Em carta a um amigo japonês, Kuniich Uno, escreveu Deleuze, sobre como se sucedia a sua colaboração com Guattari, com quem urdiu três livros nucleares, O Anti-Édipo, Mille Plateux, e O que é a Filosofia:
«Pouco a pouco, um conceito tomava uma existência autónoma, de modo que por vezes nós continuávamos a compreendê-lo de maneira diferente - por exemplo, nunca compreendemos da mesma maneira o “corpo sem órgãos”. Nunca o trabalho a dois tendeu a uma uniformização, sendo mais uma proliferação, uma acumulação de bifurcações, um rizoma».
Raramente vimos manifesta uma liberdade tão viva e uma tão expressa paixão pelo múltiplo. Os dois pensadores colaboravam para poderem convergir e divergir, numa pulsação contínua, sem receio de se contradizerem ou necessidade de afinarem os argumentos, até apararem as linhas de fuga.
Nunca lhes passou pela cabeça a disputa ou a necessidade de domínio na relação e, de imediato, prescindiram da supérflua tentação de armar os argumentos para terem ou não ter razão; pelo contrário, sem reservas, numa porosidade em acto, a aventura de penetrarem em espaços desconhecidos (os que “a resistência” do outro abria na escuta de cada um, com a maravilha duma nova perspectiva alargar o âmbito, perspectivar-se na projecção de novos conceitos ou na súbita ambivalência do pensamento que se julgava “fechado”) tornou-se prioritária.
Eis uma colaboração que prescindia de negociação, porque o conflito estava desactivado de antemão, não havia confronto entre forças/opiniões polarizadas, não se tratava de uma dialéctica, mas de estar aberto a um fluxo que faz das suas sombras matéria para, como Deleuze diz, numa exaltante proliferação, modelar o pensamento pela virtualização do múltiplo.
Testemunhamos aqui um verdadeiro “encontro”, que activou a possibilidade de cada um deles - face a face, nesse diálogo que ia tecendo o seu próprio percurso - superar as fronteiras de um pensamento condicionado pela inércia da opinião. O que só pode acontecer quando seguimos as linhas da água e à “vontade” preferimos o “impoder”.
O contrário do que defende Bertrand de Jouvenel, no seu livro basilar sobre o Poder, para quem “um homem sente-se mais homem quando se impõe e faz dos outros um instrumento da sua vontade”, atitude que é hoje a mais comum e, lamentavelmente, a única disseminada.
O “impoder”, contudo, esclareçamos, não é um signo de impotência mas um reforço da potência que nasce da liberdade a si mesmo e às marcas de representação. O que talvez explique que Michel Serres tenha dito de Deleuze que era o único caso que conhecia de alguém a quem o pensamento trazia felicidade.
A mesma liberdade também se patenteava no jesuíta Richard Wilhelm, tradutor do «I Ching» para o Ocidente, ilustrada quando afirmou que aquilo que mais se orgulhava na vida fora, em trinta anos de missionarismo na China, nunca ter feito uma conversão ao cristianismo.
É desta grandeza humana que estamos necessitados, da qualidade de gente que se dispõe à luta para “não ter poder”.
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