oleiras, silva dunduro
Certas vezes, África faz-me lembrar a
anedota contada por Marie Darrieussecq numa das suas novelas: um marinheiro
pergunta ao capitão se uma coisa está perdida quando se sabe onde está; claro
que não, diz o capitão; então o seu cachimbo não está perdido, está no fundo do
mar.
África existe algures ao fundo do mar de
imagens que a desapropriam de uma comoção inaugural. É o que faz o seu fascínio
e o seu drama: ninguém acredita que ainda existe. Mesmo os autóctones tendem a
duvidar. E percebe-se porquê: são-crianças-soldado, crianças-bomba a quem roubaram
os sonhos e que só podem duvidar do chão que pisam.
Uma das duas avós que me crivaram a
infância de histórias – uma desbragada de uma fantasia lapidarmente histérica e
outra prenhe de superstições –, impaciente por eu, em vez de engolir a sopa de
letras, me entusiasmar a contar um espectáculo de sombras chinesas que fora à
escola, interrompeu-me, seca: «se não olhares bem para as letras do prato e se
aí não vires centenas de sombras chinesas, eu faço-te um implante de pélvis!»
(queria dizer «pele» - tinha lido no Notícias desse dia sobre um operação
plástica feita a um bombeiro e estava realmente impressionada com as possibilidades
da cirurgia plástica – mas a impropriedade que a caracterizava soprou-lhe a
variante). Deslize que faço meu!
De implantes de pélvis – enxerto platónico
para um país de enxovia – é do que andamos precisados.
O meu primeiro texto
diarístico escrito em Maputo,10 de Janeiro 2005
Eis-me, encafuado com mais trinta, no
curto cubículo do secretariado dos armazéns do aeroporto, onde tento levantar a
minha bagagem sem passageiro.
Há meia hora que pedincho uma palavra,
que algum daqueles dez funcionários que acomodam os quadris basálticos nas suas
cadeiras redondas profira uma frase. Cansado de esbarrar num calado tão
profundo, ouso perguntar:
Há algum problema, para não sermos
informados de nada?
Ela nem olhou para mim. Uma funcionária
macambúzia com, adivinha-se no seu acentuado estrabismo, uma espessa
resistência ao mundo. A sua resposta, imponderável, ribombou no ar:
Se o senhor fizer perguntas, eu não
consigo trabalhar…,
Esboço um sorriso, enquanto o largo balcão
de jambire, sob pressão dos de trás, se encastoa no meu esterno.
De facto, não compreendo nada do que ela
apelida de trabalho. Neste aquário (4 por 7 metros) aboletado, dispõem-se uma
dezena de secretárias do tempo colonial, em cujos tampos se amontoam maços de
papéis, provectas máquinas de escrever, furadores, agrafos, e braços que se
movem ao ralenti; vinte braços transpirados que manuseiam, na celeridade comum
às algas, os novos processos. Cada funcionário conta, uma a uma, as folhas de
cada processo (quando se engana, torna à folha de rosto, o que é frequente), e
depois carimba-o, página a página, após o que – ah, a arte do devagar! - o
passa a outro, que repete a mesma operação. Cumprido o circuito tortuoso,
vegetal, por todos eles, o chefe de secção acolhe os processos com um pigarro,
e começa a assiná-los.
Alto, que a esferográfica não escreve!
Fricciona-a nas palmas da mão, para que o seu bico fique quente, e sopra-lhe
depois na ponta (respiração boca a boca?), para afastar as impurezas, antes de
tentar de novo. A lapiseira mostra-se mais seca que Sara, a mulher de Abraão -
um fanico pegado. O chefe, num gesto teatral, deixa-a então cair, num baque
surdo, sem remorso, no cesto de papéis que lhe coroa os pés. Pede uma lapiseira
emprestada ao seu subordinado mais próximo, põe a postura condizente, e a sua
assinatura começa finalmente a sua ronda. É um coral azul que suspende as
respirações no aquário e flui como maná.
Tudo em silêncio. Bom, algo borbulha, em
shangana ou ronga.
Por fim, esmolados quarenta minutos em
profusa paciência, o processo é depositado na prancheta, junto à porta do
gabinete. Há que rezar para estar incluído nessa primeira vaga de processos.
Mas o que é isso para quem perguntou ao catecista se a dentadura de Deus tinha dentes
de ouro? Eis-nos no passo seguinte: a caminho da tesouraria para pagar o que aí
foi averbado.
