segunda-feira, 2 de fevereiro de 2015

O FECHO DO BOMBARDIER

pobre Prometeu




A poesia pode ser política e ser boa? Julgo que sim. Para além do Brecht e do Heiner Muller, dou o Enzensberger como bom exemplo. Ou o Dalton Roque, um salvadorenho que em 1975 foi liquidado numa triste purga entre revolucionários. Ou os inexcedível Attila József, um húngaro, e Yannis Ritsos, um grego. Ou em Espanha o Celaya e o Jorge Riechmann, por exemplo. Como em todos os “géneros”, há é sobretudo gente mais preguiçosa e condescendente do que outra.
Escrevi alguns poemas que se enquadram nessa linhagem. Aqui deixo dois ciclos: o inédito «O Fecho do Bombardier», inspirado no fecho da fábrica com o mesmo nome (que fabricava componentes para comboios e cujo fecho atirou para o desemprego milhares de trabalhadores), e que fazia parte do espectáculo «Dona Inês de Portugal foi ao Cabeleireiro», que nunca consegui pôr em cena, e outro que editei no livro «Carta de Ventos e Naufrágios», motivado pela entrada de Portugal no Euro.


 O FECHO DO BOMBARDIER

1                    (didascália)
A comprida língua do cão espaneja
a fonte santa. Num incessante
regateio, dobram sinos,
transbordam ribeiras, gorjeios...

na boca desfazem-se areias.
Recosto dominical, atenta na tv
à matança das focas. De paulada
em paulada se dá folga à estatística.

Em golfos rubros. Num frémito,
aperta a cabeça do terrier
para que não veja a morte

catódica, enquanto
na sua Ponta de Ouro
pipilam as vogais da carne.


2

Pára. O primeiro-ministro debita.
Tem o raciocínio entaramelado
pela lembrança de ter sido corvo,
e capacito-me da crueldade do bem.
De miúda, o ensejo de conhecer os comboios
por dentro, de subsistir no que se evita
quando a locomotiva talha
as trevas na charneca e a esperança
infecta um olho à criança atada
ao cepo da pobreza, ao aviltamento
da mãe que se vende aos espanhóis
para comprar a fiado. Esta gente,
pelas mil abcissas do trovão,
quer impor imposto ao grito.


3

Tinha atirado com a toalha ao chão,
a ulcerada chapa de ferro
que jazia junto ao poço. E
aos seus desapontados buracos
acudia o verde, tufos de ervas
feias e raquíticas. E assim intuí:
“os comboios não são eternos.”
O que lhes dá um hálito humano,
a fanada loquacidade do galo
capão.  Poucos anos depois
li no jornal que havia vagas
no Bombardier e pus a mãe
no asilo. Há escolha entre
o que amamos e quem amamos?


4

Um noivo na aldeia, ria a bandeiras
despregadas c’o colega de trabalho.
Foi o que me tramou – os santos,
a pílula. Dez anos a montar janelas
em chapas que serão velozes.
Também eu fui um bebé
recoberto d’ ouro, estúpida papoila
que as galochas de um cauteleiro
pisaram. Será invisível o ópio
que nos aveluda as veias? O sinistro
perseguia-me, comprei um cão.
Por cicatrizes penso, assopradas
no zinco, vidro e ar condicionado.
O maquinista devia ser ministro.


5

Mensalmente, envernizam-me a cólera
com o subsídio do desemprego.
Cheira a mijo prensado, a neura, há
tanto que não mudo a roupa da cama.
Minguo, dois maços por dia p’ra
três salchichas e um ovo, é fado
com desrima no pulmão, não ganha
pr’á vidinha nem se compromete.
Revejo imagens de minha mãe
a entrar em pranto nos penhores,
ou a jogar ao prego c’ os espanhóis.
Que emoção quando feríamos
um dedo e o calor do sangue
devolvia uma vida pujante.


6

Dezoito meses d’ ecos à procura
de autor. De uma voz coriácea
e fidedigna ao espelho;
de um amo... mesmo desprovido
de beleza, de quem se possa comentar
os filhos ou como esquece
o panamá no café. Dezoito
meses pelados por um governo implume.
Desabrochará, o primeiro dia após
o subsídio, numa queimadura de 1º
grau que já se move, sorridente.
Peludo, como as partes, será o fogo
e fora de si, extasiados, os orifícios
do meu corpo planarão sem brevet.


7

A vantagem dum cão é que não tem
fachada, promissórias românticas.
Nem a morte, cravado o gume
até ao cabo, lhe revela dissimetrias.
Pude então fazê-lo sem a custódia
duma lágrima. A pele, o desosso.
Comovi-me por afinal não ter
mais carne que um coelho – moída
só dava para almôndegas. Parecia
que voltava à cantina do Bombardier.
Convidei dois antigos colegas.
E vinho à discrição. Adoraram.
Foi uma risada quando sugeri
que comíamos os tomates do ministro.



