1
Um conto do Machado de Assis, Ideias do Canário,
parece-me bastante elucidativo quanto ao que iremos tentar concretizar:
Um especialista em ornitologia, o senhor Macedo, encontrou na
penumbra de um ferro-velho um canário cuja beleza lhe mereceu comentários sobre
o dono que se teria desfeito de tão mimoso exemplar. E para surpresa
sua, ouve o canário trilar:
-Que dono? Esse homem que aí está é meu criado, dá-me água e
comida todos os dias, com tal regularidade que eu, se devesse pagar-lhe os
serviços não seria com pouco; mas os canários não pagam criados. Na verdade, o mundo
é propriedade dos canários.
Pasmado, o senhor Macedo perguntou-lhe se ele não teria
saudades do espaço azul e infinito. Resposta pronta do canário:
- Mas, caro homem, que quer dizer espaço azul e infinito?
- Perdão, tornou o homem, que pensas deste mundo? Que coisa é
o mundo?
O mundo, redarguiu o canário com certo ar professoral, o
mundo é uma loja de ferro-velho, com uma pequena gaiola quadrilonga, pendente
de um prego; o canário é senhor da gaiola que habita e da loja que o cerca.
Fora daí, tudo é ilusão e mentira.
O assarapantado Macedo não descansou enquanto não comprou o
canário. Queria assombrar o século com a sua extraordinária descoberta. Um
canário que falava. Começou por estudar a língua do canário; e depois entrou
propriamente na história dos canários, na origem deles, na geologia e flora das
ilhas Canárias, se ele tinha conhecimento da navegação, etc. Conversavam longas
horas, Macedo coligia as suas notas, enquanto o canário devaneava.
Macedo dormia pouco, acordava duas e três vezes por noite,
passeava à toa pela casa, febril com o trabalho, o qual relia, emendava,
rasurava. Rectificou mais de uma observação, — ou por havê-la entendido mal, ou
porque o canário não a tivesse expresso claramente. A definição do mundo foi
uma delas. Três semanas depois da entrada do canário em sua casa, pediu-lhe que
lhe repetisse a definição do mundo.
— O mundo, respondeu ele, é um jardim assaz largo com repuxo no meio, flores e arbustos, alguma grama, ar claro e um pouco de azul por cima; o canário, dono do mundo, habita uma gaiola vasta, branca e circular, donde mira o resto. Tudo o mais é ilusão e mentira.
— O mundo, respondeu ele, é um jardim assaz largo com repuxo no meio, flores e arbustos, alguma grama, ar claro e um pouco de azul por cima; o canário, dono do mundo, habita uma gaiola vasta, branca e circular, donde mira o resto. Tudo o mais é ilusão e mentira.
Um sábado, Macedo acordou doente, doíam-lhe a cabeça e a
coluna. O médico ordenou absoluto repouso; era excesso de estudo, não devia ler
nem pensar, não devia saber sequer o que se passava na cidade e no mundo. Assim
ficou cinco dias; no sexto levantou-se, e só então soube que o canário, estando
o criado a tratar dele, fugira da gaiola. O homem ia tendo um ataque cardíaco.
Recuperado, procurou o canário nas imediações da casa, durante dias, nada. Nem
sombra de canário. Desesperou, mas tinha as suas notas.
E começou o seu livro, ainda que incompleto. Um dia
foi visitar um amigo, que morava numa das mais vistosas vivendas da periferia.
Passeavam no jardim antes de jantar, quando ouviu trilar a pergunta:
— Viva, Sr. Macedo, por onde tem andado que desapareceu?
Era o canário; estava no galho de uma árvore. O sr. Macedo ficou eufórico. E falou-lhe com ternura, pediu-lhe que o acompanhasse para continuarem a conversação, frisando, ‘naquele nosso mundo composto de um jardim e repuxo, varanda e gaiola branca e circular’.
— Que jardim? Que repuxo? - admirou-se o canário.
— O mundo, meu querido.
— Que mundo? Tu não perdes os maus costumes de professor. O mundo, concluiu solenemente, é um espaço infinito e azul, com o sol por cima.
Indignado, o sr. Macedo lembra-lhe que, se lhe desse crédito, o mundo era tudo; até já tinha sido uma loja de ferro-velho.
— De ferro-velho? Trilou o canário, às bandeiras despregadas, Mas alguma vez houve lojas de ferro-velho? (Assis:2010)
— Viva, Sr. Macedo, por onde tem andado que desapareceu?
Era o canário; estava no galho de uma árvore. O sr. Macedo ficou eufórico. E falou-lhe com ternura, pediu-lhe que o acompanhasse para continuarem a conversação, frisando, ‘naquele nosso mundo composto de um jardim e repuxo, varanda e gaiola branca e circular’.
— Que jardim? Que repuxo? - admirou-se o canário.
— O mundo, meu querido.
— Que mundo? Tu não perdes os maus costumes de professor. O mundo, concluiu solenemente, é um espaço infinito e azul, com o sol por cima.
Indignado, o sr. Macedo lembra-lhe que, se lhe desse crédito, o mundo era tudo; até já tinha sido uma loja de ferro-velho.
