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Não faço a menor ideia porque é que esta belíssima foto de Alice WR me inspirou o pequeno conto que corre em baixo e que escrevi em Março de 2014, em Nacala, quando filmava com o cineasta Fábio Ribeiro, a quem dediquei a narrativa, que daria um filme durinho:
«Tomé estava longe de ter planeado entrar na cabina do chapa e de zarpar com a viatura quando a viu
estacionar à porta da barraca Trinitá e o motorista a esgueirar-se - o
sequestro de uma mija arrepanhava-lhe a fronha - para as traseiras. O apagão que
logo a seguir detonou na rua é que lhe ondulou na cabeça e aí mais nada fez
senão obedecer ao impulso.
Entrou na cabina, confirmou que a chave estava na ignição, e
rodou-a. Suavemente, como faca na manteiga, fez deslizar a carrinha por entre
os volumes enegrecidos (houve tempo para experimentar os óculos raban que se
encontravam no tablier), e só no fim da rua acelerou. Estava no papo.
Não havia mais que quatro ou cinco passageiros mergulhados no
bréu, mansas criaturas amodorradas pelo bréu, e ninguém dera pela troca do
motorista. Deixou-se seguir sem acender as luzes interiores, sem o tinir duma
sílaba de protesto - gado bom de ordenhar.
A música que o leitor de dvds emitia era estranha, uma toada
electrónica que lhe parecia velha como o mundo. Ouvia-a e vinha-lhe à cabeça o
refrão: há quantos anos deixei de usar ganga? Não sabia se achar mais bizarro o
gosto daquele motorista se o modo como as frases lhe despontavam no cérebro,
cometas chegados de nenhures para um destino inadivinhável. Há quantos anos
deixara de usar ganga? Que tinha uma coisa a ver com a outra? Deixou a música
tocar, a ver onde aquilo ia.
Conhecia a rota como a palma da mão e levou a viatura sem custo
até ao seu término. Aí encheu o carro de people que
se acotovelava como botões que desesperassem por regressar a casa. Aproveitou
para descobrir que música era aquela. Neu!
Hallogallo. Era quase gala-gala, mas não, não conhecia. Voltou a colocar o
disco. Algas com ferrugem num mar electrónico - vira uma vez na Costa do Sol.
Com o carro já cheio, só aí se apercebeu que o chapa andava sem cobrador -
melhor, cobrou ele logo à cabeça.
Era vinte e duas horas e o apagão alastrara a sua tinta de polvo
por toda a cidade.
Ladeava o muro da lixeira do Zimpeto quando puxou da pistola com
silenciador que havia comprado ao china e, sem se virar, atirou ao acaso por
detrás do pescoço, visando duas vezes à esquerda e três à direita. O
silenciador funcionava, não fazia mais barulho que um peido de formiga. O
escuro, a surpresa, a sua rapidez ajudaram.
O alarido só rebentou quando numa guinada parou o chapa à beira
do muro e, gozando o prato, acendeu as luzes virando-se para trás, de pistola
em riste. Os passageiros olhavam estarrecidos as vítimas de cabeça pendida.
Atingira em cheio um olho, um coração, uma testa, um cotovelo que guinchava e
um pescoço que gorgolejava. Uma mulher olhou o sangue na sua mão e gritou, pela
última vez na sua vida. Foi remédio santo para os demais. Disse-lhes:
- Passem-me tudo o que têm nos bolsos.
Depositaram tudo no lugar vazio ao seu lado. Moedas, notas,
telemóveis, porta-chaves. Até perservativos. Encheu os bolsos. Depois
articulou, pausadamente:
- Vamos sair, calmamente, e pôr os mortos onde devem estar...
Não se apercebia de como aos ouvidos dos seus acagaçados
passageiros a sua voz soava mais metálica que aquela música que, esgravatando o
miolo do escuro, pastoreava estrelas. Desciam do chapa atrasando o passo, mais
enfiados que esterco no rabo do cabrito. Veio-lhe ao nariz sinais de que um
gordo se borrara, literalmente. Atrás dele desceu um madala (1) com umas calças de ganga. Há quantos
anos deixara de usar ganga? Donde raio lhe chegava aquilo? Desligou a música.
Alinhou-os contra o muro. Aproveitando o estupor em que estavam, na rapidez que
lhe dera o treino de comandos, mudou o carregador da arma. Contou-os. eram
treze. Abateu o gordo. Explicou:
- Não gosto do treze e este já fedia...
Uma mulher soluçou. Baixinho, o que lhe valeu. Apesar do escuro,
ouvia as grossas bátegas de calafrio entrechocando-se como seixos na testa dos
homens. Ao redor, os grilos faziam de segundos violinos. Vivalma. Noite de
trevas, muito ao longe acenava o farol dum carro, mais solitário que o lenço de
mulher esquecida. O gordo gemia. Um balázio na cabeça serenou-o. Tomé suspirou,
entediado, e observou:
- Escarumba é assim mesmo, vive da bacela (2) do seu medo. Vamos ao que interessa.
Quatro a quatro, peguem nos corpos e atirem-nos por cima do muro. Sempre que
falharem abato um dos quatro...
Os homens superam-se. Tomé viu como um a um os cadávares foram
balanceados à justa. Impulsão feita à medida. O quarto corpo elevou-se um pouco
mais, deu uma reviravolta sobre si e pairou um momento no ar antes do ombro ir
embater no topo do muro fazendo-o rodar para o outro lado. Borbulhou o alívio
que tem um pneu furado. Não ficaria mal aqui a ratinice dum corvo, se um corvo
fosse capaz de se interrogar, há quantos anos deixei eu de usar ganga. Porém,
Tomé congelara a música dos alemães Neu!
Ao baque do último corpo no outro lado do muro, Tomé gabou:
- Somos melhores que os mambas(3)...
os moçambicanos só precisam de uma motivação... - e atirou para o ar - Alguém
guia?
Um rapaz novo, hesitante, receoso, levantou a mão. Tomé -
deu-lhe um súbito cansaço - deixou cair a arma, olhou para ele e sugeriu,
meigamente:
- Leva-os daqui... - sorriu, antegozando a ideia - E para os
jornais digam que foi um comando da Renamo...
Num ápice, viu-os desaparecer. Foram no encalço de um velho
Mercedes que passou, tossicando.
Tudo tinha corrido pelo melhor. O apagão, o avançado da hora, a
pouca afluência de carros, não ter havido um passageiro que se julgasse com estofo
de herói... até a piada final lhe saíra a primor. Além disso, Tomé que, como o
seu xará bíblico, gostava de ver para crer, era obrigado a reconhecer que os
chineses, afinal, não têm à venda só a fancaria das lojas de trezentos, tinham
do bom.
Encaminhou-se para casa, vivia ali perto. A mulher esperava-o. No dia
seguinte podia comprar-lhe um micro-ondas, tão prático para durante a noite se
aquecer o biberão do bebé. E os óculos raban ficavam-lhe a matar.»
(1) um homem já maduro
(2) um pequeno brinde numa compra informal, compra-se seis maçãs e a vendedora dá uma sétima, por exemplo
(3) o nome que se dá à equipa de futebol moçambicano, que na semana anterior à escrita do conto havia desiludido mais uma vez num confronto internacional
(1) um homem já maduro
(2) um pequeno brinde numa compra informal, compra-se seis maçãs e a vendedora dá uma sétima, por exemplo
(3) o nome que se dá à equipa de futebol moçambicano, que na semana anterior à escrita do conto havia desiludido mais uma vez num confronto internacional
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