O único desgosto que Murilo Mendes (1901-1975) me deu na
vida foi informar-me que René Char detestava Michaux. De resto, com as suas
mãos repletas de milagres, sempre me encantou. É, com Jorge de Lima, o meu ‘béguin’
brasileiro. Não há hipóteses de jogar à defesa com ele, ainda agora abri ao
acaso uma página e saiu o seu “retrato-relâmpago” de Homero, que termina assim:
«O vento analfabeto atira-lhe pedras». E fica-se desdentado de saber que uma
imaginação assim é rara. Para o parafrasear, quando a gente acorda de bom humor
é sinal de que está em Murilo.
TEXTO DÉLFICO
(fragmentos)
Nas sandálias da manhã o pássaro sem poeira.
O povo dá à fantasia o que o povo não lhe dá.
Acontece que os deuses mandam discar um número, mas o
telefone está ocupado: outro recebe a chamada.
Ao largo do horizonte circulam águias: “os deuses pegam-nas
como moscas”.
Os deuses passam o passado e o presente a reconstruir
fragmentos do futuro.
Tenho fome de pedras, diz Rimbaud. Sirvam-lhe fragmentos do
Parténon, mesmo requentados. Ou de qualquer outra pedra anónima, ainda fria, de
Delfos, Delos ou não.
O grande oliveiral olhiverá? Já que olhiviu a paz.
A silenciosa aguardente dos deuses.
Os deuses jejuam de pão e tudo mais. Menos de metáfora.
A cem metros de qualquer ponto está o Oriente.
Os deuses vingam-se dos homens, morrendo.
A glória do diamante impede a borboleta de dormir.
O agouro, agora na ágora, agrega os agressores.
O oráculo não tem pés.
Tomar o remo em qualquer parte – inclusive no mar.
As sombras de vez em quando perdem-se umas das outras.
O cérebro do cérbero, caos latindo.
O sol visto ao microscópio esperneia.
As esferas dormem. Os triângulos vigiam.
Bebi da vida. Suportei dos deuses. Acrescento-me da morte.
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