— De ferro-velho? Trilou o canário, às bandeiras despregadas, Mas alguma vez houve lojas de ferro-velho? (Assis:2010)
Para lá da graça literária do conto, caberia perguntar se
este canário não teria, pistache a pistache, ingurgitado um tratado de
semiótica, e dado conta da importância em perceber o lugar de onde se fala
e de onde se ouve para o acto de investir no significado um sentido; pois
é sabido como as coisas muitas vezes só ganham sentido depois de sabermos de
donde elas partem, como acontece quando a mulher chama ao marido ‘meu
carapauzinho’ e sabemos de imediato que eles não estão a falar da pesca.
Se quiséssemos ser graciosos podemos ainda perguntar, se não
teria sido sob influência que Nietszche, coetâneo deste letrado canário, propagou
a ideia de que devemos contrapor ao ideal do conhecimento e à miragem da
verdade a importância da interpretação e da avaliação sucessiva para o
esclarecimento da vida e da realidade. Mas cremos que o filósofo alemão não lia
português. Contudo, para dar um exemplo da vantagem desta deriva da
interpretação em relação a um anterior estatuto de verdade, exemplifiquemos com uma crença moçambicana: o mocho é
considerado em Moçambique um bicho funesto e de todo talhado para o mal, a
mesma ave que em Espanha é a imagem da felicidade e na Grécia a da sabedoria.
Se um moçambicano conhecesse de antemão esta ambivalência simbólica para a ave
deixaria de a temer e a verdade horrífica do mocho relativizava-se.
Uma certeza pode-se ter: esta fábula ensina que a nossa percepção
do mundo depende do meio em que nos movemos e dos seus diferentes instrumentos
de leitura e não concede qualquer valoração hierárquica às diferentes
narrativas. A razão multicultural está aqui plenamente antecipada, quase um
século antes de Charles Taylor e Michael Walzer esboçarem os primeiros borrões
da sua obra.
Mas podemos remontar ainda mais atrás. No princípio do
Renascimento, por alturas do século XV e XVI, cristalizava na Europa a ideia de
que os negros se filiavam na linhagem de Cam. Lembremos que Cam foi o filho que
troçou da nudez do pai, que estava embriagado, e que por isso Noé o amaldiçoou,
mais à sua descendência. [1][2]
Recordemos de passagem que segundo o poeta franco-uruguaio Julles Supervielle
já o primeiro homem, Adão, se consolava da fidelidade forçada a Eva inventando
o vinho. E Noé, homem de uma dupla solidão, tomou-lhe o gosto.
Certo, é que esta maldição mítica abriu um campo muito fértil
aos defensores da inferioridade das populações negras, ideia que se manteve nos
manuais religiosos até pelo menos ao século XX e que era igualmente divulgada
nas escolas protestantes da África do Sul e em certas escolas fundamentalistas
norte-americanas, durante a década de 60, no século XX. Mas no mesmo momento em
que se decretava esta maldição sobre a raça negra escrevia o ensaista
Montaigne, em 1500 e picos, com clarividência e no oposto dessa crença: «(…)
cada um chama bárbaro ao que não está de acordo com os seus hábitos; e, na verdade,
parece que não temos outro critério de verdade e de razão que o exemplo e o
ideal das opiniões e usos do país onde estamos. É aí que sempre se acha a
religião perfeita, o governo perfeito e a perfeita e acabada maneira de fazer
as coisas.
São eles selvagens, tal como selvagens são por nós
chamados os frutos que a natureza, produz por si quando, em boa verdade, são
antes os frutos que artificialmente alterámos que devíamos apelidar de
selvagens. Nos primeiros mantém-se vivas e vigorosas as verdadeiras, as mais
úteis e naturais virtudes e propriedades que nos outros abastardámos, tão-só
para os adaptar ao sabor do nosso gosto corrompido.» (Montagine:1998:134)
Mas, no germinar da cultura humanística, não é apenas em
Montaigne que podemos encontrar esta conversão do olhar ao múltiplo, bem como
um genuíno respeito do outro encarado como um ponto de vista alternativo e
complementar sobre o mundo e os seus costumes. Um século depois, na esteira de
Montaigne, que admirava, um insuspeito Descartes, escrevia este parágrafo em O
Discurso do Método: «É bom saber alguma coisas dos costumes dos diversos
povos, a fim de julgar mais rectamente os nossos, e para que não pensemos que
tudo o que é contra as nossas modas é ridículo e contra a razão, assim como
costumam fazer os que nada viram»(Descartes: ).
Eis-nos, avant la lettre, numa plataforma que já
afirma que todos os sistemas culturais são intrinsecamente iguais em valor e
que os aspectos característicos de cada um têm de ser avaliados e explicados
dentro do contexto do sistema em que aparecem; plataforma, desenhada por duas
figuras centrais da cultura humanista. E contudo, a brasa não pegou durante séculos.
E as culturas entreolharam-se com desdém e numa assimetria de dominação e
subordinação crescentes.
