O Nazir Can, um jovem académico que se graduou em Barcelona e que agora pertence aos quadros da USP de S. Paulo, ainda não
tinha desaguado nos 30 quando, há cinco anos, desembarcou um dia em Maputo por
causa de uma investigação que o levaria a escrever, um ano depois, uma
magnífica tese de doutoramento sobre a obra de João Paulo Borges Coelho, e que
neste momento está no prelo, em Portugal e em Moçambique.
Foi um encontro de grande empatia e
ficámos amigos e por isso quando se pôs a hipótese de publicar A Maldição de Ondina, disse-lhe que
gostaria que fosse ele a escrever um posfácio para Portugal. É o que sai na edição
da Abysmo e que aqui divulgo, embora
truncando o primeiro parágrafo:
Partindo
de vivências reais para homenagear as estórias literárias que se fundem nos
seus universos mentais, Cabrita congrega
e articula, no thriller policial A
Maldição de Ondina, diversos saberes: o histórico, antigo, imediato e
imaginado, i.e., dos tempos que “foram”, dos que “são” e dos que “poderiam ter
sido”; o político-social moçambicano, doente, alvo de contínuo diagnóstico; o
cinematográfico, infinito, paixão sempre revisitada; o fotográfico, envolvente,
que produz pausas em movimento no relato; o crítico-literário, sedutor, com os
seus apelos e aporias; o geográfico, eloquente, respirando história; e até
mesmo o gastronómico, metonímico, caracterizando-se pela transformação,
deglutição e reaparição. Tudo isso para celebrar, como referimos, o saber literário,
melancólico e abrangente, desencantado e desenfadado - o verdadeiro pai de
todos os outros.
Este
caldeirão de sabores, remexido com uma batuta experimentada, ganha forma por
via de uma estética que valoriza o abalo e a provocação, demandando uma reação,
cativa pela economia narrativa de alto pendor imagético, casando descrição e
reflexão, e fundamenta-se na musicalidade e no estilo, aliando o linguajar oral
(de Moçambique e de Portugal) à expressão escrita mais clássica. As epígrafes
de Aristóteles e de José Lezama Lima funcionam, pois, como uma pista, uma
espécie de índice programático da obra, visto que clamam pelo gesto poético,
mesmo quando este se socorre de atos reais e de ações verosímeis, e sintetizam
a condição do poeta que o agencia. Isto é, resumem o destino deste ser
abandonado que se deixa levar pela condição que lhe calhou em sorte e que,
nadando com as mãos amarradas num tonel de vinho, almeja tão-só a raiz das
coisas.
O
romance relata a história de César, escritor e professor universitário, do seu
amigo Raúl, que segue as pistas de um assassino em série (pelos vistos muito
letrado), da sua mulher Beatriz, professora universitária e investigadora de
literaturas africanas, da sua ex-mulher, a intelectualmente sedutora Argentina,
da sua irmã Filipa, médica, e ainda de Aurora, sua cozinheira. A partir desta
última personagem, e dos seus amores secretos com o maldito e irresistível
malgaxe Jean-Joseph (na própria cama em que o príncipe Ali Khan jurava
eternidades à diva do cinema Rita Hayworth, no palácio da Ilha de Moçambique),
o romance convoca ainda o fait-divers histórico
para, de certo modo, desvirtuá-lo, privilegiando o cariz enérgico e inesperado,
sensual e erotizado de um quotidiano que, ao contrário dos discursos sobre a
História, não é contido, não sabendo nem querendo domesticar-se.
O autor
surpreende o leitor desde a primeira página, sobretudo pela plasticidade de uma
linguagem capaz de produzir inopinados vaivéns entre a expressão mais clássica
e a mais coloquial. Ao ponto mesmo de torná-las massa da mesma matéria, e de
fazer confluir o significante no significado. Tudo isso através de uma rítmica
proveniente da poesia: “Não param de
manducar, de clamar por bebida, de vasculhar tudo na casa, metediços. A casa de
banho ficou ocupada vitaliciamente (descobriu que o mais novo penteia o bigode
com a sua escova de dentes), nos intervalos de emporcalharem lençóis, as
toalhas de mesa, os sofás, de ranho e merda e vinho e esperma. Mal acorda,
ainda enevoada, vê-os a adejar pela casa, sem decoro, os maxilares infatigáveis
com que retalham o dia, enquanto plangem guitarras nas marrabentas...” (p.
