domingo, 18 de janeiro de 2015

O QUE SOBROU AOS ANJOS VINGADORES


Tinha dezanove anos. Quem editou e fez a capa e arranjo grafico foi o Al Berto. Em 2005 um editor pediu/me que reunisse toda a poesia que havia escrito e entao fiz esta manobra de salvacao ao livrinho, reduzindo o poema a um terco, mas ele ficou alarmado com o meu prefacio que se impugnava contra a melancolia (que eu considerava um verdadeiro pecado original) e como se considerava um arauto da dita, nao acertamos as agulhas (escrevo isto num teclado sem acentos). Felizmente, nada aconteceu, teria sido prematuro. Hoje, num disco antigo, achei o texto. Fica no blogue, de onde nao saira para livro, pois esta bem assim, reduzido ao gabinete das curiosidades.


SETE SONHOS DE JONAS
EM NINÍVE
Retroversão de “Obliqua visão num gomo de laranja...”

1979/2005



A BORBOLETA MARSUPIAL

No chão, comporta que se esqueceram de fechar:
a crisálida. Nela virá recolher-se o bicho-de-conta,
antes que os tecidos se dissolvam na chuva,
nos açoites com que o vento abre buracos no tempo.
Progride, a borboleta. Titubeia, mas devora
a sua primeira cápsula de ar. Na bolsa
abdominal transporta a harpa – só auras
a poderão tanger. Ao lusco-fusco,
estas mansas criaturas (viandante e paisagem:
garganta e sede na mesma boca) sossegam
as fogueiras, ou, mudadas em plantas fesceninas,
atraem a morte, desarmarmando-a num transe
aquoso. E mesmo depois de exauridas, de en-
trançadas no húmus, as suas leves antenas titilam
como as flautas que compõem a sombra de Hamelin.




FÁBULA DAS LARANJAS ANÃS

Laranjas anãs, tocadas pelas chamas,
acotovelam-se numa toalha de xadrez.
A mulher, envolta num xaile de jasmins,
e varada pelo mais misterioso impulso
palpa na minha carne, com os polegares,
o lugar da profecia. Da janela avista-se
um açude que as trutas sobrevoam, abrindo
a boca, como as palavras que buscam
o seu tiro de precisão. Chegámos
crianças, trazíamos nos ouvidos
a cançoneta dos choupos e o gorgolejo
das abelhas dentro da cana. Nada sabíamos
de sinais, de clivagens, tudo era adiante:
o passado assemelhava-se à areia soprada
numa mesa de vidro. Entusiasmados
ainda pela obscura e infatigável fantasia
que malhando embora com a cabeça nas poldras
torna o amor conciliável com os sentidos
triunfais. Nada sei do que vai tricotando
as sensações aos esporos mas, no interior
do seu xaile, suspeito de uma ausência
que azougada a possui. A mulher pede:
fala-me da água que perdeu a tua pele,
desde que nasceste até que a lua secou
no seu prumo. Fito-a e pressinto
que o futuro é amiúde a estratégia doce
com que adiamos o medo, enquanto,
interior como um rio que arboresce
e ascende nos ramos até ao cimo
da copa, o espírito dela
me trespassa depositando no sangue
um anjo de sal, um sedimento louco
sobre o qual nunca terei domínio.
Acordo e permaneço em vigília,
no interior das laranjas.


AMPLIAÇÃO DE UM PORO

A Sombra puxa-me para si. Tem a decisão dos limos
em casco novo e desempena-me o  brilho nos olhos,
o inúmero. Pode o fascínio ser mútuo? O mar afunda
navios para se distrair com os sinos da popa. Diz-me:

«O corpo é a empena do espírito, não adivinha
o claustro interior, as três naves, os arcos ogivados,
a abóbada, o lampejo dos castiçais, o desbordado anjo
do altar - surdo ao que irriga de entusiasmo a luz».

Cala-se e desperto num vitral, no acto de libar.
Alumiado, ofereço à terra a beberagem verde, o hálito
dos dragões, o doce castigo com que a terra dessedenta
os defuntos, plantando-lhes nos olhos a coroação do mundo.

Que luz é esta em que pernoito? Que luz me aniquila,
extensa e me chapinha nos ossos, de alegria.
Remiro os contornos da Sombra até ao cabo e de nítidos
o sangue sai-me às golfadas, infunde-se no ar, incorruptível.

