pobre Prometeu |
A poesia pode ser política e ser boa? Julgo que sim. Para além do Brecht e do Heiner Muller, dou o Enzensberger como bom exemplo. Ou o Dalton Roque, um salvadorenho que em 1975 foi liquidado numa triste purga entre revolucionários. Ou os inexcedível Attila József, um húngaro, e Yannis Ritsos, um grego. Ou em Espanha o Celaya e o Jorge Riechmann, por exemplo. Como em todos os “géneros”, há é sobretudo gente mais preguiçosa e condescendente do que outra.
Escrevi alguns poemas que se enquadram nessa linhagem. Aqui
deixo dois ciclos: o inédito «O Fecho do Bombardier», inspirado no fecho da
fábrica com o mesmo nome (que fabricava componentes para comboios e cujo fecho atirou para o desemprego milhares de trabalhadores), e que fazia parte do espectáculo «Dona Inês de
Portugal foi ao Cabeleireiro», que nunca consegui pôr em cena, e outro que
editei no livro «Carta de Ventos e Naufrágios», motivado pela entrada
de Portugal no Euro.
O FECHO DO BOMBARDIER
1 (didascália)
A comprida língua do cão espaneja
a fonte santa. Num incessante
regateio, dobram sinos,
transbordam ribeiras, gorjeios...
na boca desfazem-se areias.
Recosto dominical, atenta na tv
à matança das focas. De paulada
em paulada se dá folga à estatística.
Em golfos rubros. Num frémito,
aperta a cabeça do terrier
para que não veja a morte
catódica, enquanto
na sua Ponta de Ouro
pipilam as vogais da carne.
2
Pára. O primeiro-ministro debita.
Tem o raciocínio entaramelado
pela lembrança de ter sido corvo,
e capacito-me da crueldade do bem.
De miúda, o ensejo de conhecer os
comboios
por dentro, de subsistir no que se
evita
quando a locomotiva talha
as trevas na charneca e a
esperança
infecta um olho à criança atada
ao cepo da pobreza, ao aviltamento
da mãe que se vende aos espanhóis
para comprar a fiado. Esta gente,
pelas mil abcissas do trovão,
quer impor imposto ao grito.
3
Tinha atirado com a toalha ao
chão,
a ulcerada chapa de ferro
que jazia junto ao poço. E
aos seus desapontados buracos
acudia o verde, tufos de ervas
feias e raquíticas. E assim intuí:
“os comboios não são eternos.”
O que lhes dá um hálito humano,
a fanada loquacidade do galo
capão. Poucos anos depois
li no jornal que havia vagas
no Bombardier e pus a mãe
no asilo. Há escolha entre
o que amamos e quem amamos?
4
Um noivo na aldeia, ria a
bandeiras
despregadas c’o colega de
trabalho.
Foi o que me tramou – os santos,
a pílula. Dez anos a montar
janelas
em chapas que serão velozes.
Também eu fui um bebé
recoberto d’ ouro, estúpida
papoila
que as galochas de um cauteleiro
pisaram. Será invisível o ópio
que nos aveluda as veias? O
sinistro
perseguia-me, comprei um cão.
Por cicatrizes penso, assopradas
no zinco, vidro e ar condicionado.
O maquinista devia ser ministro.
5
Mensalmente, envernizam-me a
cólera
com o subsídio do desemprego.
Cheira a mijo prensado, a neura,
há
tanto que não mudo a roupa da
cama.
Minguo, dois maços por dia p’ra
três salchichas e um ovo, é fado
com desrima no pulmão, não ganha
pr’á vidinha nem se compromete.
Revejo imagens de minha mãe
a entrar em pranto nos penhores,
ou a jogar ao prego c’ os
espanhóis.
Que emoção quando feríamos
um dedo e o calor do sangue
devolvia uma vida pujante.
6
Dezoito meses d’ ecos à procura
de autor. De uma voz coriácea
e fidedigna ao espelho;
de um amo... mesmo desprovido
de beleza, de quem se possa
comentar
os filhos ou como esquece
o panamá no café. Dezoito
meses pelados por um governo
implume.
Desabrochará, o primeiro dia após
o subsídio, numa queimadura de 1º
grau que já se move, sorridente.
Peludo, como as partes, será o
fogo
e fora de si, extasiados, os
orifícios
do meu corpo planarão sem brevet.
7
A vantagem dum cão é que não tem
fachada, promissórias românticas.
Nem a morte, cravado o gume
até ao cabo, lhe revela
dissimetrias.
Pude então fazê-lo sem a custódia
duma lágrima. A pele, o desosso.
Comovi-me por afinal não ter
mais carne que um coelho – moída
só dava para almôndegas. Parecia
que voltava à cantina do
Bombardier.
Convidei dois antigos colegas.
E vinho à discrição. Adoraram.
Foi uma risada quando sugeri
que comíamos os tomates do
ministro.
