
fósforos
e uma dúzia de acendalhas, na Mata
dos Medos.
Um fogo posto não é mais que
Uroboros
a sonhar c’ o mar, e como eu seco
e deserto.
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