Porquê? Talvez a resposta mais simples e directa seja esta:
Quando se divide o mundo entre nós e eles (os outros),
essa classificação, ou esse processo de classificação torna-se central para a
vida social. Porquê? Porque dividir e classificar significa hierarquizar.
Deter o privilégio de classificar significa também deter o
privilégio de atribuir diferentes valores aos grupos assim classificados, de
lhes fixar a identidade. (Da Silva, 83)
Por isso, os exploradores africanos do século XIX
desunharam-se tanto em descobrir o que já era conhecido desde há muito, como a
fonte do Nilo, por exemplo. Como ironiza Jorge Urrutia, bastaria a Speke ou a
Burton chegar e perguntarem a um pastor, “viu por aí a fonte do Nilo?”, e o
pastor havia de apontar-lhes a fonte de tal mistério, ou consultarem o mapa de
Wilford que levavam consigo (Urrutia, 2001:111). Os exploradores preferiram perder-se,
serem vítimas de intempéries, da malária, e até entrarem em conflito de
interpretações, porque o fito, afinal, não era tanto «explorar o desconhecido,
mas sim produzir primeiro um desconhecimento que, de seguida, justificasse a
visão descobridora e a nova construção» (Urrutia, 2001: 115).
E assim, é no plano da re-nomeação que avança o colonialismo,
que começa a denegação do outro. Exercício de re-nomeação que teve o seu
expoente nos anos 50 e 60 no Zambeze moçambicano, quando num acesso de jocosidade
cruel os administradores coloniais portugueses baptizavam os filhos dos nativos
com os nomes de Sabonete, ou Mosquito, ou Vinagre, como se comprova ainda hoje
nas escolas moçambicanas. Quem detém o poder de nomear domina. O que se
repercute na linguagem, a todos os níveis, pois o quer dizer, a expressão tão
lida nos manuais de história contemporânea usados nas escolas secundárias: “Portugal
deu a independência às suas colónias”
senão o propósito de, através da retórica, camuflar, branquear a verdade, visto
que a mesmo foi conquistada pelas
armas?
Outra resposta possível para o desdém entre culturas
prende-se com um aspecto mais mesquinho: um limite antropológico que o filósofo
Clément Rosset detectou no homem. No estudo A inobservância do real
diz-nos o filósofo francês: «Se há uma faculdade humana que merece atenção e
se assemelha ao prodígio é realmente essa aptidão, particular ao homem, de
resistir a toda a informação exterior e quando esta não concorda com a ordem da
expectativa e do desejo, de ignorá-la, se for preciso a seu bel-prazer;
admitindo a possibilidade de se opor a ela, se a realidade insiste, numa recusa
de percepção que interrompe toda a controvérsia e encerra o debate,
naturalmente às custas do real. Esta faculdade de resistência à informação tem
algo de fascinante e de mágico, nos limites do inacreditável e do sobrenatural: é impossível conceber como se utiliza o aparelho
perceptivo para não ver, o ouvido para não ouvir. No entanto, essa faculdade,
ou melhor, essa antifaculdade existe; ela é mesmo das mais banais e qualquer um
pode fazer a sua observação quotidiana.(sublinhado meu)» (Rosset:1997).
Com este mesmo limite se confrontou Marco Pólo. O relato
detalhado das suas viagens pelo oriente, incluindo a China, foi durante muito
tempo uma das poucas fontes de informação sobre a Ásia no ocidente.
Como é sabido, ao serviço do rei
mongol Kublai Khan,
neto do poderoso Gengis Kham, Marco Pólo percorreu a Tartária,
a China e
a Indochina.
Depois de chegar a Veneza em 1295,
Marco Polo comandou uma força militar na guerra contra Génova,
acabando por ser feito prisioneiro. Durante o cativeiro, ditou as suas
aventuras de viagem a um prisioneiro, Rusticiano de Pisa, que
foram traduzidas em latim,
em 1315,
pelo frei Francisco Pipino.
As suas crónicas e histórias
povoaram imensamente os imaginários de vários povos e chamavam a atenção pela
incrível riqueza de detalhes e emoção produzida em suas narrativas. “Nunca
antes ou desde então”, diz um historiador, “um homem forneceu tão imensa
quantidade de novos conhecimentos geográficos ao Ocidente”.
O que vulgarmente não se comenta,
mas se assinala em qualquer edição crítica da obra, é que Marco Pólo teve de adulterar
a sua narrativa – que almejava reproduzir o “real concreto” e tinha as “qualidades
factuais” de uma reportagem (sobre lugares geográficos, costumes e comunidades)
- e de enxertar na sua narrativa blocos retirados ou inspirados em narrativas de
prodígios e alguns espécimes do bestiário fabuloso da época, de forma a dotar o
seu relato de viagens com uma «ilusão referencial». Sem esse reforço de
verosimilhança, o seu livro seria considerado como absolutamente infundado, uma conversa da treta como hoje se
diria na televisão.