DO CORPO COMO MOEDA ÚNICA
a)
Sobrava-me tanto de corpo que perdi
em trocos e arrabaldes o esplendor
da solidão. Hoje sustenta-me este magro
pecúlio do silêncio a expulsar os dentes,
a moeda única do riso alheio, es-
quecido de que uma só cicatriz
é dado seguir às criaturas, de que
a própria libra tem reveses. Es-
braseiam agora os ossos sob o aluvião,
vêm como ouriços acenar à boca
E estou mais maduro mais rombo.
b)
O Euro? Óbulo ainda verde
no ramo que desaperra os melros.
O Euro, unidade de transis-
torização do pólen, onerou
a confiança no escudo e situou
a terraplanagem: «Coelho
bravo do mato? Coalho no prato!»
Igual ao Euro nem Eros, a erva
em celibato na boca das urnas.
Stress, stress, o Euro enluva
a treva e mastiga holdings
nações trombas de água.
c)
Hoje reconheço no Euro
o grande agrimensor. Decadência
da literatura francesa, fraqueza
da divisa americana? Matéria reservada
aos espíritas. Por mim, tenho
um armário cheio de ossos a dividir -
-me o quarto: de um lado brame
o mar enquanto o outro escuta.
Mas do andar de cima vem e de-
calca-se na insónia a Valquiria
travestizada - a com Tomáz sintonia
da Marcelo & Gutierrez, Limitada:
riso alvar de um país que toma a hérnia
por subsídio. O Euro
não é bem
O Mal: sim a térmite, o eucalipto.
d)
Não interessa ao Euro. Que um manto
de penas amortalhe a garoupa-de-pedra,
não interessa à finança. A inutilidade
das metáforas corrói as estatísticas, o zelo
com que homens extremamente fiáveis
renunciam aos domingos a férias
aos altos índices de trufas no sangue.
Apesar do lucro com que a morte mantém
estáveis as características do subsolo.
e)
Não reconhecer num cortejo de moscas
os adornos da luxúria e cair sobre
o mundo a cor do sono, o arraiar
dos escudos: eis a morte, um pé
extraviado no sapato de outro.
Deito-me na relva, os pulmões,
coados pelo nevoeiro, cambam.
Há coisas sei cosas choses
things que transcendem o câmbio
nominal: um abraço impossível
de perdoar, a bebedeira que ilha
as despedidas, a amêndoa amarga.
Mas deitado sobre o mais lacunar
dos nevoeiros, com o Marco a especular
Março acima, no “isque”, nas salsichas
na ira de Gunter Grass e com a devoluta
cabeça a noventa por cento de humidade
vou lá eu adivinhar o produto interno bruto
Não é coisa que se recomende. Algo
no meu rasto alimenta-se do débito
dos amigos e do abafo das insónias.
Vai esconder-se no lintel das portas
e acorda quando eu passo. Piora
em noites de uma emoção citrina
quando a solidão se deita gafosa
com o fôlego de uma concertina
que mãos alheias desacreditaram,
trocando nervos por miúdos. E
será possível ensinar a um bávaro
que a idade se sacia no derrame
embora o Euro reprove o sexo
com turcos centauros e talheres?
E não é bonito pendurar um homem
dessangrado no gancho dos versos.
g)
Oito anos suspenso pela indolor
constância do atrito, rendido
à mágoa anónima de uma direita
baixa. Oito anos e muito abono
às trompas uterinas e mais janelas
friáveis de permeio. Os versos vinham
rebentar aos pés e voltavam ao mar,
indivisos. Oito anos com um armário
de ossos a dividir-me o quarto. Nada
pode ser mais simples do que esta arte
mecânica de morrer sem o repouso
de um chamamento, com o crédito
(ainda o Euro não roía até à alma)
muito abaixo das lamejinhas.
h)
E tudo ainda me revolve: este céu
fiel ao afã do tira-olhos, os valores
da Bolsa qu' estampam na pele
a insidiosa paz dos herbários,
o amor de costas para a teleobjectiva,
o esforço do anão a medir caixões.
Ainda tudo me revolve: a mesma
privação o cerco tarde ou nunca
do que cala, os bolsos fundos onde
as mãos desabafam refractadas.
Ao dólar - esse cão
de três patas
que abocanhou as moscas russas
e que fermenta a massa dos síndicos
e dos ministros que nunca se sentam
de costas para uma porta - sorve-lo
agora um caixão Made in Japan.
Só o amor lembrado (distante como
os bicos de uma tesoura aberta),
as afasias, o ciúme - câmbios
que têm no dever incumprido
resíduo inevitável - desafogam o lucro.
i)
A alba traz consigo deuses novos
e aposentações. Se a ressaca da noite
fez sobrar a cabeça e o corpo juntou
outro nome à livre ventilação dos nervos
deixa-te a solidão o atraso e novas
prestações. Aí o melhor é destrançar
os pulsos, privá-los. Que sémen
esquírolas e flashes comem
à mesa da usura. Cresça o futuro entre
ienes e euros: comem-te as carnes
e deixam-te as sobras. Sentemo-nos pois
na perigosa berma do saké, no sulco
fundo onde uma cabeça descalcifica.
Como eu gosto de te ler.
ResponderEliminarPuro fascínio.
Obrigada.
Como eu gosto de te ler.
ResponderEliminarPuro fascínio.
Obrigada.