19). Enquanto estrangeiro em terras que têm o condão de espantar, o autor não
se abstém de refletir sobre a diferença cultural. Esta, porém, se mantém onde
lhe convém, i.e., precisamente no campo das diferenças: “O martelar da música
desde o primeiro dia, extravagando indiferente ao silêncio exigível a um luto,
ao recolhimento da viúva, punha às escâncaras a intrusão. Mas o quinhão de
infortúnio que a cada um é destinado viver é intransmissível, não lhe cabe
imiscuir-se” (p. 23). Para descrever a diferença, como se pode observar, o
narrador socorre-se de duas máximas sentenciosas, articuladas pelo fio musical:
a primeira afirmando a posição de perplexidade e desconforto da personagem
estrangeira; a segunda reconhecendo a inutilidade de referida posição num
cenário que lhe é diariamente outro.
A dita relativização não
envereda, no entanto, pela via fácil e politicamente correta do autor
metropolitano que faz ouvidos de mercador quando sobre África escreve. E isto
porque Cabrita não tem pejo em denunciar, satirizando, tudo aquilo que rechaça
neste recanto do mundo onde se decidiu inspirar: “Quem aterra em África dá conta, nos primeiros dias, de uma descomunal
expansão do instante. Uma hora ramifica-se em duas, é como a criança que
entrevê o Éden na porta giratória: nem se entra nem se sai (...) Entrasse
Ulisses num banco africano antes de regressar a Ítaca, já encontraria Penélope
casada” (p. 33). Daí que este romance faça um passeio elegante e eloquente,
por vezes mesmo aterrador, pelas insidiosas formas de violência e práticas de
poder existentes em Moçambique, esta terra que se transformou com o correr dos
tempos num “exército de órfãos” (p.
215): desde a violência de género que atravessa o país de lés a lés, e que é
acompanhada pelo desdém político e pelo eterno álibi da tradição (“Devem estar a chupar-lhe tudo, pensa,
malditas tradições. Vamos lá a ver se não a violam, à conta do kutchinga” – p. 23), passando pelas estratégias de manipulação da
autoridade (e do tal “comportamento de
fusão, de irrefletida unanimidade, que é uso na terra” – p. 45) e do
cíclico processo do qual esta última é motor e cúmplice activa (“As drogas, o tráfico de toda a ordem, serão
negócios dominados por Momade, o qual distribuirá as benesses por capangas,
clubes desportivos e Partidos, até que o ímpeto emergente de um rival lhe traga
os dissabores que agora administra” – p. 222), culminando nas rupturas
familiares mais cruas e inquietantes.
Para estas últimas, Cabrita
socorre-se de um arsenal metafórico original, cuja função, para além da
vizinhança de sentidos entre realidades díspares que está na origem deste
recurso, passa ainda por um roçar, ou mesmo por um escavar, do real mais
palpável e sorumbático: “Um mês depois o
marido envolveu-se num motim na prisão e foi abatido. Há dez dias. Separada do
seu homem há dez dias, por uma bala que lhe engarrafou a alma. Dez dias separam
a memória fresca do marido daqueles lábios grossos de sangue coagulado que
agora, de viés, pedem, insistentes: – Ma-ma-mã, pe-pe-ço sardinha!” (p.
21). O resultado catastrófico destes esquemas de exceção é sintetizado em
sentenças que, esvoaçantes por todo o romance, elucidam a solidão das
personagens e da sociedade em geral. Estas máximas constituem-se, além disso,
em autênticos achados de estilo e de significado: “É provável que não haja memória para além do sulco das feridas” (p.
60); “É difícil gerir tanta coisa à
distância. E pior ainda quando isso implica um sentimento que cava uma
distância de nós para nós mesmos” (p. 153); “Os judeus viveram o exílio na diáspora, o negro vive um perpétuo exílio
interior porque vive imerso numa imagem que perdeu a referência” (p. 186);
“há vários dias que sentia o seu coração
esfacelado pelo turbilhão de gaivotas que da sua janela via sobre a lota”
(p. 192).
