domingo, 21 de julho de 2013

ONDINA, O POSFÁCIO DA EDIÇÃO PORTUGUESA


O Nazir Can, um jovem académico que se graduou em Barcelona e que agora pertence aos quadros da USP de S. Paulo, ainda não tinha desaguado nos 30 quando, há cinco anos, desembarcou um dia em Maputo por causa de uma investigação que o levaria a escrever, um ano depois, uma magnífica tese de doutoramento sobre a obra de João Paulo Borges Coelho, e que neste momento está no prelo, em Portugal e em Moçambique.
Foi um encontro de grande empatia e ficámos amigos e por isso quando se pôs a hipótese de publicar A Maldição de Ondina, disse-lhe que gostaria que fosse ele a escrever um posfácio para Portugal. É o que sai na edição da Abysmo e que aqui divulgo, embora truncando o primeiro parágrafo:

 (…)

Partindo de vivências reais para homenagear as estórias literárias que se fundem nos seus universos mentais, Cabrita congrega e articula, no thriller policial A Maldição de Ondina, diversos saberes: o histórico, antigo, imediato e imaginado, i.e., dos tempos que “foram”, dos que “são” e dos que “poderiam ter sido”; o político-social moçambicano, doente, alvo de contínuo diagnóstico; o cinematográfico, infinito, paixão sempre revisitada; o fotográfico, envolvente, que produz pausas em movimento no relato; o crítico-literário, sedutor, com os seus apelos e aporias; o geográfico, eloquente, respirando história; e até mesmo o gastronómico, metonímico, caracterizando-se pela transformação, deglutição e reaparição. Tudo isso para celebrar, como referimos, o saber literário, melancólico e abrangente, desencantado e desenfadado - o verdadeiro pai de todos os outros.

Este caldeirão de sabores, remexido com uma batuta experimentada, ganha forma por via de uma estética que valoriza o abalo e a provocação, demandando uma reação, cativa pela economia narrativa de alto pendor imagético, casando descrição e reflexão, e fundamenta-se na musicalidade e no estilo, aliando o linguajar oral (de Moçambique e de Portugal) à expressão escrita mais clássica. As epígrafes de Aristóteles e de José Lezama Lima funcionam, pois, como uma pista, uma espécie de índice programático da obra, visto que clamam pelo gesto poético, mesmo quando este se socorre de atos reais e de ações verosímeis, e sintetizam a condição do poeta que o agencia. Isto é, resumem o destino deste ser abandonado que se deixa levar pela condição que lhe calhou em sorte e que, nadando com as mãos amarradas num tonel de vinho, almeja tão-só a raiz das coisas.

O romance relata a história de César, escritor e professor universitário, do seu amigo Raúl, que segue as pistas de um assassino em série (pelos vistos muito letrado), da sua mulher Beatriz, professora universitária e investigadora de literaturas africanas, da sua ex-mulher, a intelectualmente sedutora Argentina, da sua irmã Filipa, médica, e ainda de Aurora, sua cozinheira. A partir desta última personagem, e dos seus amores secretos com o maldito e irresistível malgaxe Jean-Joseph (na própria cama em que o príncipe Ali Khan jurava eternidades à diva do cinema Rita Hayworth, no palácio da Ilha de Moçambique), o romance convoca ainda o fait-divers histórico para, de certo modo, desvirtuá-lo, privilegiando o cariz enérgico e inesperado, sensual e erotizado de um quotidiano que, ao contrário dos discursos sobre a História, não é contido, não sabendo nem querendo domesticar-se.