DO CORPO COMO MOEDA ÚNICA

a)

Sobrava-me tanto de corpo que perdi
em trocos e arrabaldes o esplendor

da solidão. Hoje sustenta-me este magro
pecúlio do silêncio a expulsar os dentes,

a moeda única do riso alheio, es-
quecido de que uma só cicatriz

é dado seguir às criaturas, de que
a própria libra tem reveses. Es-

braseiam agora os ossos sob o aluvião,
vêm como ouriços acenar à boca

E estou mais maduro mais rombo.



b)

O Euro? Óbulo ainda verde
no ramo que desaperra os melros.

O Euro, unidade de transis-
torização do pólen, onerou

a confiança no escudo e situou
a terraplanagem: «Coelho

bravo do mato? Coalho no prato!»
Igual ao Euro nem Eros, a erva

em celibato na boca das urnas.
Stress, stress, o Euro enluva

a treva e mastiga holdings
nações trombas de água.


c)

Hoje reconheço no Euro
o grande agrimensor. Decadência

da literatura francesa, fraqueza
da divisa americana? Matéria reservada

aos espíritas. Por mim, tenho
um armário cheio de ossos a dividir -

-me o quarto: de um lado brame
o mar enquanto o outro escuta.

Mas do andar de cima vem e de-
calca-se na insónia a Valquiria

travestizada - a com Tomáz sintonia
da Marcelo & Gutierrez, Limitada:

riso alvar de um país que toma a hérnia
por subsídio. O  Euro não é bem

O Mal: sim a térmite, o eucalipto.


d)

Não interessa ao Euro. Que um manto
de penas amortalhe a garoupa-de-pedra,

não interessa à finança. A inutilidade
das metáforas corrói as estatísticas, o zelo

com que homens extremamente fiáveis
renunciam aos domingos a férias

aos altos índices de trufas no sangue.
Apesar do lucro com que a morte mantém

estáveis as características do subsolo.


 e)

Não reconhecer num cortejo de moscas
os adornos da luxúria e cair sobre

o mundo a cor do sono, o arraiar
dos escudos: eis a morte, um pé

extraviado no sapato de outro.
Deito-me na relva, os pulmões,

coados pelo nevoeiro, cambam.
Há coisas sei cosas choses

things que transcendem o câmbio
nominal: um abraço impossível

de perdoar, a bebedeira que ilha
as despedidas, a amêndoa amarga.

Mas deitado sobre o mais lacunar
dos nevoeiros, com o Marco a especular

Março acima, no “isque”, nas salsichas
na ira de Gunter Grass e com a devoluta

cabeça a noventa por cento de humidade
vou lá eu adivinhar o produto interno bruto


f)

Não é coisa que se recomende. Algo
no meu rasto alimenta-se do débito

dos amigos e do abafo das insónias.
Vai esconder-se no lintel das portas

e acorda quando eu passo. Piora
em noites de uma emoção citrina

quando a solidão se deita gafosa
com o fôlego de uma concertina

que mãos alheias desacreditaram,
trocando nervos por miúdos. E

será possível ensinar a um bávaro
que a idade se sacia no derrame

embora o Euro reprove o sexo
com turcos centauros e talheres?

E não é bonito pendurar um homem
dessangrado no gancho dos versos.


g)

Oito anos suspenso pela indolor
constância do atrito, rendido

à mágoa anónima de uma direita
baixa. Oito anos e muito abono

às trompas uterinas e mais janelas
friáveis de permeio. Os versos vinham

rebentar aos pés e voltavam ao mar,
indivisos. Oito anos com um armário

de ossos a dividir-me o quarto. Nada
pode ser mais simples do que esta arte

mecânica de morrer sem o repouso
de um chamamento, com o crédito

(ainda o Euro não roía até à alma)
muito abaixo das lamejinhas.


 h)

E tudo ainda me revolve: este céu
fiel ao afã do tira-olhos, os valores

da Bolsa qu' estampam na pele
a insidiosa paz dos herbários,

o amor de costas para a teleobjectiva,
o esforço do anão a medir caixões.

Ainda tudo me revolve: a mesma
privação o cerco tarde ou nunca

do que cala, os bolsos fundos onde
as mãos desabafam refractadas.

Ao dólar -  esse cão de três patas
que abocanhou as moscas russas

e que fermenta a massa dos síndicos
e dos ministros que nunca se sentam

de costas para uma porta - sorve-lo
agora um caixão Made in Japan.

Só o amor lembrado (distante como
os bicos de uma tesoura aberta),

as afasias, o ciúme - câmbios
que têm no dever incumprido

resíduo inevitável - desafogam o lucro.


i)

A alba traz consigo deuses novos
e aposentações. Se a ressaca da noite

fez sobrar a cabeça e o corpo juntou
outro nome à livre ventilação dos nervos

deixa-te a solidão o atraso e novas
prestações. Aí o melhor é destrançar

os pulsos, privá-los. Que sémen
esquírolas e flashes comem

à mesa da usura. Cresça o futuro entre
ienes e euros: comem-te as carnes

e deixam-te as sobras. Sentemo-nos pois
na perigosa berma do saké, no sulco

fundo onde uma cabeça descalcifica.

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