É esta sobreposição da crença sobre a observação, do
fabuloso sobre o visível e o vivido que explica também que no século dezassete
ainda fossem vulgares as cartas geográficas onde se assinalavam os seres que
existiam a sul do equador: ciápodes, isto é humanos com um só pé gigante que,
em deitando-se, usavam como guarda-sol, cinocéfalos, homens com cabeça de cão, blémias,
que não tinham cabeça e tinham os olhos embutidos nos ombros, e um sem número
de outros monstros.[3]
Com
esta mesma incapacidade para se lidar com a realidade, ou com este complexo
de Marco Pólo, se confrontaram recentemente gerações de sul-africanos que
durante demasiados anos estiveram arredados dos programas de saúde contra a
Sida porque o Presidente Mbeki, apesar de ser um académico reputado, não
acreditava que a Sida fosse uma doença provocada por transmissão sexual e dizia
que a pandemia era mais uma ficção dos boers para desacreditar a nova maioria
no poder (Stephen Smith: 2004:39).
O que interessa assinalar é a persistência com que a
crença recobre a racionalidade e a observação.
2
Lecciono
na Universidade A Polictécnica, em Maputo, uma disciplina de culturas
comparadas, onde procuro transmitir as diferentes concepções que as diversas
culturas manifestam no seu relacionamento com o tempo, o espaço, a comunicação
interpessoal, os sonhos, a noção de pessoa
ou a representação de si. Há cinco anos que dou esta disciplina.
Os
alunos normalmente chegam absolutamente desinformados sobre tudo o que concerne
ao Outro, seja à sua história, cultura, costumes; a tudo o que se passe fora
das suas fronteiras étnicas ou não pertença à esfera da cultura juvenil
maciçamente veiculada pelas televisões. Mas, sendo Moçambique um mosaico de
culturas e etnias, onde o ronga convive no mesmo prédio com o indiano hindu, o
chinês, o maconde, o paquistanês muçulmano e o branco católico, esse
desconhecimento afigura-se mais grave, dado significar que o jovem não
manifesta qualquer curiosidade em conhecer o seu próprio vizinho e as culturas
diferentes que compõem o mosaico do seu próprio país.
Na
primeira aula pergunto sempre aos alunos por que exibe o político Jacub
Sibyndy, o líder da Oposição Positiva, um enorme turbante em todas as suas
aparições públicas e, apesar de pelo menos metade da população ser muçulmana,
nunca obtenho da outra metade uma resposta convincente sobre o significado
simbólico do turbante. É um mundo à parte para eles, que não lhes toca.
Em
sendo confrontados com as diferenças de comportamentos étnicos e culturais
sobre as coisas mais corriqueiras do quotidiano, coisas quase irrelevantes mas
que são marcadores culturais, como, por exemplo, o modo como as diversas etnias
se relacionam com os cães, nunca um não-muçulmano sabe ou manifestou a
curiosidade de entender as razões do outro para semelhante divergência de
comportamento no trato com os cães. É um mundo à parte para eles, que não lhes
toca.
Uma
vez fiz uma entrevista ao já citado Sibyndy, publicada no semanário generalista
Meia-Noite, em 2007, onde este
político, desconcertantemente, me contou que fora gerado muitos anos depois da
sua mãe ter tido a menopausa. O político, na ânsia de reivindicar para si o
estatuto de um predestinado, tentava imprimir um cunho mítico ao seu
nascimento, apropriando-se da história bíblica de Sara, de Jacob, que concebeu,
por milagre, já muito depois da menopausa. Ainda perplexo pela coragem (o
descaro?) do político em expor-se a um eventual ridículo, levei o jornal com a
entrevista para a aula e li-lhes essa parte sobre a origem mítica do político.
Tive de puxar por eles para obter reacções, a raros a coisa chocou e a maioria
não repararia sequer no pormenor se eu não o tivesse assinalado.
Não
é uma questão de carência de instrumentos de análise mas de uma diferente
pontuação na sequência da interpretação dos acontecimentos[4], mais
ligada a uma concentração lateral, que opera automaticamente a partir dum
sistema da crença, mais do que pela via dedutiva da análise. Ou seja, face aos
mesmos problemas eles metem o foco noutro lugar, dão relevo a distintas coisas.
Há
três semanas, numa aula às sete da manhã, ao pedir a um grupo de seis alunos
que sumarizasse as qualidades requeridas para um Deus ser um Deus – ubiquidade,
omnipotência, imortalidade, etc. –, julgando que eu lhes pedia um retrato de
Deus, eles fixaram o seguinte retrato: Deus é louro, tem o cabelo comprido e
olhos azuis. Não se levantou a mais ligeira ponta de controvérsia quanto ao
retrato. Observei que, à partida me parecia uma manifestação muito colonial de
Deus e aí instalou-se o debate sobre os regimes das imagens e o condicionamento
subliminal das práticas ideológicas.
Onde pretendo chegar ao contar estes pequenos episódios da minha
prática como professor? Talvez ao que entrevi nas declarações de um jovem da
Guiné-Bissau, estudante de línguas em Lisboa, para o programa Nós, da RTP/África. Dizia candidamente
o estudante guineense, sobre o seu futuro: “quando
acabar o curso vou finalmente regressar à minha terra, pois aí eu reconheço tudo…(sublinhado meu)”.
