Em Dezembro de 2011, o arquitecto e crítico de arte Manuel Augusto Araújo escreveu no seu blogue, Praça do Bocage (pracadobocage.wordpress.com), o texto que segue em baixo sobre A Maldição de Ondina, o meu romance publicado no Brasil e que conheceu agora, finalmente, a sua edição portuguesa:
Não tem título porque não consigo
encontrar um título que exprima a minha perplexidade, para não usar ou
acrescentar outro adjectivo. Chega-me às mãos um recorte do Guia da Folha de
S.Paulo, o mais lido no Brasil e com circulação nacional, com uma crítica
literária que destaca “A Maldição de Ondina” de António Cabrita,
em que o crítico literário Nelson de Oliveira, um dos mais conceituados do
Brasil, o considera Imperdível! e lhe atribui a classificação Óptimo!
Por cá, o livro não existe. Quem o
quiser ler terá que encomendar pela internet ou numa livraria com ligações ao
Brasil, onde foi editado pela LetraSelvagem.
Não deixa de ser estranho que um livro
de um autor português não seja publicado por uma editora nacional e que faça,
posteriormente, o seu caminho no Brasil. Não se conhecem autores brasileiros
que tenham feito esse percurso.
António Cabrita está há seis anos em
Moçambique, onde ensina no Instituto de Cinema e desenvolve intensa actividade
nos meios culturais desse país. Entre outras coisas da sua sempre vulcânica
agitação intelectual, alimenta um blogue interessantíssimo. Escreve muito e
escreve bem. Um dos seus últimos livros, de literatura infanto-juvenil, “O Pastor de Ventos”, é uma
obra-prima. Passou quase sem uma referência tal como “Tormentas de Tintin
e Mandrake no Congo”, um retrato carregado de humor de uma geração que
deambula entre amores e desamores, bons e maus costumes e que, de quando em
vez, é varrida por transes melancólicos.
O que aconteceu agora ainda é pior. Não
encontrou editor em Portugal para a “A Maldição de Ondina”. Bateu
a várias portas onde delicadamente, isto é tudo gente de refinada educação, foi
posto do lado de fora. Alguns até permitiram que pusesse o pé lá dentro, numa
insinuação que o deixariam entrar se seguisse sábias recomendações de
carpintaria que tornariam o livro publicável. Umas aplainadelas na truculência.
Aligeirar o peso do texto, que isto do peso imaterial dos livros é muito pior
que o seu peso real, veja-se a quantidade de confitables books, para os mover
quase exigem meios mecânicos, que se vendem como milho na época de envernizar
de cultura o natal. Arrancar uns pregos que podiam ferir os dedos do leitor
arrasado por intertextualidade e referencias que continham o perigo oculto de
curto-circuitar as milhares de conexões sinápticas entre os biliões de
neurónios do leitor médio português. Perigo de catástrofe nacional a somar à
catástrofe em curso, orquestrada pela troika internacional e seus serventuários
lusitanos, desastre iminente que nem o anticiclone dos Açores alimentado a
espinafres seria capaz de deter, pelo que os diligentes editores teriam que
actuar preventivamente. A protecção civil também passa pela literatura.
Um sobressalto. Que raio será esse
animal: leitor médio português! Pela quantidade de títulos que são publicados e
a não correspondente qualidade, pelas listas dos tops poder-se-á ter uma ideia
do que será o leitor médio de um país onde a iliteracia é o que se sabe (é
fazer uma passagem rápida pelas centenas de comentários às noticias dos jornais
desportivos – três jornais desportivos diários com tiragens arrasadoras, um
record europeu talvez mesmo mundial depois de tratamento estatístico), onde os
escritores que mais vendem têm a extraordinária peculiaridade de não saberem
escrever.
No meio de tanto papel impresso, livros
magníficos de várias literaturas mas também livros de escritores que são
excelentes escritores mas de quem se publica tudo e mais alguma coisa, muita
dessa coisa é despicienda só salta para os escaparates com canina esperança
editorial nos compradores desavisados que irão ferrar o dente não no conteúdo
mas no nome do autor. Livros de ensaios nas mais diversas áreas, completamente
descartáveis, em que os que derramam o pensamento são mais astrólogos que
investigadores ao lado de políticos a proclamarem inanidades e mais uns tantos
impudentes pensadores. Livros de auto-ajuda e transes esotéricos para
arredondar as esquinas da vida. Entre tantos livros bons, assim-assim e
assim-assado, para não falar dos livros que não são livros e que nem devem
cumprir bem o seu melhor uso endireitar mesas ou sofás coxos, não há espaço
para a “ A Maldição de Ondina”?
O leitor português não médio tem que ir
ao Brasil se o quiser ler?!