Envolta num xaile de jasmins, como a golpada de ar
à beira do penhasco ou a planície que demora no talhe
de um boi, a Sombra encharca-me de estrelas. Fecho
as pálpebras, extasiado: sou um ocelo no flagelo de Deus.


NÃO TER TEMPO PARA TER PRESSA

A presença, amiúde significa: apenas ruínas.
E eu moribundo, com o sopor do granito a debater-se
contra a velocíssima agitação da pleura.

Só acontece um corpo onde os lugares se dão a mão?
A paixão irrompia das sombras dos salgueiros
ou de entre remordidos tapumes de madeira e cal.
O silêncio dos astros era o acudimento dos poros.

Ela toca-me e é um manancial, mas que tributo
oferecer quando se é já um eco? E qual a absolvição
de quem, contido, alucinou no útero transmutor?
Envolta num xaile de jasmim, ela ata os desígnios.

Uma panorâmica de seus braços queimaria
todo o oxigénio e, contudo, é no seu látego
que os meus vagos braços se refazem:
em pedra ou luva. Assim me tatua a insónia

no sacro diadema de suas coxas, ave
que não avista costa e não tem rumo
mas gosta do balanço, do balaço do mar.


A LUZ: A SUA MATÉRIA IGNOTA

Aguentaria o cupido com o peso de tantas setas
se o amor insistisse no sulco da palavra?
Antes o perfume violento que exorbita,
o fogo que cauteriza o fogo, leve como
o oxigénio que oxida as jugulares.
A despedida deve ser breve, um «até logo
vou experimentar a velocidade
que abre as nuvens ao débito do azul,
habitar o parêntesis ». Falamos
de algo que estanca o tempo, da seiva
que sobe na haste e empurra
o tecto ao céu, abrindo uma corola
como quem fecha à chave um mistério.
Eu avanço lenta e segura com um xaile
de sacerdotisa. As laranjas ardem, anãs,
 numa toalha aos quadrados. Na mão
 levo um punhal  -  vibra, do punho ao extremo
acerado a luz canta a sua matéria ignota.



OS SÍTIOS MUDAM

Não perguntes quem chora nas tábuas empenadas,
num dia de borrasca, ervas e palha açoitadas pelo granizo,
num dia em que os cipestres lacrimejam os dedos
que apontam o cemitério de cinzas. Não custa morrer,
basta sonhar o avesso, escutar as estátuas
latejantes, dar crédito às narrativas angelicais.
A memória é um império que pouco fraqueja, repara:
na pedra, corroída pelo sol, que acena à espuma marítima
breve se aninharão as algas. Num plano intermédio,
alguém comerá sem remorsos enquanto à sua frente
se joga a roleta russa. Sorrir, tornar-se massa de pão,
ante o rolar indócil do tambor: o único indulto.
Outros dançam à volta de um oráculo, ou bebem.
Há quem leia, e coma azeitonas, e quem escreva
para confundir vida e literatura e sondar, na lenta travessia
dos meandros, um domínio para a inocência. Cidade
de becos onde ao fundo uma cartola espera pelo seu mágico
pois tudo desde o princípio retorna, só o princípio
não acusa o fim. Talvez a loucura agite o nervo,
seja a dentada que rechaçe a nostalgia, abrindo as portas
à falésia que nos separa do etéreo. Mas a queda tem de ser risonha,
nimbada de uma ironia doce, pois este animal que observa detalhadamente
a abóbada uterina crê na Sombra exterior que o chama.
Os sítios mudam: os passos perecerão os mesmos?




COMO O CAVALO QUE CORRE

Escrever, refrigerando a mais ígnea
das desordens, é o mal menor, o murmúrio
quase inaudível do naufrágio
num cais enevoado. Como o cavalo

que sorve no curso da corrida
a laranja e a toalha de xadrez
que o incandesciam, a palavra
talha o vento, escruta o roçagar

do xaile de jasmins na pele
do amor. Os melros povoarão
a ruína com janela para o rio
de setecentas trutas, e trocarão

trinados sobre a partilha e a dissolução
Aí onde um efebo adormeceu, embalado
nos vapores da terra, aguardando
por dilúvio ou que a harpia

que tece a neblina matinal
rompa os véus que o cobrem,
expondo-lhe o sexo indefinido e frágil

como o trajecto do pólen na angra enevoada.

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