Seguem-se vinte minutos de espera, agora,
pelo menos, sentado, na sala da alfândega. Reconheço a minha caixa ao fundo,
devido ao desenho colorido com que a minha sobrinha embelezou uma das faces. A minha
mão segura firme o recibo que identifica a bagagem. Com raiva, empapa o papel.
Os olhos ainda vidrados pelos cinco minutos de discussão no guichet da
tesouraria. «Vá pedir o troco ao Estado!», sugeriu o f. de p., num sorriso
triunfante, perante os meus protestos. Espero agora que um funcionário traga o
meu processo, munido do carimbo do tesoureiro, aos serviços de fiscalização da
alfândega, onde o mesmo voltará a ser manuseado de trás para a frente por mais
quatro funcionários, antes de anteporem o seu carimbo no recibo.
Ocorre-me em jeito de eureka, a burocracia
é uma forma de empregar as pessoas: investi-las de carimbo. É o Graal da acção
social.
Quando me sentei, um dos quatro
carimbadores profissionais desta secção dormia a sono solto sobre o tampo da
secretária. Ressonava. Se calhar também dorme, o funcionário que faz a ligação
entre a tesouraria e a fiscalização. Escrutino uns cartazes contra a corrupção,
colados na vitrina do gabinete que acomoda os polícias das alfândegas. Suspiro,
eu pagaria de boa vontade por debaixo da secretária, para me despachar num
ápice. Passa a cinquenta minutos, a espera.
Certificada a carga (há que despertar o carimbo
dorminhoco, que, apesar da sonolência, foi o mais lesto), os humores da
mulher-polícia da alfândega não estão pelos ajustes. Rudemente (é até bonita
mas a sua descorçoada má educação deita tudo a perder) obriga-me a abrir a
caixa:
O senhor só pode mentir, não é possível
que uma caixa de 20 quilos só contenha livros!
A sua cruzada terá na mira um bacalhau,
que possa confiscar?
Não escondeu o seu desagrado ao verificar
que a caixa só continha livros.
Quase duas horas depois de ter iniciado o
meu baptismo de fogo, alço a caixa com os malditos livros para a carrinha
da minha cunhada. Chegado.
Beberico numa tosca tasca do Mercado do Povo,
com zinco sobre a cabeça, caixas de cerveja e coca-cola na costas e gaiolas com
frangos, patos, e pequenos coelhos na frente. Pelo meio circulam as pessoas,
pobres, pobres, e remediados – os portadores de uma pobreza que vexa mas não
lacera. Os miúdos, às revoadas, tentam vender-me caricas, caixilhos para
slides, canetas bic. Atrás das gaiolas alinham-se
as bancas de carvão. Erguendo
os olhos, à esquerda, sucedem-se os prédios, degradados, e voltam-se a ouvir as
buzinas. Se olhar para a direita sobrepõe-se o bramido dos galináceos.
Quantas doenças se apanharão aqui, entre
embalagens, restos de comida, e a podridão, o ranço, o suor de gente sem futuro
– pensariam oitenta por cento dos jornalistas que conheço, setenta por cento
dos antropólogos, noventa por cento dos familiares. Desde que cheguei que me
avisam que este foi sempre um lar de bandidos e bacilos, e que hoje é um
mercado degradado até no crime. No entanto, que conforto, que paz neste devir
anónimo. Ser anónimo face à vida, face à obra, como o cidadão na cidade que se
desenvolve organicamente e permite a travessia de microclimas sucessivos, a
descoberta de uma hipótese consentida.
Só se adquire este sentimento de estarmos
separados do mundo pela mínima espessura de um cabelo quando se nasce
desprovido, sem hipóteses à cabeça.
E então leio:
«No bar do teatro, a senhora da estola
enrolava a massa na boca e estava ainda indecisa sobre a qualidade do croquete
que tinha na mão quando deu conta que o lugar vago a seu lado fora ocupado pelo
seu ídolo, o bailarino Nijinsky.
Deixou cair o croquete, e, com os dedos a
segurar a ausência do salgado, venceu a sua habitual timidez perguntando ao
bailarino:
Como é que faz?
Perdão?
A maior parte das pessoas quando salta no ar
vem imediatamente para baixo...
Porque
hão-de vir logo para baixo... – replicou Nijinsky – Demorem-se no ar um
bocadinho, antes de descerem».