Não serei tão ditirâmbico quanto o
Nelson Oliveira, sou amigo do António Cabrita que fez o favor de mo enviar via
electrónica antes de ser impresso, não me ficava bem classificá-lo de
imperdível, mas “A Maldição de Ondina” é um dos melhores livros
em língua portuguesa publicados em 2011 e lá ficará para além da sua primeira
edição.
Não deixa de ser indignante que nada aconteça aqui, tudo aconteça do outro
lado do atlântico. É um livro a ler e que exige aos leitores portugueses um
esforço acrescido para o lerem por incúria do nosso concentrado editorial.
Enquanto por cá o silêncio continua a ser de chumbo, no Brasil as recensões
literárias sucedem-se. Leiam o posfácio de Adelto Gonçalves para melhor se
entender este inexplicável, mais um adjectivo cordato, buraco negro editorial.
Leia-se então o posfácio
de Adelto Gonçalves:
ANTÓNIO CABRITA E O FUTURO DA LUSOFONIA- Posfácio de Adelto Gonçalves
A África não dorme. Vive em eterna
vigília. Essa é a metáfora que explica A Maldição de Ondina, do
português-moçambicano António Cabrita (1959), livro que tem tudo para empolgar
o leitor brasileiro não só por suas qualidades literárias como pelas marcas de
várias culturas afins ao Brasil que impregnam suas páginas. Como toda boa
metáfora, o título A Maldição de Ondina tem duplo sentido. Ou seja,
explica o fenômeno que faz parte da natureza intrínseca dos golfinhos,
mamíferos que não podem dormir jamais, já que, para sobreviver, necessitam vir
à tona de cinco em cinco minutos para respirar. E, portanto, não podem esquecer
a condição em que vivem, sob o risco de desaparecerem.
Não se pode esquecer que a referência à
Ondina, ninfa das águas na mitologia germânica, serve também para qualificar
uma rara síndrome – em 2006, havia apenas 200 casos conhecidos no mundo –,
cujas formas graves exigem que a pessoa receba ventilação mecânica 24 horas por
dia. Ou seja: vigília ininterrupta.
Mas explica também o sentir e o estar
africano ao longo dos séculos. Um povo – feito de muitas nações, etnias e
tradições milenares – que está condenado à permanente vigilância, diante
daqueles povos que se mantêm sempre à espreita para espoliá-lo, como fizeram os
europeus por séculos a fio. E, agora, ao que parece, fazem os chineses, os
colonizadores do século XXI, que estão a explorar as florestas do Norte de
Moçambique até o ponto de transformá-las em vasto deserto. Sem esquecer aqueles
que saem do próprio povo africano – que, afinal, é resultado de muitas e
distintas etnias – e que, no poder, acabam também por espoliá-lo. Mas essa não
é uma característica do africano, mas da espécie humana, seja lá qual for a sua
matiz de cor.
Portanto, não se quer dizer aqui que, se a África tivesse ficado imune à presença do europeu e de povos como indianos, hindus, goeses, mouros, cojás e tantos outros que a assolam desde tempos avoengos, teria tido um destino melhor. Ou que, hoje, seria um continente sem problemas, um paraíso terrenal em que Deus pudesse passear tranqüilo no jardim pela viração do dia.
Portanto, não se quer dizer aqui que, se a África tivesse ficado imune à presença do europeu e de povos como indianos, hindus, goeses, mouros, cojás e tantos outros que a assolam desde tempos avoengos, teria tido um destino melhor. Ou que, hoje, seria um continente sem problemas, um paraíso terrenal em que Deus pudesse passear tranqüilo no jardim pela viração do dia.
Pelo contrário. É provável que estivesse
imerso em mais obscurantismo, ao menos sob o prisma da visão eurocêntrica que
nunca iremos perder. Não é isso o que se contesta aqui: até porque essa é uma
opção irreme-diavelmente perdida na História. E que remete ao lamento do poeta
Manuel Bandeira (1886-1968) sobre a vida que podia ter sido – e que não foi.
A África é o que é hoje. E ponto final.
Entrecruzamento de raças e etnias, suas mazelas – a miséria de muitos povos, a
falta de perspectivas para muitos, a opressão de uma classe sobre outras – são
iguais às de todos os homens que vivem na Terra – uns mais, outros menos. Uma
espécie de Brasil nenhum pouco às avessas. Se aqui o partido que se dizia de
esquerda e defendia os oprimidos chegou ao poder pelas vias da democracia
chamada burguesa e, naturalmente, não o quer largar, ainda que tenha de
recorrer a meios inconfessáveis, ao estilo das antigas máfias napolitanas, lá o
partido dos oprimidos, a Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo), alcançou
o poder pela força das armas, depois de ter, primeiro, colocado o colonialismo
para correr e, em seguida, em meio a anos de contendas e mortandades, destruído
pelos fuzis adversários que tinham os mesmos objetivos.