O autor surpreende o leitor desde a primeira página, sobretudo pela plasticidade de uma linguagem capaz de produzir inopinados vaivéns entre a expressão mais clássica e a mais coloquial. Ao ponto mesmo de torná-las massa da mesma matéria, e de fazer confluir o significante no significado. Tudo isso através de uma rítmica proveniente da poesia: “Não param de manducar, de clamar por bebida, de vasculhar tudo na casa, metediços. A casa de banho ficou ocupada vitaliciamente (descobriu que o mais novo penteia o bigode com a sua escova de dentes), nos intervalos de emporcalharem lençóis, as toalhas de mesa, os sofás, de ranho e merda e vinho e esperma. Mal acorda, ainda enevoada, vê-os a adejar pela casa, sem decoro, os maxilares infatigáveis com que retalham o dia, enquanto plangem guitarras nas marrabentas...” (p. 19). Enquanto estrangeiro em terras que têm o condão de espantar, o autor não se abstém de refletir sobre a diferença cultural. Esta, porém, se mantém onde lhe convém, i.e., precisamente no campo das diferenças: O martelar da música desde o primeiro dia, extravagando indiferente ao silêncio exigível a um luto, ao recolhimento da viúva, punha às escâncaras a intrusão. Mas o quinhão de infortúnio que a cada um é destinado viver é intransmissível, não lhe cabe imiscuir-se” (p. 23). Para descrever a diferença, como se pode observar, o narrador socorre-se de duas máximas sentenciosas, articuladas pelo fio musical: a primeira afirmando a posição de perplexidade e desconforto da personagem estrangeira; a segunda reconhecendo a inutilidade de referida posição num cenário que lhe é diariamente outro.

A dita relativização não envereda, no entanto, pela via fácil e politicamente correta do autor metropolitano que faz ouvidos de mercador quando sobre África escreve. E isto porque Cabrita não tem pejo em denunciar, satirizando, tudo aquilo que rechaça neste recanto do mundo onde se decidiu inspirar: “Quem aterra em África dá conta, nos primeiros dias, de uma descomunal expansão do instante. Uma hora ramifica-se em duas, é como a criança que entrevê o Éden na porta giratória: nem se entra nem se sai (...) Entrasse Ulisses num banco africano antes de regressar a Ítaca, já encontraria Penélope casada” (p. 33). Daí que este romance faça um passeio elegante e eloquente, por vezes mesmo aterrador, pelas insidiosas formas de violência e práticas de poder existentes em Moçambique, esta terra que se transformou com o correr dos tempos num “exército de órfãos” (p. 215): desde a violência de género que atravessa o país de lés a lés, e que é acompanhada pelo desdém político e pelo eterno álibi da tradição (“Devem estar a chupar-lhe tudo, pensa, malditas tradições. Vamos lá a ver se não a violam, à conta do kutchinga” – p. 23), passando pelas estratégias de manipulação da autoridade (e do tal “comportamento de fusão, de irrefletida unanimidade, que é uso na terra” – p. 45) e do cíclico processo do qual esta última é motor e cúmplice activa (“As drogas, o tráfico de toda a ordem, serão negócios dominados por Momade, o qual distribuirá as benesses por capangas, clubes desportivos e Partidos, até que o ímpeto emergente de um rival lhe traga os dissabores que agora administra” – p. 222), culminando nas rupturas familiares mais cruas e inquietantes.

Para estas últimas, Cabrita socorre-se de um arsenal metafórico original, cuja função, para além da vizinhança de sentidos entre realidades díspares que está na origem deste recurso, passa ainda por um roçar, ou mesmo por um escavar, do real mais palpável e sorumbático: “Um mês depois o marido envolveu-se num motim na prisão e foi abatido. Há dez dias. Separada do seu homem há dez dias, por uma bala que lhe engarrafou a alma. Dez dias separam a memória fresca do marido daqueles lábios grossos de sangue coagulado que agora, de viés, pedem, insistentes: – Ma-ma-mã, pe-pe-ço sardinha!” (p. 21). O resultado catastrófico destes esquemas de exceção é sintetizado em sentenças que, esvoaçantes por todo o romance, elucidam a solidão das personagens e da sociedade em geral. Estas máximas constituem-se, além disso, em autênticos achados de estilo e de significado: “É provável que não haja memória para além do sulco das feridas” (p. 60); “É difícil gerir tanta coisa à distância. E pior ainda quando isso implica um sentimento que cava uma distância de nós para nós mesmos” (p. 153); “Os judeus viveram o exílio na diáspora, o negro vive um perpétuo exílio interior porque vive imerso numa imagem que perdeu a referência” (p. 186); “há vários dias que sentia o seu coração esfacelado pelo turbilhão de gaivotas que da sua janela via sobre a lota” (p. 192).

