Texto que fiz para o catálogo da exposiláo de Jorge Dias, Lugar-comum, que inaugurou ontem:
A longa noite;
o som da água
diz o que penso
GOTXIKU
Volta Jorge Dias ao
nosso convívio com uma exposição de título genérico «Lugar-Comum».
A expressão
lugar-comum é habitualmente entendida como um signo de pacificação, como
designando um dito ou território dominados pela habituação que antecipa a
invisibilidade.
Neste caso, entendê-lo
assim seria laborar num erro. Há uma ambivalência, uma incomplacente ironia ao
fundo da escolha deste nome para esta exposição.
Diga-se, de antemão, o
coração de Jorge Dias é um coração escarpado, a sua é uma sensibilidade que não
se ancora no óbvio, nos recortados contornos da clareza, e antes procura as
obliquidades, os lugares de passagem, o plinto da inquirição.
É aliás um dos poucos
artistas moçambicanos que prefere as perguntas às respostas, e que por isso se
move em territórios sempre fronteiriços, entre o mundo e a arte, entre as
formas e os seus limites, tangências e intercepções, entre a finitude e a
transfiguração, entre a “cosa mentale” e o domínio oficinal, entre o quotidiano
e os seus resíduos no escopo da arte, num ecletismo conceptual que contamina os
seus próprios processos duma espontânea mestiçagem.
Daí que outra pulsão
que vai aparecendo nas suas obras seja a da memória. O que seja, como se
projecta, intromete, se organiza em casulos, infiltrando-se nas figuras para o
seu suceder-se em mutação; Jorge Dias sonda de que modo os signos se retroalimentam
e fluem num território entre, incandescente e espectral que ninguém
quer habitar, como se assombrado por kipocos.
Jorge Dias não receia,
enfrenta-os, reconverte-os, desabita-os: resgatando-os assim à sua
memória amorfa, desordenada, fixa, para os re-situar no movimento ordenado do
mundo e das formas.
Mas de que falamos?
Jorge Dias sente como
poucos artistas, ao fundo da epiderme, a realidade excruciante que se vive no
seu país: Moçambique é uma entidade magmática, que condensa estratos e estratos
de realidades simultâneas e de passados múltiplos, o que é ainda vivido de
forma dilacerante, como se fosse um mal ser habitado pelos contrastes do
múltiplo, à espera de um urbanista espiritual que reconcilie este capricho de
viver num espaço que é um bazar de diferentes tempos históricos.
Para muitos esta
herança é um mal.
Creio que Luís Carlos
Patraquim na poesia e Jorge Dias nas artes plásticos serão aqueles artistas que
talvez melhor convivam com a riqueza de uma extensa centrífugação identitária,
onde todas as marcas da memória são integradas. Eles não aceitam a memória
amputada, literalmente e em todos os sentidos, e neste sentido o projecto de
ambos envolve, sem querer, algo de natureza política. E ambos preferem a
saturação à redução.
É Michel Mafesolli
quem menciona esta noção proposta pelo sociólogo P. Sorokin e que se mostra, a
este título, muito instrutiva: a «saturação». Consiste esta, continua o
francês, no processo, quase químico, que dá conta da desestruturação de um dado
corpo e que é seguida pela reestruturação desse corpo com os mesmos elementos
daquilo que foi desconstruído.
Trata-se, inclusive,
insiste o francês, de uma forma de inscrição, assim ao jeito de uma estrutura
antropológica, que se encontra na filosofia, na literatura, na política e
também na existência quotidiana, nas quais se ilustra essa relação íntima e
constante entre a “pars destruens” e a “pars construens”.
Aquilo que, em todas
as coisas, se destrói e se reconstrói. Vida e morte ligadas numa combinação
íntima e infinita. Tudo tem a sua génese e tudo tem o seu declínio, mas antes
de diluir-se transmuta-se: há uma recoagulação.
Temos aqui uma chave
para estes trabalhos de Jorge Dias.
Jorge pegou numa série
de capulanas, que têm já o seu padrão constituído e fez delas «um chão comum».
Como se esta “tela” fosse o país de que se parte ou a que se chega. E depois
foi colando ao sabor da navegação do seu olho clínico elementos heteróclitos de
todo o tipo – de garrafas de coca-cola, a adereços florais ou fitas dos
vestidos de noiva, a linhas de bordar, capas de telemóvel, carteiras de verga,
cunhas de madeira, espigas, palhas, carumas, pequenas peças de artesanato, um
sem número de índices referenciais a que não faltam sequer os artefactos da sua
própria memória artística, como os seus célebres insectos de arame – em
composições sempre diversas que vistas em perspectiva ora evocam a action
painting como mandalas, num impulso de grande liberdade.
Melhor que, absorvendo nalguns elementos alguma dessa atmosfera nunca caem na
esparrela do kitsch e configuram antes constelações, ou cartografias de outro
tipo.
Por outro lado, uma
das coisas que tornam excelente a exposição é o seguinte: Jorge Dias de há
muito que não é um artista que tenha como parâmetro as leis da Beleza, não
fareja as proporcionalidades e as suas rimas internas. Como diria Danto, em
resposta a Jean Clair, a linhagem de Jorge Dias é a dos artistas que inauguram
um sentido. Que até pode remar contra aquilo que é considerado belo, pois
como justificar a desnorteada lógica da realidade social com o artifício da
beleza?
Porém, no seu afã
construtivista (Jorge é um artista que pondera e demora cada acto) verificam-se
nestas “paisagens” alguns “momentos” em que há um extremo equilíbrio na
composição, despontando desse máximo de saturação (de elementos, formas, e
padrões conjugados) uma harmonia inesperada que claramente faz pulsar uma
unidade, ou dir-se-ia, a indivisibilidade que expande.
Esta vibração –
como se os elementos se buscassem mutuamente para produzir uma conjugação
necessária e viva – de cores e ritmos que se sente em alguns
destes trabalhos não corresponde tanto ao tipo de beleza como foi concebida no
Ocidente como ao tipo de experiência contemplativa unitária que se identifica
no Oriente.
O Antoni Tapiès
adoraria esta exposição.
Também eu a acho
excelente e por isso acabo com um poema, que investe numa igual ventania de
motivos, lugares e memórias, para os depositar num “lugar-comum” (que é o corpo
do poema), e que dedico ao Jorge Dias, que o entenderá porque é um homem permanentemente
ocupado:
O PLANO PARA A SEMANA
Coração pelado, algoritmo
de um gato que cruza
o enquadramento em patins de gelo
- num lago na distante Montana.
De que vale imaginarmos
que ficamos sem pé
a meio de um lago que degela
nos EUA, a norte de Montana?
Parecem esculturas os tubos
de escape fundidos que anunciam
mecânico em Maputo
- fica-te pelo que vês,
e urina dentro do penico.
Ao domingo. À segunda
agarra-te ao teu coração pelado
em Kobani. Arrasta essa dor
até terça. Na quarta lembra-te
que até as matilhas de lobos
sonham. E por essa frincha
de néon deixa que o amor
te indemnize, mesmo em torvelinho.
Recomeça. Algoritmo de um gato
que sob a exsudação dos coqueiros
e um fedor a gasolina martelada
ensina a ler Eurípedes
em papel bíblia
sem que nenhum muezim
consiga calar o seu canto.
Eis um bom plano para a semana.
Tenta agora manter-te no encalço
do domingo, no sereno travo
que os centauros apreciavam no bacalhau.
Sem comentários:
Enviar um comentário