No poder, num congraçamento entre
“marxistas-leninistas arrependidos” e oportunistas incrustados nas máquinas
partidárias, tanto lá como cá, os partidos e seus dirigentes logo esqueceram os
miseráveis que tanto defendiam, deixando-se levar pelas delícias do dinheiro
fácil das grandes corporações nacionais e internacionais, que, afinal, ninguém
é de ferro e a vida é uma só e tem de ser vivida à larga, ainda que à custa da
dilapidação do patrimônio público, da corrupção generalizada, do gangrenamento
da vida da nação e da destruição dos bens naturais do país. Tudo em troca de
“consultorias”, “sobras de campanhas” ou “numerário não contabilizado”,
conhecidos eufemismos brasileiros para a maldita taxa de corrupção e outras
formas de enriquecimento ilícito. Obviamente, sempre revestidas por “bazófias
patrióticas”, como diria o autor.
É o que se pode sentir neste romance de
Cabrita, um retrato de uma África pouco conhecida no Brasil, mas facilmente
reconhecível, que se desenha na vida de meia dúzia de personagens: César,
luso-moçambicano, professor e escritor de romances policiais; Raul, amigo de
César, policial; Beatriz, mulher de César e professora universitária na área de
Literaturas Africanas; Argentina, concubina de César por dez anos e gestora
numa ONG; Aurora, antiga ama-seca de César e sua cozinheira; e Filipa, irmã de
César e médica. Além de outros personagens secundários apenas citados, como a
famosa atriz Rita Hayworth (1918-1987), estrela de Gilda (1946), que, entre
outros casamentos, viveu com o príncipe Aly Khan, de 1949 a 1953, num palácio
na Ilha de Moçambique, para quem, no romance, Aurora – provavelmente, macua ou
maconde – teria prestado serviços culinários.
Por trás de tudo, um pano de fundo
facilmente reconhecível: uma estrada de terra batida é aberta só para que
presidentes (das câmaras) de duas cidades e secretários do partido se visitem;
um presidente da câmara de Maputo é atropelado de modo acidental, mas ninguém
acredita na versão oficial; enfim, crimes que nunca se explicam, como aquele
com o qual o policial Raul se vê às voltas com investigações a respeito de
pessoas que desviaram dinheiro para o partido, mas para os quais o partido
volta as costas. Como nesse tipo de regime o agente policial anda sempre sobre
o fio da navalha, dependendo das facções que estão no poder, Raul trata de
colocar as barbas de molho, pois teme que o seu fim possa estar próximo. E pede
a César, que nunca teve filhos, que leve o seu “miúdo daqui para fora”, pois
não quer que fique com a mãe, em Quelimane, pois “isso seria condená-lo a uma
vida medíocre...”. (pág. 159).
Observador arguto do linguajar
moçambicano, Cabrita constrói os diálogos com fidelidade à oralidade, o que
permite suspeitar que, em pouco tempo, o idioma de Camões estará totalmente substituído
pelo de Shakespeare não só em terras que foram do sultão Mussa Bin-Mbiki como
em todo o antigo e vasto império Monomotapa e nas antigas terras do reino do
Ndongo, cobrindo todo o “mapa cor-de-rosa” imaginado, um dia, pelos
colonialistas lusos. Até porque a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa
(CPLP), como organismo internacional, não passa de uma bela fantasia. E, até
prova em contrário, pouco faz em defesa da lusofonia. Que o digam os rebeldes
da Casamansa, província do Senegal, que desde 1982 empreendem uma inglória
guerra de guerrilha para se livrar da opressão do governo de Dakar e virar país
independente na órbita da CPLP.
Cabrita nasceu português de quatro
costados, pois é do Pragal, freguesia do concelho de Almada, cidade do distrito
de Setúbal, que fica à entrada do rio Tejo, em frente a Lisboa. Mas, como
muitos de seus ascendentes, achou de tentar descobrir na África, não a árvore
das patacas dos quinhentistas, porém outra maneira de viver. Quem sabe, menos
morna e asséptica, porque sob o sol africano e em meio a ameaças físicas e até
contagiosas. Como gosta de viver na contramão, foi para Maputo há poucos anos,
a uma época em que raros lusos se dispõem a ir para a África e os que de lá
retornaram choram até hoje o “império colonial derramado”. Não se arrependeu,
pois encontrou material, o chamado “tecido da vida”, para escrever novas e
surpreendentes histórias como estas que o leitor brasileiro tem a oportunidade
de conhecer.
