sábado, 10 de janeiro de 2015

FOGO POSTO


«Fogo Posto»: um poema escrito para um espectáculo teatral sobre os desafectos portugueses, «Dona Inês de Portugal Foi ao Cabeleireiro», e que ficou na gaveta:

FOGO POSTO:
A VIDINHA A MONTE DE UM LUSO-CABO-VERDIANO

                                              Para o José Luiz Tavares

A vida é que nos chiba e faculta os cavalos
errados. Ninguém pede o céu mas, a Astuta,
um féretro numa mão um par de estalos
n’outra, nem pestaneja. E lavra o fogo posto.

Como ao magano que em queda livre quis
agarrar-se a uma palha, assim a contragosto
me tem mimado: quebra-me o nariz
no hipódromo, e fora dele. A última

foi Tê-La visto empoleirada em saltos
de agulha, numa reclinação sobre o bilhar
que danaria o arcanjo. De fuças no asfalto,
podiam ter-me dito que era campeã distrital

às três tabelas, e foi a morte do artista.
Estoirado o ordenado na parcial tarefa
d’a impressionar, até com S. João Baptista
lhe mandei, mas abileza fez vista grossa,

agora nem o telelé atende. E eis-me a desoras,
a acartar frigos, móveis e outras mossas, 
três e quatro andares sem elevador - e foras
nada: k.o. técnico e anilhado ao sopro

dos seus olhos. Não a culpo; a realidade
é que dispara p’las costas em legítima defesa
ou te entra em casa c’um grão na asa, e, por caridade,
rasga cortinas, quebra os bibelots da fantasia.

O tio Alfredo joga às sextas, seis duplas
e uma tripla, um sistema que é um missal.
Fala disso de manhã à noite, a mulher upa
upa no galho do melhor amigo, mas ele dribla

o desgosto: dois valetes e três ases:
e assim põe rédea curta aos floreados
com que a verdade sangra os mais audazes.
Saí a ele, a vida pariu-me num dia

um bocado mosca. Sinal de dolo,
constatar que fui espichado no muro
das traseiras, onde, remoto consolo,
me vingo e mijo, sobre as suásticas.

Benévola entra – uau -, gandas óculos,
suéter vermelho e rabo de cavalo -
acoroa dá-me pica. Taciturnos
sessentas, como os da AvaGardner,

quando me descobri candidato
a amásio de velhinhas, muito sedado,
pelo ínvio desacerto das idades. “Arigatô,
dona Benévola”, e beijo-lhe a mão.

“Pagas-me o café, ó formusuras?”.
E eu, um trouxa de antemão salivado
pelo que nunca será, pois até as maduras
olham os dentes ao cavalo excitado

antes de o montarem, pago. E levo a língua
ao esmalte, pardo e quebradiço, por via
da heroína - lá se vai o cunnilíngus.
Três anos a bater no fundo, a escabrear

expectativasc’a expectoração do diabo.
E agora, elas topam. Dizem que não.
Mas antes de dizerem sim, vão ao lavabo,
não por vontade, mas por ter janela.

E vai de mal a pior, que de há uma semana
a esta parte, à noite, nas minhas barbas,
dou nota que Algo em filigrana
me respira. É um soluço rangente,

inaudível, que me desaparelha o silêncio
e tergiversa. Assim que sustenho o ar
apanho-o em flagrante dispêndio
de energias, e o mistério põe-me à coca.

Como avivadas patas de moscas: a memória
fricciona os pensamentos uns nos outros
e no seu verso abre-se então a divisória.
Aí se encontram um dilema e três agoiros.

O dilema pulsa como a minhoca cingida
à carne do anzol, que mesmo perfurada
grita, e o cerne do raciocínio, em f’rida
fica cheio de picos e listras escuras.

Os três agoiros é que o incitam, rémoras
cravejadas no dilema, como o sangue
nas naifas aos meus patrícios. Cedo às metáforas,
que correspondem no futebol aos passes verticais,

porque quero contar-vos o que me lixa
desde miúdo, uma carência de terra
que avilta, e dá à palavras pele de lagartixa
e, por dentro, buxo, em limalha incandescente.

Tudo nasce da Orla que um dia desapiedado
rompeu, como do bagaço jorra o chavascal.
Assim, no rodízio de nascimentos, fica apeado
o que primeiro ousar acordar o barqueiro.

O meu pai chegou como actor, de Santiago.
E acabou ébrio e cegueta a tocar rebeca à janela
de um saguão. Mil vezes rejeitado como Iago,
ali ao menos actuava p’ra estrelas cadentes.

Era um artista português, rodopiava
a cadeira com os dentes - oráculo televisivo
que já não sacrifica nem entrava
a bacorada aos que um crucifixo desbotou.

Se abria a boca soava o gongo
da brancura, rijos como aço; a cadeira,
uma casquinha pintada que pronto
se desmancharia em voo se ele não fosse

um cavalheiro. Take à primeira.
Elogiada a sua loquacidade
teve direito a cachet e, a um kit, “made
yourself”, com instrumentos de serralheiro.

Pasta Medicianal Couto: a mordaça do actor.
O impasse que se seguiu atirou-o para guarda
sanitário, o 2º emprego, onde, por um ror
de rios, se anunciaram cataratas. Eu comecei

por imitar a sorte e fui porta-estandarte
da recreativa. Era o passaporte
das fanfarras e julgava que se ia a Marte
a vau, não ao sabor de cunhas mas dos fagotes.

Veio uma ruiva e, como cera que vigia
a chama, fez-me faltar ao serviço; a de Macau
era um desatino, levava as noites a ler poesia;
e a negra ligou-me ao hip-hop e à “chinesa”.

Pior que nos pôr a chibar é roubar-nos os dentes.
A vida quer-te a benzer relâmpagos. A mim
foi a toque de caixa; repele os inocentes
e é de antemão autárquica e em latim.  

Não gastei mais que uma caixa de fósforos
e uma dúzia de acendalhas, na Mata dos Medos.
Um fogo posto não é mais que Uroboros
a sonhar c’ o mar, e como eu seco e deserto.


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