Nesta narrativa ambiciosa, composta por micronarrativas que se encaixam no texto-mãe, fazendo-o fluir e outorgando voz, a espaços, a narradores outros, cabe ainda (como não?) a reflexão sobre os processos de escrita: tanto da escrita que se aventura (“Descobrir como imprimir ritmo a uma frase é um transe de que não se recupera e perdê-lo, deixar escorrer entre os dedos esse tônico, faz ressoar um alarme similar ao do atleta que descobre que no seu coração mirra o músculo papilar” – p. 46), quanto daquela que procura, sem encontrar, um porto-seguro: “Agora, falta-me a linha, o posicionamento, o vislumbre de guelra aberta numa frase eficaz e sinto-me um remoinho estéril onde, a verdejar alguma coisa, não se avista cardume” (p. 47); tanto da escrita literária que fica aquém do re-presentado (“words, words, words, refratárias ao mínimo sopro de vida, à imprevisibilidade com que o existente filtra a alma de um fundo amorfo” – p. 59), quanto da escrita dos “intérpretes” literários, que desconhecem a descoberta: “um exegeta literário nunca terá a temeridade dos samurais, que teciam um haiku enquanto praticavam o hara-kiri, nós estamos viciados em experiências diferidas” (p. 202). Obra total, aberta, naquele sentido dado por Eco, i.e., plurissignificativa, dinâmica, com uma estrutura que adapta e sustém as restantes estruturas que emergem no/do seu interior, A Maldição de Ondina põe o mundo à espera e, como compete à boa literatura, nada oferece sem um retorno tácito. Neste audaz exercício meta-literário, realizado minuciosamente por um autor com dotes de equilibrista que defere, i.e., que traz algo de um lugar para outro, o leitor permanece em vigília, sendo também ele convidado, ou forçado, a provar as várias facetas de uma mesma realidade. E a incomodar-se.

Assim, em A Maldição de Ondina, notamos a veia do poeta no músculo do romancista que, também aqui, num género literário distinto, mantém o afã de sentir tudo de todas as maneiras. Veja-se, a título de exemplo, duas manifestações radicalmente opostas do gesto erótico, este acto que, afinal de contas, constitui por excelência a linguagem do corpo. O confuso e eufórico, de Aurora e Jean-Joseph: “Jean-Joseph, abeirou-se pé ante pé, na cozinha, apertou-lhe o seio enquanto a boca lhe roçava o pescoço e a outra mão lhe subia as saias, numa decisão comandada por espíritos. Aurora deslinda dois caminhos convergentes para a pulsação que lhe umedece o sexo: ou grita, denunciando Jean-Joseph, o que era o mesmo que separar a sua sombra a punção e martelo, ou cala, gemido a gemido, despendendo o recato, enquanto da batedeira suspensa o chocolate escorre para o chão” (p. 64); o ritmado e disfórico, de Argentina e Litos: “Litos penetra-a e entrança-lhe o corpo nos braços e Argentina ouve a bola de basquete no piso de cimento do campo de treinos, nas traseiras da casa. Argentina agarra-se ao sincopado ritmo da corrida dos miúdos, aos seus gritos, ao sorvo de ar na trajetória da bola, ao repique da bola, saltitante, suspensivo, no arco do cesto. Argentina procura adivinhar o posicionamento dos jogadores, a sua evolução no campo, a natureza das faltas, o jogo das mãos no despique do esférico, enquanto Litos a embucha poro a poro, nem reparando que ela está meio seca, tão seca como o baque da bola quando rebenta” (p. 141). O denominador comum desta constelação de sensações contrapostas é a expressão, de quilate superior, repleta de imagens (esta “fantasmata” sem a qual, no dizer de Aristóteles, não é possível a memória), de associações (sem as quais não é possível a comunhão de sentido) e de ritmo (sem o qual não é possível a fruição), que criam o contorno necessário para a maceração silenciosa do leitor.