O que se lê neste romance, para quem
conhece a vida nas favelas e subúrbios das grandes e médias cidades
brasileiras, não haverá de surpreender. Talvez uma ou outra expressão autóctone
que o escritor esclarece devidamente em notas de rodapé. Um personagem era bem
visto pela comunidade porque colocara a filha a estudar – já estava na 11ª
classe –, ainda que o seu verdadeiro negócio fosse o tráfico. Outro, que exibia
uma cara da ratazana, tinha duas mulheres e nove filhos e vivia de biscates. Um
terceiro, professor primário, fora abandonado pela mulher, depois de tê-la
espancado até quase à morte, com oito meses de gravidez, por causa de ciúmes do
pastor.
Em meio a uma natureza paradisíaca, a
violência doméstica é corriqueira em algumas aldeias, onde o isolamento parece
enlouquecer os homens. “As pessoas catanavam-se à primeira, por medo, cativos.
À mínima tensão o marido acusava a mulher de feitiço e a família dele acabava
por cataná-la, a cobro da noite (...)”, diz Beatriz (pág. 200). Catanavam-se,
ou seja, cortavam-se com facão.
O estilo de Cabrita é de fácil e envolvente
leitura, ainda que os capítulos em flash nem sempre permitam acompanhar o foco
da narrativa ou o fio-condutor da trama com facilidade, exigindo novas e
detidas leituras. O texto, porém, vale por si mesmo, pois não deixa de explorar
todas as técnicas desenvolvidas pelos grandes mestres da literatura. Com
mestria, Cabrita recorre ao discurso indireto livre sempre que pode: “(...) A
sua mãe, farta daqueles modos, resolvera voltar a casa e levar as crianças,
advertindo-a na porta, esta gente não presta, se armarem confusão fala com o
polícia do sétimo”. (pág. 19).
A história, porém, é conduzida em torno
de César, uma espécie de alter ego do autor, professor, intelectual que
vive rodeado de livros, casado com Beatriz, mas que teve uma amante com o
sugestivo nome de Argentina. Filho de “boa família portuguesa”, que é como se
diz daquelas famílias que conseguiram amealhar um bom patrimônio e dinheiro no
banco, César não hesita em chantagear o pai, em troca de que este o deixe levar
consigo a amante negra para com ele estudar em Lisboa. Afinal, o pai sabe que
ele sabe de sua segunda mulher, “a quem instalara casa nas Torres Vermelhas, em
Maputo”. O silêncio vem “em troca de uma passagem para Argentina e de um
aumento chorudo na mesada”.
Se não conseguiu entrar no curso de
Direito como o pai ansiava, enquanto Argentina concluía o de Economia, César
ganhou fama com seu primeiro romance policial, a que se seguiram outros. Quando
se sentia secar por dentro, retornava a Moçambique em busca de reciclagem e
renovação. Depois de anos com Argentina como amante, resolve casar a sério com
a professora Beatriz, talvez em busca de uma união estável. Mas aqui não há
como deixar de pensar que, para ele, as “pretas” só servem como amantes, ainda
que Argentina seja uma mulher extremamente culta. Ranço do racismo
colonialista, quem sabe. Mas, quando o casamento com Beatriz entra na fase
morna, César volta a Moçambique, atrás novamente de Argentina, que, a essa
altura, também voltara para a África de olho num mestrado no Zimbábue.
Quando está às vésperas de reatar com Argentina, quem sabe para finalmente constituir uma família e uma velhice tranquila para ambos, o destino o leva para outro rumo. Por lealdade a Raul – morto numa cilada em Quelimane, provavelmente por um colega de profissão, vítima de alguma intriga política –, terá de assumir o filho do outro para colocá-lo longe da África. E garantir-lhe uma vida melhor.
Quando está às vésperas de reatar com Argentina, quem sabe para finalmente constituir uma família e uma velhice tranquila para ambos, o destino o leva para outro rumo. Por lealdade a Raul – morto numa cilada em Quelimane, provavelmente por um colega de profissão, vítima de alguma intriga política –, terá de assumir o filho do outro para colocá-lo longe da África. E garantir-lhe uma vida melhor.
Eis a metáfora de volta: na África nunca
ninguém poder dormir, o que significa que não se pode esquecer o passado, essa
assombração que vai aonde quer que se vá. Em outras palavras: como não podem
esquecer o que lhes fizeram, os africanos não conseguem superar o ressentimento
e atingir o perdão. Nem perdoar os outros nem a si mesmos. Essa é a maldição
que paira sobre a África. A maldição de Ondina.
________________
* Adelto Gonçalves é doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de
São Paulo e autor, entre outros, de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio
de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova
Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002) e Bocage - o Perfil
Perdido (Lisboa, Caminho, 2003)
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