A demissão de Portas era “irrevogável” para a sua
consciência mas não “impreterível” para o país, daí o volte-face. Na verdade,
lendo a sua declaração de demissão na íntegra não encontramos aí nada de
irrevogável, i.é, de irreparável, para além da ameaça do adjectivo – nada mais
que um signo flutuante. É um texto contido, educado, tão calculado que não
existe nele uma aresta, um imprevisto, um adjectivo imperdoável, aquele pequeno
excesso de humano – furor e vergonha - que encontramos em todos os divórcios.
Não, este era dominado como a
esteira rolante que imprime um ritmo uniforme. Ora, não é possível a alguém
zangar-se de facto sem que um mínimo da sua respiração se altere. A não ser que
não esteja zangado de facto e só queira mostrar que está. Aí escolhe uma
palavra oca como uma noz bichada e mete-a em cima da mesa. Espectáculo. Azar
dos outros se depois a noz afinal está vazia.
«Entretanto – leio em Hannah Arendt –, é função de toda a
acção, como distinta do mero comportamento, interromper o que, de outro modo,
teria acontecido automaticamente, tornando-o previsível». Repare-se na
distinção que a autora faz entre acção e comportamento, que é importantíssima
para o élan político e os seus efeitos.
É aqui se manifesta a diferença entre Passos Coelho e Paulo
Portas: Passos Coelho está absolutamente obcecado com o comportamento, tomou
para si um desígnio e segue-o obedientemente sem concessões, por isso foi
incapaz de escutar as razões de Portas para a escolha de Maria Albuquerque.
Portas é de outra inteligência – ele sabe que de vez em quando é preciso
interromper o processo para que a acção tenha lugar, e a sua via ser inesperada
só lhe dá força. É o que acontece agora – ele volta e Coelho está refém, e o
país, que ficou refém da sua demissão irresponsavelmente grandiosa fica agora
cativo pelo grandioso sacrifício com que volta, apesar da sua consciência. Ah,
heroicidade!
Numa coisa ele tem razão – o que falta à vida política de
hoje é acção. É tudo previsível. A oposição unicamente reage à agenda do
governo, e nas redes sociais só parece haver uma única vontade: derrubar o
governo. Não passam de comportamentos. E por isso estão as redes sociais
dependentes dos mais inaparentes flatos. Não há um grama de invenção política,
só anedotas e opinião. Só Portas parece perceber a força e a mobilização do
inesperado.
Por isso pôs todo o mundo a falar dele, e um terço a
pedir-lhe que voltasse. Debaixo de tantas luzes as sombras não são possíveis e
por isso o que era um recorte – a irrevogabilidade – deixa de o ser. Ou seja, o
seu golpe de teatro torna-se destino porque lhe dão importância. E não
interessa se vai voltar realmente ao governo ou se fica nos bastidores a
manobrar os cordéis – a vitória é sua.
Haverá quem se indigne com o descaro de Portas e os seus
volte-faces, como se ainda estivéssemos numa época de homens com carácter. A
tipologia agora é outra, o gesto, a dignidade, a honra já não organizam
sentidos; agora, como diria o Sócrates, a “narrativa” justifica tudo. Não
interessa mais se a moral se torna lábil, a narrativa dará um remate feliz à
soma de vergonhas. O importante já não é ter uma moral mas parecer ser o dono
da sua narrativa.
Daí a importância que se dá no facebook às opiniões e aos
likes – é o modo de cada um decalcar uma ilusão de protagonismo num
comportamento tribal: protesta-se protegido por um sentimento de unanimidade. Mimeticamente.
No mesmo impulso com que Passos Coelho imita o desígnio que traçou para si. E numa
adição de curiosos pensamentos e emoções diferidas, que não se vive mas se
“partilha”.
O que era necessário para que a gente que pulula hoje na
política fosse varrida? O contra-golpe narcísico.
Se durante uns meses as pessoas calassem a sua gritaria em relação à espuma política os políticos ao princípio achariam que tudo estava bem no reino da Dinamarca e depois começavam a assustar-se porque não sabiam do seu imago e ninguém lhes apontava o cheiro fétido.
Ao fim de seis meses, com o medo de se terem tornado realmente irrelevantes, tomavam banho para parecerem iguais aos outros, porque o mimetismo governa, infelizmente, todas as relações humanas.
Como os cães do Pavlov estamos reféns da reflexividade entre o FB e a política e aí temos os Portas e Coelhos que merecemos e as carraças voltam porque sentem que fazem falta a quem se coça.
Se durante uns meses as pessoas calassem a sua gritaria em relação à espuma política os políticos ao princípio achariam que tudo estava bem no reino da Dinamarca e depois começavam a assustar-se porque não sabiam do seu imago e ninguém lhes apontava o cheiro fétido.
Ao fim de seis meses, com o medo de se terem tornado realmente irrelevantes, tomavam banho para parecerem iguais aos outros, porque o mimetismo governa, infelizmente, todas as relações humanas.
Como os cães do Pavlov estamos reféns da reflexividade entre o FB e a política e aí temos os Portas e Coelhos que merecemos e as carraças voltam porque sentem que fazem falta a quem se coça.
(Chiça, que hoje acordei com os vóltios do avesso, amanhã
hei-de voltar a achar que o fb é um fórum necessário e que toda esta
verborreia: atchim…)
Perdoa-me o melodramatismo mas achas que este género de “contra-golpe narcísico” é uma expressão civilizada da “Banalidade do Mal” de que Hannah falou?
ResponderEliminarPorque é que esta análise não está publicada na imprensa portugalesa?
Caro amigo, gostei de ler.
ResponderEliminarUm grande abraço.
FC
não, meu caro anónimo, uma coisa não tem nada a ver com outra... quanto à segunda questão a pergunta não me deve ser endereçada mas à imprensa portuguesa.
ResponderEliminarabraço
Olá eu sou o Hugo, não sabia como contata-lo por isso escrevi este comentário. A professora de portoguês Rosa Alice, não é minha professora mas eu a conheço disse me para eu falar com o senhor,o assunto é, eu escrevi um livro 86 paginas sem contar com a ilustração. Enviei para a edtora Chiado e eles aceitaram publicar, mas eu preciso de mil e dzento. e 70 e tal euros (1273 acho que é 73) e então era para saber se havia uma editora que fazia mais barato, disse me para eu experimentar. Nesse momento estou a tentar participar na DRAC a ver se dão eles o apoio, não sei se vão dar. Muito abraços e fico á espera de resposta e já agora bom trabalho com o blog.
ResponderEliminardesculpa aqui deixo o meu email hugomachado-1@hotmail.com
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