Nesta narrativa ambiciosa,
composta por micronarrativas que se encaixam no texto-mãe, fazendo-o fluir e
outorgando voz, a espaços, a narradores outros, cabe ainda (como não?) a
reflexão sobre os processos de escrita: tanto da escrita que se aventura (“Descobrir como imprimir ritmo a uma frase é
um transe de que não se recupera e perdê-lo, deixar escorrer entre os dedos
esse tônico, faz ressoar um alarme similar ao do atleta que descobre que no seu coração mirra o
músculo papilar” – p. 46), quanto daquela que procura, sem encontrar, um
porto-seguro: “Agora, falta-me a linha, o
posicionamento, o vislumbre de guelra aberta numa frase eficaz e sinto-me um
remoinho estéril onde, a verdejar alguma coisa, não se avista cardume” (p.
47); tanto da escrita literária que fica aquém do re-presentado (“words, words, words, refratárias ao mínimo sopro de vida, à
imprevisibilidade com que o existente filtra a alma de um fundo amorfo” –
p. 59), quanto da escrita dos “intérpretes” literários, que desconhecem a
descoberta: “um exegeta literário nunca
terá a temeridade dos samurais, que teciam um haiku enquanto praticavam o
hara-kiri, nós estamos viciados em experiências diferidas” (p. 202). Obra
total, aberta, naquele sentido dado por Eco, i.e., plurissignificativa,
dinâmica, com uma estrutura que adapta e sustém as restantes estruturas que
emergem no/do seu interior, A Maldição de
Ondina põe o mundo à espera e, como compete à boa literatura, nada oferece
sem um retorno tácito. Neste audaz exercício meta-literário, realizado
minuciosamente por um autor com dotes de equilibrista que defere, i.e., que
traz algo de um lugar para outro, o leitor permanece em vigília, sendo também
ele convidado, ou forçado, a provar as várias facetas de uma mesma realidade. E
a incomodar-se.
Assim, em A Maldição de Ondina, notamos a veia do poeta no músculo do
romancista que, também aqui, num género literário distinto, mantém o afã de
sentir tudo de todas as maneiras. Veja-se, a título de exemplo, duas
manifestações radicalmente opostas do gesto erótico, este acto que, afinal de
contas, constitui por excelência a linguagem do corpo. O confuso e eufórico, de
Aurora e Jean-Joseph: “Jean-Joseph,
abeirou-se pé ante pé, na cozinha, apertou-lhe o seio enquanto a boca lhe
roçava o pescoço e a outra mão lhe subia as saias, numa decisão comandada por
espíritos. Aurora deslinda dois caminhos convergentes para a pulsação que lhe
umedece o sexo: ou grita, denunciando Jean-Joseph, o que era o mesmo que
separar a sua sombra a punção e martelo, ou cala, gemido a gemido, despendendo
o recato, enquanto da batedeira suspensa o chocolate escorre para o chão”
(p. 64); o ritmado e disfórico, de Argentina e Litos: “Litos penetra-a e entrança-lhe o corpo nos braços e Argentina ouve a
bola de basquete no piso de
cimento do campo de treinos, nas traseiras da casa. Argentina agarra-se ao
sincopado ritmo da corrida dos miúdos, aos seus gritos, ao sorvo de ar na
trajetória da bola, ao repique da bola, saltitante, suspensivo, no arco do
cesto. Argentina procura adivinhar o posicionamento dos jogadores, a sua
evolução no campo, a natureza das faltas, o jogo das mãos no despique do
esférico, enquanto Litos a embucha poro a poro, nem reparando que ela está meio
seca, tão seca como o baque da bola quando rebenta” (p. 141). O denominador
comum desta constelação de sensações contrapostas é a expressão, de quilate
superior, repleta de imagens (esta “fantasmata” sem a qual, no dizer de
Aristóteles, não é possível a memória), de associações (sem as quais não é
possível a comunhão de sentido) e de ritmo (sem o qual não é possível a
fruição), que criam o contorno necessário para a maceração silenciosa do
leitor.