Este jovem está refém do que Daryush
Shayegan diagnosticou para os povos que vivem no cruzamento entre a modernidade
a tradição. Shayegan, um iraniano, escreveu um ensaio notável, Le Regard Mutilé, sobre o
ensarilhamento dos países tradicionais face à modernidade, que nos ajudará a
explicitar as contradições que estão implícitas ao comportamento do jovem
guineense. Escreve o iraniano: «Nos
conflitos de paradigma que opõem ainda nos nossos dias o Terceiro Mundo ao
Ocidente, chegou-se a uma situação intermediária onde as duas epistemologias
(dois padrões de cultura) se encontram e se desfiguram uma na outra. (…)
Podemos viver assim um período de “atrasos epistemológicos”, nos quais os que
sustentam uma “epistemologia arcaica” se enfrentam com os precursores de uma
nova grelha conceptual do mundo (…) Nós podemos ter mesmo uma situação particular
em que as duas epistemologias heterogéneas operam no interior de uma só e mesma
pessoa, cegando, paralisando as suas faculdades críticas. (…) Caracterizando
esta esquizofrenia epistemológica, presente nos intelectuais sul-americanos,
Octávio Paz escrevia: ‘As ideias são as de hoje, as atitudes são as de ontem!’»
(Shayegan: 1989: 100). Vacilando entre duas epistemologias, os cidadãos do
Terceiro Mundo adquirem uma consciência «em atraso» sobre a ideia, ou seja, habituam-se
a apropriar-se do conhecimento como se duma mera técnica se tratasse, sem aderirem
ao seu substrato “metafísico” (i.é, ao
modo de vida que lhe é inerente), como se as experiências não passassem por
eles, não os transformassem. O jovem guineense nem sequer acredita na
possibilidade de que em cinco anos talvez a sua terra esteja transformada ao
ponto dele não poder reconhecer tudo.
E esta heteronomia face à experiência,
esta incapacidade para aceitar o agora, o empírico, e, diria o Clément Rosset, o que está simplesmente à frente dos olhos,
talvez faça dele um estudante que não se imbrica; tanto que almeja voltar para
a sua terra para fugir enfim da sensação de que algo lhe escapa na nova
experiência, em terra alheia.
Ora, não há experiência sem precisamente essa margem de
insegurança, de modo a que esse ponto cego desenvolva novas redes e novos
desempenhos para a confiança.
Parece-me urgente, face a estes exemplos, explicar aos alunos
que tendam a sobrepor à experiência o conforto da memória e o álibi da tradição
que talvez o mais grato na vida não resida no facto de «descobrir a nossa
identidade através desse visível que é a nossa história», exactamente
porque, como explica Peter Pál Pelbart «a história não diz o que somos, mas
aquilo de que estamos em vias de diferir.» Do que decorre, que diferimos
dela «não para descobrir o que se é, mas para experimentar o que se pode
ser (desprender-se de si, diria Foucault).» (Pelbart: 93: 102).
Parece-me urgente insinuar ainda que a «tarefa ética por
excelência» do humano será talvez mais este desprender-se do que o
apegamento aos valores de sempre.
Tanto o rapaz guineense citado acima como a maior parte dos
meus alunos me fazem lembrar a história de Ernesto, uma jovem personagem de
Marguerite Duras, que um dia fugiu de casa porque não queria estudar mais. Após
uns dias de busca lá o acharam escondido no bosque contíguo à povoação onde
vivia, e então a família, preocupada, perguntou-lhe: mas afinal porque não
queres ir à escola, tendo o Ernesto respondido: Não quero ir à escola porque
só me querem ensinar o que eu não sei!
Será um exagero falar
da presença dum «síndrome Ernesto» para os povos que vivem a
cavalo entre duas epistemologias? Para
quem é professor em Moçambique, há fortes indícios.
Descortino duas causas principais. Primeiro a Local:
Moçambique é um país que tem desleixado na ordem social e política aquilo a que
o filósofo José Gil, em psicanálise ao imaginário português, chama a inscrição, o que significa: produzir real, produzir actos com consequência, que abram o real a
outro real (transformado), o que é vital quer para o crescimento da
responsabilidade social, quer para o reconhecimento e o incremento da memória
social (GIL:2004:48).
Alguns exemplos:
- abrem-se para cima de duas dúzias de universidades em todo
o território nacional mas só existem sete (más) livrarias em todo o país (para
uma população de 20 milhões de habitantes), havendo imensas cidades com
universidades mas sem um lugar onde os alunos possam comprar os livros
curriculares (que aliás chegam a um preço exorbitante a Moçambique, apesar dos
livros por lei estarem isentos de imposto alfandegário, por serem iludidas todas as fiscalizações
sobre o comércio dos livros); concomitantemente, há dez anos que a mesma
proposta ministerial para um Plano Nacional de Leitura corre entre consultores
(para darem parecer), perpetuando-se o seu adiamento e dando-se assim sinais contraditórios
aos estudantes;
- existe uma lei a favor da Regionalização e da Descentralização.
Mas todos os dias são aprovados regulamentos na Assembleia a favor da
Centralização[5].