Extraído da Autobiografia, de Zao Wou-Ki,
grande pintor chino-francês, presença determinante da Escola de Paris, dos anos
50 e 60, e amigo e Michaux: «(sobre a sua infância)
...os generais decapitavam e colocavam as
cabeças à entrada da cidade – cabeças ue pintavam metade em verde,a outra em
vermelho. Como todas as crianças qua saíam da escola, empurradas pela multidão
ao primeiro tumulto, eu assisti a uma execução. Não se podia recuar, era-se
obrigado a olhar. Adormeci durante muito tempo, aterrorizado pela visão dessa
cabeça rolando sobre o solo, cujo sangue espirrava de todos os lados.
Esta época foi terível. Havia suicídios entre
os mais pobres, que não conseguiam sobreviver e vendiam os seus filhos no
caminho da escola. Não eram incomuns os enforcados...»
Depois disto nunca se fará uma pintura
realista. Seria absolutamente desumano.
Há um conto do
moçambicano Carneiro Gonçalves, O
Remo, que sempre me agradou muito e
cujo final não esqueço:
«Sabes o que me apetece? Qualquer dia pego num remo e fujo. Mato adiante, só paro quando tropeçar na primeira aldeia. Logo que veja um homem: Sabes o que é isto?, e mostro-lhe o remo. Se ele disser que é um remo continuo a fugir. Juro-te que ninguém me agarra. Fugirei até desentranhar nova aldeia, até que ela me surja, por entre as franjas das árvores mais altas da floresta, limpa como no princípio do mundo. E logo que veja o primeiro homem pergunto: Sabes o que é isto? E se mesmo assim ele disser que é um remo continuarei a fugir. Quando enfim encontrar o homem que for capaz de dizer que aquilo é uma pá de um moinho, espeto o remo no chão, instalo-me e recomeço a viver.»
«Sabes o que me apetece? Qualquer dia pego num remo e fujo. Mato adiante, só paro quando tropeçar na primeira aldeia. Logo que veja um homem: Sabes o que é isto?, e mostro-lhe o remo. Se ele disser que é um remo continuo a fugir. Juro-te que ninguém me agarra. Fugirei até desentranhar nova aldeia, até que ela me surja, por entre as franjas das árvores mais altas da floresta, limpa como no princípio do mundo. E logo que veja o primeiro homem pergunto: Sabes o que é isto? E se mesmo assim ele disser que é um remo continuarei a fugir. Quando enfim encontrar o homem que for capaz de dizer que aquilo é uma pá de um moinho, espeto o remo no chão, instalo-me e recomeço a viver.»
Este homem foge dos sentidos únicos, movido
pelo espírito de um irrigador de infinitos. O tenaz desejo que o
impele à errância preserva, por outro lado, e paradoxalmente, a unicidade
da arte, no sentido em que valida atrevidamente nas imagens a ambivalência
que as descristaliza, conciliando o singular recorte hidrográfico com a
potência do delta.
É num espírito idêntico que Exúpery desenha a
jibóia que faz a digestão de um elefante – o que as pessoas “sensatas”
tomam invariavelmente por um desenxabido chapéu. Curioso é que libertação das
coisas da cadeia da sua aparência reproduz-se até nos erros da ilustração:
Exupery empresta uma peruca verde aos três embondeiros do planeta do
Principezinho deixando-nos sem dúvidas quanto ao facto do escritor nunca ter
visto tal árvore - contudo, como o narrador confessa terem sido aqueles
embondeiros “inspirados por uma grande sensação de urgência” legitima-se que
uma certa e inesperada prenhez se estenda à folhagem da árvore, que
prolifera, cheia como a motivação ininterrupta.
É mais que um simples jogo: o homem que diz
convictamente que um remo é uma pá de um moinho foi “movido” por uma mutação do
olhar que abole qualquer ricto estilístico, o que autoriza a que se enterre o
remo, fixo, no chão até enflorescer o moinho que um dia levantará voo com o
vento, levando o fugitivo dentro.
Porque aquele que aceita em si a semente do devir, da
metamorfose, nunca aceitará que esta cesse.
A arte que abre uma janela para o devir é a que mais me
interessa, posto que encara o mundo como um mundo imperfeito, portanto,
etimologicamente, um mundo inacabado. Talvez nos caiba a nós perfazê-lo,
acabá-lo. Para os celtas era esta a missão que Deus deixara aos homens quando
se retirara para descansar, no sétimo dia.
Agrada-me este desafio e a sua responsabilidade.
Quiasma: a acrescentar ao meu catálogo de
palavras que usarei invariavelmente a contrapêlo. Tão próximo quiasma de
quiabo.
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