Obra
de uma rara riqueza intertextual, capaz de fazer interatuar Baudelaire, Octavio
Paz, Camus, Shakespeare, Dickens, Juan Gelman, Cervantes, Melville e Pessoa
numa mesma cenografia, onde ainda cabem As
Mil e Uma Noites, Charlot, Felini, Mamoulian, Orson Welles, Monet,
Brueghel, etc., A Maldição de Ondina caracteriza-se, pois, pelo contato de
imaginários aparentemente díspares, pelo ritmo e destreza, pela plasticidade e
elegância, e pela crueza na denúncia; fundamenta-se ainda na economia poética,
ou seja, numa linguagem capaz de abarcar a riqueza ou a pobreza dos seres e das
coisas apenas e tão-só com as palavras necessárias. Neste sentido, um café da
capital, que resiste como pode às vicissitudes do tempo, é apresentado da
seguinte forma por um narrador cáustico: “Não
conhecia os meandros da história do café Continental, mas sempre lhe parecera
bizarro que o capitel das colunas fosse ornado de chocalhos e os azulejos
tivessem farfalhudas vacas estampadas, como se o dono do lugar quisesse
transmitir às pessoas que a sina da vida é condenar-nos ao estábulo, à condição
de bestas” (p. 96); já Quelimane, ou melhor, um dos seus bairros, é a
testemunha estripada, dezoito anos volvidos, da guerra civil: “Quadriculado convulso, uma cidade que
desaprendeu a mansidão, se desdobra aos baldões e se acama em escombros, aquela
parte recôndita de Quelimane – enegrecida pelas deficiências da iluminação
pública e por casas esventradas pelo desleixo dos homens e a erosão da guerra.
O asfalto fora há muito corroído pela lama e urina dos cães, a pontapé naquele
canto; tal como as folhas de jornal enlameadas que crianças sujas esgaravatam
num afinco inexplicável” (p. 213). Estamos perante lugares relegados,
subordinados pela história, e que, por respirarem de maneira diversa, são aqui
alvo de uma atenta diagnose; tal como algumas das personagens-figurantes deste
romance que, não sendo coral (não visa dar voz a ninguém a não ser a si mesmo),
outorga um olhar a tudo o que respira: “verdadeiramente
insólito era o seu olhar metálico, insondável, de quem desde tempos imemoriais
já só tem passado” (p. 121); “uma
mulher de pôr qualquer sentinela às avessas, uma mulata clarinha com sardas na
canela, boca carnuda e peitos ideais para vender a fiado” (p. 122); “um homem vestido de marinheiro, com galões
de oficial, e sem mais características de nota, além do cabelo extremamente
louro e fino, que apertava de têmpora a têmpora a abóbada calva do crânio, e da
barba ruiva, flamejante, em contraste com aquele magote de negros combalidos e
embrutecidos pela tristeza” (pp. 146-147).
A Maldição de Ondina é um cativante
exercício meta-poético, com uma cadência, uma musicalidade e uma seleção do
material discursivo a todos os níveis eficaz. O que retemos nestas leituras de Cabrita sobre África e sobre
o ser humano em geral é essa sua capacidade em aliar descrição e reflexão sem
nunca perder a mão sobre a narração (qualidade que o autor tanto admira em
outros escritores, mas que pratica tanto ou mais que os mesmos), essa ausência
(clássica) de pudor em sentenciar, atirando harmoniosamente em todas as
direcções (inclusivamente na que vai de si para si mesmo), essa experimentação
sobre a própria experiência, seja ela mundana ou artística (que, para o autor,
como se poderá notar, se alimentam mutuamente), sem contar os divertidos,
vivazes e tensos diálogos mantidos entre as personagens. E, claro, como todo
bom romance, A Maldição de Ondina não
podia deixar de exigir algo ao seu leitor – do leitor ativo, que estabelece um
pacto, obviamente; e não tanto daquele que desfruta do dado de borla das eventuais notas de rodapé. Àquele leitor,
dizíamos, lhe competirá resolver um espinhoso quebra-cabeças: como prosseguir
sem se atulhar no ressentimento e, simultaneamente, sem negar os factos?
Agudo no seu propósito ético e arguto na dinâmica
estética que o entretece, António Cabrita revela neste belo romance – que é
simultaneamente localizado e universal, que fala da memória e da
impossibilidade de esquecer, das marcas físicas e dos exílios interiores – os
inquietantes umbrais de um país que, no mínimo, contagia. E que de tanto
contagiar e de ser contaminado se tornou no pano de fundo de uma maldição metamorfoseada que o autor,
agora, trata de nos oferecer. Saudemo-la, pois, sem a esquecer. Porque, afinal,
“As coisas belas transformam aquilo que
em nós está ainda informe” (p. 154).
Para comprar:
http://www.abysmo.pt/livros/17-maldicao-ondina
Eu já encomendei. Encomende você também. Perdoe que de nada lhe serve (e se tem a haver com África, tenha a lata de ler também o que Adelto Gonçalves abaixo escreveu).
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