Não pretendemos fazer análise política, mas seria
absolutamente ingénuo julgar-se que a escola está olimpicamente alheada da realidade
em que está inserida, quando esta mesma realidade dificulta o ensino da
tolerância cultural e bloqueia a clarividência política nos movimentos
educacionais de postura multicultural. A brasileira Teresinha Azerêdo Rios, uma
teórica das questões pedagógicas, põe os pontos nos i ao defender: «a tarefa do professor, do educador
competente, é estabelecer o diálogo do professor com o real» (Azerêdo Rios,
1993:70).
A minha prática como professor diz-me que só no interminável
diálogo com o real (e o quotidiano) é que os conceitos se tornam pregnantes,
entendidos. Ora, quando existem factores intra e extra-escolares que interferem
e coagem a que não se fale do real…
Ademais, continua Teresinha Azerêdo Rios, ensino e liberdade
andam forçosamente a par, posto que a liberdade não é um dado imediato, como
crêem os teóricos dos direitos naturais, mas sim o resultado mais importante da
educação. Quando se almeja um sistema onde só se pense o que esteja autorizado perdem-se
as duas coisas: a liberdade e a possibilidade de um “saber que saiba”; o qual
não dimana de uma mera percepção do real mas de uma percepção da percepção, uma
operação de segundo grau que interioriza o saber no acto de o transformar -
quando fomos nós o agente da transformação.
Mas vamos agora ao motivo Global para a «Síndroma Ernesto».
Este prende-se com as características que Marc Augé atribuiu ao que chama «a
sobremodernidade». A situação sobremoderna amplia e diversifica o movimento da
modernidade: é signo de uma lógica de excesso, e o etnólogo francês elenca três
tipos de excessos: o excesso de informação, o excesso de imagens
e o excesso de individualismo.[6]
Este excesso de informação dá-nos a sensação de que a
história se acelera ou que vivemos num eterno presente, no qual as distâncias
foram definitivamente encurtadas. Como resultado, desta superabundância de
informação cresce simetricamente a nossa capacidade de esquecer, a nossa
vontade de esquecer, necessária sem dúvida para a nossa saúde e para evitar os
efeitos de saturação que até os computadores conhecem. Mas creio que algo é
sacrificado nesta tensão entre a saturação dos três excessos (informação,
imagens, egoísmo) e a necessidade de esquecer, e que aqui perdem terreno tanto
a urgência de aprender coisas novas (e aliás a net dá a sensação de ser uma
biblioteca imemorial, que nunca deixará de estar à mão, se necessário) como a
aceitação do diálogo com o Outro, um instrumento activo de novas e quiçá
perigosas novidades, posto que o diálogo se dá quando o Outro interpela, mete
em questão o nosso passado, e nessa operação actualiza a esfera da comunicação
interpessoal.
Sempre que o passado se mostra inexpugnável, imune à
experiência da interpelação, o tempo cristaliza e o diálogo é malogrado,
obturado. Aqui, como no caso do aluno guineense a que nos referimos há pouco, o
estudante é uma espécie de turista
acidental, ávido na procura dos sinais de reconhecimento que o confirmem, o
mesmo e o mesmo e o mesmo, e pouco participativo na construção de um saber
partilhado com o diferente, a partir do qual ressoe a experiência de se
transformar.
3
Vou agora divulgar uns números assustadores, impressos num
livro que já tem treze anos, do pedagogo americano Neil Postman. Diz ele: «Entre os três e os dezoito anos, o jovem
americano médio verá cerca de 500 000 anúncios de televisão. Repito: 500 000
anúncios de televisão; o que significa que os anúncios televisivos são a
principal fonte de valores a que são expostos os jovens». (Postman, )
Face a esta carga de informação, que tem unicamente por fito
a subordinação ao Deus Consumo e ao Deus da Utilidade, pergunto-me se a grande
questão não estará em como persuadir o aluno de que o saber não é algo que se
acumula (como os produtos publicitados que adquire) mas algo que se
experimenta?
Só então, voltando ao esplendor desinteressado da experiência
é que o aluno conhecerá a abertura que o potencia para o outro, para o
encontro.
Parece-me claro que, se o ensino quiser ganhar uma efectiva
face multicultural, terá de haver previamente uma discussão sobre os fins do
ensino (serve para quê?) – que a discussão gire em torno dos fins e não apenas
dos meios, dos métodos; ou seja, o ensino terá, como preconiza Postman, de
voltar a ser acerca de como viver a nossa vida e não apenas um mero instrumento
para safar a vida.
Se assim não for, o ensino multicultural nunca passará da
exibição caricatural de Parques Temáticos, do tipo «Noites Dançantes na Cubata
de Shaka», ou «Venha Provar Seis Maneiras de Fazer o Arroz com o Perigo
Amarelo», e então a cultura do outro será sempre o álibi em que se molda um
profundo relativismo moral, com as consequências funestas que isso acarreta.
Uma das consequências visíveis de tal estado das coisas é o regresso ao
tribalismo, como suposta fonte de identidade e de valores transcendentes.
