Recuperado
de um disco antigo um pequeno livro, esquecido, com várias narrativas em verso,
a que tinha dado o nome de Contribuição
Matemática para uma Teoria do Raio. Aqui ficam algumas.
ANÚNCIO
nº 443. Última
modificação: 23 Nov. 2005”
Jornal da
Ocasião, 21/4/2000
A PRIMEIRA AVELÃ
Avelãs. A casca onde o dedo adormece,
sem atritos. O sabor – a seda,
após a pressão de cinco atmosferas.
A primeira vez foi em casa dela.
Nas festas, normalmente havia nozes,
amêndoas, passas, amendoins, pevides...
mas, pelo menos em minha casa,
as avelãs eram raras, ou terá sido como o açafrão,
do qual não dei conta até que a consciência
da sua percepção se tornou felpuda?
Louvada seja a mão que me levou avelãs à boca,
depois do primeiro beijo – com que pensava
ter alumiado todo o campo do amor.
A lacunar infância inteira foi resgatada
Naquele inesperado fruto seco que dedos delicados
me levaram à boca,
conquistada a colina do desejo.
Aos 40 anos, em Addis a Bebba
falhei uma boleia, não havia táxis,
e tive de atravessar a cidade a pé,
muito para lá da meia noite, uma urbe
que não perdoa nem aos seus,
e salvei-me do pânico lembrando-me
(sabe-se lá porquê) das avelãs
com que Ela recompensou
o meu atrevimento de cavaleiro do amor.
Não me lembro é do nome dela.
UM HOMEM CHORA DE QUÊ?
“Foi a minha casa roubar-me o pisca-pólos!”,
repetia, chorando no ombro do meu pai. Um homenzarrão,
quase o dobro do meu progenitor, que lhe dava
palmadinhas
naquele enorme, soluçante, oleaginoso flanco.
“Foi a minha casa roubar-me o pisca-pólos!”:
a fórmula achada para desabafar o adultério
da mulher com um amigo de ambos.
Foi então que percebi – a minha tia
chorava de riso na cozinha e a minha mãe tentava,
a custo, abafar o alarido – que as palavras
podiam afinal significar coisas que nem mencionavam.
Em Belém do Pará, quase quarenta anos depois,
descobri uma iguaria inventada para narrar
as dores de corno: pato no tucupi.
O tucupi é uma erva que anestesia
e o pato um ex-piloto depenado
por ter acreditado em ready-mades.
NATAIS DA INFÂNCIA: O TIO EMIGRANTE
O meu tio Manuel Domingos, que tinha o nariz do
Yves
Montand e falava cinco línguas, emigrante na Suíça,
reunida a família na cozinha, contou, depois um bom
trago
de vinho e de ter ido espreitar pela chaminé,
para avaliar se não seria perigosa a confidência,
colocando ao ralenti a sua macia voz anasalada,
para que os
vizinhos não levantassem tumulto,
que ao atravessar com um cliente um bosque
centenário
nas fronteiras da Alemanha pararam a viatura
devido a uns misteriosos cânticos religiosos.
Atraídos, deixaram o carro à berma da auto-estrada
e embrenharam-se pelo bosque.
não passaram dois minutos até desembocarem
numa igreja românica rodeada de árvores
e sem vivalma lá fora. Entraram e a igreja
estava à pinha de encapuçados,
que se entregavam ao canto.
Sentiram-se arrebatar por aquele coro hipnótico.
De repente, os fiéis calaram-se
e alguns dos que se alinhavam na fila de trás
viraram-se para eles, encarando os intrusos.
Dentro dos capuzes só havia ar.
Mandaram-me para dentro e nunca soube
porque é que o meu tio, no fim da vida,
se dedicou a musicar os versos de Verlaine.
OS MANOS GINGA
Os manos Ginga
moravam ao lado dos meus tios-avós,
na Azinhaga dos
Besouros, na Pontinha.
Três compinchas de Verão com uma pontinha de queques
(foram os primeiros humanos que conheci viciados
em pólos e pullovers) mas que não regateavam palmilhar
o extenso vale de zínias e girassóis que nos separava
da colina onde se empoleirava, clandestina, a Brandoa.
Uma tarde, nesse vale, a meio de um canavial
que se firmava nas margens de um ribeiro de cheiro acre,
descobrimos uma conduta de esgotos, relativamente seca
e com tamanho suficiente para avançarmos agachados
em fila indiana, até misteriosos meandros.