Faz-se mais que nunca necessário, e este combate é crucial em
Moçambique, onde a tentação para um clima de unanimidades impera, fazer que os
alunos percebam que,
a) uma identidade é marcada por meio da diferença. A
identidade não é o oposto da diferença: a identidade depende da diferença - só a compreensão disto os fará passar para
lá da tolerância e interiorizar que a uniformização é inimiga da vitalidade e
da criatividade;
b) Que a identidade não é uma essência; não é um dado ou um
facto – seja de natureza, seja de cultura, e não é fixa, estável, coerente,
unificada, permanente, mas algo em contínua mutação; pelo que os valores do
sangue ou da raça, não passam de metáforas, metáforas muitas vezes sangrentas
porque em estreita conexão com o poder.
Sempre que me falam da essencialidade da tradição africana,
eu lembro que hoje as capulanas são
todas ‘made in Taiwan’. Sempre que me falam da “alma lusitana” eu bocejo e
reparo que é alma que anda com “chiliques e turbulência” e que tem no Salazar, como
provam eventos mediáticos recentes, o grão-Mestre da Confeitaria[7]. Anda
com “chiliques e turbulências” porque abusa dos doces (ideológicos), em vez de
abusar um bocadinho mais da Realidade.
Outro aspecto que me parece inescapável para que a
Multiculturalidade não seja uma farsa é começar por aceitar que mesmo dentro de
cada tradição existem diferentes níveis da realidade, diferentes níveis de
percepção e graus de sensibilidade cultural.
A televisão e a hegemonia de uma política de mercado
implantaram a ideia de que somos todos iguais, é o regime da ‘«generalidade» galvanizado
pela política da decapitação única.
Não somos iguais, às vezes, dentro do mesmo espaço cultural
há mais diferenças entre dois homens do que entre nós e um crocodilo. Quem compra
os discos do cantor Tony Carreira, nunca se disporá a desfrutar uma página da
poesia de Herberto Helder, cuja inteligibilidade exige o mesmo “esforço” que uma sinfonia de Messiaen, e
um tipo de atenção de maior densidade e espectro. Explica Roger Pouivet: «As obras de arte de massas dirigem-se assim
ao comum denominador dos seres que não partilham uma cultura, no sentido humanista, não falam as mesmas
línguas, não vivem da mesma maneira. Madonna, os Rolling Stones, U2, mas também
Matrix ou o Silêncio dos Inocentes, romance ou filme, interessam todos os seres
humanos, dos mais jovens aos méis velhos. São obras que se dirigem ao mais
pequeno denominador comum não cultural (in
COMETTI:2007:19)» Ou seja, contra a ilusão do «genérico» que o mercado instalou
é preciso voltar sem complexos a uma grelha de valores firmes e dialogar com
outros níveis de sensibilidade sem temer explicar que há estratos diferentes de
compreensão, de inteligibilidade, e de percepção da realidade, que o “difícil”
para uns é um “índice de prazer” para outros; que, por exemplo, há obras com
finalidades cognitivas, morais, espirituais e que para além disso nos distraem,
enquanto outras tem por exclusiva finalidade distrair-nos, ou obter um efeito
físico, etc.
Devemos ser todos iguais nas oportunidades oferecidas para o
desenvolvimento, mas somos irremediavelmente diferentes à chegada, onde
exibimos densidades diferentes. Entre os Dogons, do Mali, a palavra é
«fecundadora» e, concomitantemente, há dois pares de vinte e quatro níveis de
significação diferentes para a comunicação pela palavra; sendo que cada nível
de compreensão depende do grau de iniciação do receptor. (Calame-Griaule, 2002:
31). Quando se chega ao último grau, a frase que parece absolutamente trivial
para um, sustém para outro uma explicação do mundo. Mas nós, os da cultura de massas, inventámos um
sistema regido pelo mito não só falso como desonesto de que partimos todos de
uma base comum, de uma leitura genérica, o que já foi suficientemente
desmontado há mais de 20 anos pelos teóricos associados a Palo Alto.
E previna-se, esta grelha de valores deve funcionar no
interior de cada tradição, não se trata por isso de estabelecer uma hierarquia
entre as tradições, dado que há equivalências, por exemplo: as microtonalidades
e a complexidade de uma banda de timbilas não é inferior à complexidade de
muita música erudita contemporânea.
Outra das razões para recuperar e afinar a grelha dos valores
prende-se a uma das exigências apontadas pelo pedagogo López Quintas para que
se efectue um encontro. Um encontro, diz aquele, não é uma mera
proximidade, um encontro exige a compartilha de valores elevados: «Vejam só,
quando você e eu nos dirigimos rumo a algo valioso, unimo-nos entre nós. Para
unir-se, o mais importante é fazer o bem em comum, compartilhar algo. Dizia
Saint-Exupéry, o autor d’O Pequeno Príncipe, numa outra obra, Terra dos Homens: amar-se não é olhar um para o outro; é
olhar juntos na mesma direcção. E eu comento, amar não é tanto um olhar
para o outro – pelo prazer de olhar a pessoa amada – mas sim consagrar-se a
algo valioso. Quando uma pessoa e outra realizam em comum algo valioso, isto as
une muitíssimo” (Quintas: ).
Eu tenho a inocência de acreditar nisto, de que só há
encontro quando o que motiva o encontro é transpessoal, isto é, excede a soma
dos caracteres psicológicos em presença. É como uma equipa de futebol que
funciona tanto melhor quanto vale mais que a soma dos seus elementos
individuais. Shakespeare transcende-me, pode levar-me a anos de diálogo
apaixonado, já discutir O Código da Vinci
esgota-se numa tarde.
Terminava falando de como a escola pode promover ainda no
jovem a distinção entre o sistema dos objectos e a condição do âmbito,
conceito teorizada por Lopes Quintas, e crucial para a compreensão do
relacionamento interpessoal e o espaço do encontro inerente à criatividade.
Um jovem começa por ser ele e a sua rede de relações
mas, à medida que a vida adulta lhe funcionaliza o quotidiano, vai sendo empurrado
para o sistema dos objectos, isto é passa a encarar as realidades que lhe
aparecem como coisas, que podem ser analisadas por ele sem se
comprometer – as coisas tornam-se realidades objectivas.
Antes, ele não estava fora da realidade, a realidade era uma
banheira onde ele mergulhava e via a água a subir, estava comprometido, estava
imbricado na relação com a água e com os outros. Estavam em simbiose, ele e a realidade,
não estavam separados. Agora, já adulto, existe um sujeito e um objecto –
tornarmo-nos adultos é esta farsa de deixarmos de mergulhar na banheira para
comprarmos uma piscina que passamos a observar de fora porque sabemos que
quando mergulhamos nela já não damos pela subida da água.
O âmbito é o que torna reversível esta situação. «Pense-se num piano. Como móvel não passa de
um objecto. Mas como instrumento, que tipo de realidade apresenta? É uma fonte
de possibilidades. Ali ninguém manda em ninguém – não há um sujeito e um
objecto – mas o piano dá a possibilidade para criar uma obra e o intérprete dá
ao piano a possibilidade de que essa obra seja – é um enriquecimento mútuo. É
uma experiência com uma dupla direcção, e o piano deixa de ser um objecto para
ser um âmbito» (Quintas…).
O Picasso teve a mesma experiência quando viu por acaso um
selim de bicicleta ao lado de um guiador tresmalhado e percebeu que aquele
encontro inesperado desenhava a cabeça de um touro. Com isso fez uma nova
escultura, mas a transformação foi mútua pois esse encontro modificou o seu
olhar.
No plano das relações interpessoais, um âmbito é tudo o que
cria um nó de relações que nos transforma, pois passamos a sermos participes
criativos daquela realidade e não sujeitos passivos de um discurso ou de um
procedimento mudado em lei. Evidentemente que a poesia e a arte são os
territórios privilegiados para este jogo da reversibilidades que o
âmbito abre, pois como dizia o poeta brasileira Mário Quintana a poesia não
é uma fuga da realidade mas uma fuga para a realidade.
Só esta fuga “para a realidade” permite aos olhos, para
lembrar a citação de Clément Rosset, verem e aos ouvidos ouvirem, e ao nariz
cheirar, and so on, enriquecendo-nos com o múltiplo, com o que está em processo
à nossa frente. Talvez aqui convenha, como avisa Tadeu da Silva, nunca esquecer
que a multiplicidade é uma máquina de produzir diferenças, ao contrário da
diversidade que é estática e limita-se ao existente (Da Silva ). Com
a diversidade temos a tolerância; com o múltiplo o entusiasmo, o contágio, a
mestiçagem - o nosso compromisso no processo. Será uma forma de nos vincularmos
às (boas) virtualidades do futuro.
[2]
Cf. o texto “Heranças de Cam:
[3] Para as
deliciosas narrativas dos encontros dos europeus com os monstros e criaturas
fabulosas de outras paragens, consultar Mary Del Prior, Esquecidos por Deus / Monstros no Mundo Europeu e Íbero-
Americano (séculos XVI-XVIII), 2000, Companhia das Letras, São Paulo
[4]
cf. quanto a este aspecto da importância da
pontuação da sequência na comunicação interpessoal[4], Paul
Watzlawicz e alt.,1967, e para as culturas, Immanuel Wallerstein, Análises de
Sistemas Mundos
[5]
cf.para este problema: As Tendências da
Reconcentração e Recentralização do Poder Administrativo em Moçambique, de
Eduardo Chiziane, Kapicua, 2011
[6] Para uma análise deste conceito, dos seus efeitos e
aspectos concomitantes consultar Marc Augé: Non-lieux.
Introduction á une anthropologie de la surmodenité, Edition de Seuil, 1992, Pour une
Anthropologie des Mondes Contemporais, Aubier, 1994; La Guerre des rêves: exercices d’ethno-fiction,
Éditions du Seuil, 1997
[7]
António de Oliveira Salazar, o ditador português que governou o país cerca de
40 anos, foi, nos últimos três anos, considerado o «português mais ilustre do
século XX», primeiro num inquérito promovido pelo semanário Expresso, o maior do país, e
recentemente numa sondagem que tinha o mesmo fito, “achar” o “português do
século” na RTP, a estação de televisão do Estado.
Sem comentários:
Enviar um comentário