A conduta atravessava a Colina da Luz
e desembocava num canal de drenagem,
mesmo ao lado de uma boutique para senhora
- tudo aquilo era chique - onde trabalhavam dois mimos
de raparigas que inquietaram os nossos plácidos sonhos de Verão.
Aquela conduta subterrânea – uma incomparável gruta –
era o nosso atalho para o amor e os irmãos Ginga
reinados companheiros de esperança.
Veio o 25 de Abril e os irmãos Ginga
puseram-se ao fresco, pois o pai era da Pide.
TEJO E TUDO
O Tejo já foi mais poderoso
que os fulminantes da minha infância.
Quando os cacilheiros baliam no nevoeiro
como cordeiros amedrontados e as vagas recortavam,
oleaginosas, o dorso de um animal adormecido.
Não havia radar e as histórias de naufrágios
secavam os olhos.
Era muito raro, à travessia, despregar
o silêncio dos cascos de espuma.
A lembrança do terremoto de 1755
e da fúria que o rio semeara até ao Rossio
acentuou o meu respeito pelo estuário
e firmou uma certeza: o Tejo
tinha seiscentos metros de profundidade.
Os anos aquietaram as águas
e o Mar da Palha marinou de cordato,
virou maricon.
Mas nada
me preparou para a chapada que levei em 95
quando me mostraram uma carta topográfica
onde se desenhava um charco
que na sua máxima profundidade
atingia os 40 metros.
Valery, mais avisado, diria
que a profundidade está na pele,
mas o drama é que ninguém escapa
de recolher os cacos das suas decepções.
Os safios passaram a ser espécimes
de aquário – os ferrys cresceram
em segurança e infalibilidade.
As nuvens sobre o rio emurcheceram em telões.
E pelo meio houve um sacana
que me abordou com escárnio:
mas tu, quando chegas de avião,
não vês os galeões no fundo?
Em miúdo, contava-se, um rapaz
perdeu a mão num rebentamento de fulminantes –
parece-me mais bravo que a fatalidade
de morrer atolado numa banheira.
CACILHEIRO
& BROWN
com um bom pau.
Telefona 919357430”:
foi assim que soube,
apopléctico, a mijar
ao meu lado,
das inclinações do filho.
BUS STOP
A morte chega
de Fátima
e bate à porta da morte-em-visita.
Ali à minha frente, da paragem do 45,
a colisão perfeita: clangor
de fuselagens num encaixe núbio.
Serão gémeas pergunta-me o Mário
da drogaria do prédio, que há muito
confunde cinismo e aguarraz,
e me segue na fila.
Reconhecem-se, como quem se desimpede,
na primeira colisão de pálpebras?
Na evidência do pensamento
que ao ser trepanado pela sua sombra
ausente tira o chapéu?
Aos pés, além de cacos de vidro
caiu-me uma santinha, daquelas que muda
de cor conforme a humidade.
As pessoas correm a acudir
aos inanimados. Entre os sinistrados, vejo
de soslaio, sem ousar um passo,
uma criança com um olho esfacelado.
Ali no largo, quando a morte
chegada de Fátima
e a morte-em-visita se fundem,
a cotovia do plátano que dá sombra
ao quiosque das rochas e dos copos de três
lança-se num jingle de trinta segundos.
PROFISSÃO: TRADUTOR
Acordou para a sensação inexplicável
de que o vento não dormia.
Levantou-se, dirigiu-se à janela que se abre sobre a Rua do Norte
e espreitou: nobody.
Com quem partilhar a súbita evidência de que um sopro
se levantara para se desenredar no seu íntimo
como um tapete estendido para evasão dos arabescos
que, em si, mediam o silêncio?
O vento não dorme, e a precipitada extensão
de uma vida não lhe abafa os passos.
Sentou-se à secretária. Examinou detidamente o seu bilhete
de avião para os Açores, as férias há muito prometidas.
E, vinda de nenhures, veio-lhe à cabeça a exortação
do “mendigo voluntário” de Assim Falava Zaratrusta:
«Quisera que estas vacas me ensinassem
a sua sabedoria!». O vento não dorme.
Que corpo é o meu, pensou,
lembrando-se dos relicários vazios
que lhe encheram de enigmas a infância.
Em que cabeça suturar estas memórias
com que as palavras anunciam uma flagrante ausência?
Abriu uma página nova no computador e escreveu: Vivalma.
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