Obra de uma rara riqueza intertextual, capaz de fazer interatuar Baudelaire, Octavio Paz, Camus, Shakespeare, Dickens, Juan Gelman, Cervantes, Melville e Pessoa numa mesma cenografia, onde ainda cabem As Mil e Uma Noites, Charlot, Felini, Mamoulian, Orson Welles, Monet, Brueghel, etc., A Maldição de Ondina caracteriza-se, pois, pelo contato de imaginários aparentemente díspares, pelo ritmo e destreza, pela plasticidade e elegância, e pela crueza na denúncia; fundamenta-se ainda na economia poética, ou seja, numa linguagem capaz de abarcar a riqueza ou a pobreza dos seres e das coisas apenas e tão-só com as palavras necessárias. Neste sentido, um café da capital, que resiste como pode às vicissitudes do tempo, é apresentado da seguinte forma por um narrador cáustico: “Não conhecia os meandros da história do café Continental, mas sempre lhe parecera bizarro que o capitel das colunas fosse ornado de chocalhos e os azulejos tivessem farfalhudas vacas estampadas, como se o dono do lugar quisesse transmitir às pessoas que a sina da vida é condenar-nos ao estábulo, à condição de bestas” (p. 96); já Quelimane, ou melhor, um dos seus bairros, é a testemunha estripada, dezoito anos volvidos, da guerra civil: “Quadriculado convulso, uma cidade que desaprendeu a mansidão, se desdobra aos baldões e se acama em escombros, aquela parte recôndita de Quelimane – enegrecida pelas deficiências da iluminação pública e por casas esventradas pelo desleixo dos homens e a erosão da guerra. O asfalto fora há muito corroído pela lama e urina dos cães, a pontapé naquele canto; tal como as folhas de jornal enlameadas que crianças sujas esgaravatam num afinco inexplicável” (p. 213). Estamos perante lugares relegados, subordinados pela história, e que, por respirarem de maneira diversa, são aqui alvo de uma atenta diagnose; tal como algumas das personagens-figurantes deste romance que, não sendo coral (não visa dar voz a ninguém a não ser a si mesmo), outorga um olhar a tudo o que respira: “verdadeiramente insólito era o seu olhar metálico, insondável, de quem desde tempos imemoriais já só tem passado” (p. 121); “uma mulher de pôr qualquer sentinela às avessas, uma mulata clarinha com sardas na canela, boca carnuda e peitos ideais para vender a fiado” (p. 122); “um homem vestido de marinheiro, com galões de oficial, e sem mais características de nota, além do cabelo extremamente louro e fino, que apertava de têmpora a têmpora a abóbada calva do crânio, e da barba ruiva, flamejante, em contraste com aquele magote de negros combalidos e embrutecidos pela tristeza” (pp. 146-147).

A Maldição de Ondina é um cativante exercício meta-poético, com uma cadência, uma musicalidade e uma seleção do material discursivo a todos os níveis eficaz. O que retemos nestas leituras de Cabrita sobre África e sobre o ser humano em geral é essa sua capacidade em aliar descrição e reflexão sem nunca perder a mão sobre a narração (qualidade que o autor tanto admira em outros escritores, mas que pratica tanto ou mais que os mesmos), essa ausência (clássica) de pudor em sentenciar, atirando harmoniosamente em todas as direcções (inclusivamente na que vai de si para si mesmo), essa experimentação sobre a própria experiência, seja ela mundana ou artística (que, para o autor, como se poderá notar, se alimentam mutuamente), sem contar os divertidos, vivazes e tensos diálogos mantidos entre as personagens. E, claro, como todo bom romance, A Maldição de Ondina não podia deixar de exigir algo ao seu leitor – do leitor ativo, que estabelece um pacto, obviamente; e não tanto daquele que desfruta do dado de borla das eventuais notas de rodapé. Àquele leitor, dizíamos, lhe competirá resolver um espinhoso quebra-cabeças: como prosseguir sem se atulhar no ressentimento e, simultaneamente, sem negar os factos?

       Agudo no seu propósito ético e arguto na dinâmica estética que o entretece, António Cabrita revela neste belo romance – que é simultaneamente localizado e universal, que fala da memória e da impossibilidade de esquecer, das marcas físicas e dos exílios interiores – os inquietantes umbrais de um país que, no mínimo, contagia. E que de tanto contagiar e de ser contaminado se tornou no pano de fundo de uma maldição metamorfoseada que o autor, agora, trata de nos oferecer. Saudemo-la, pois, sem a esquecer. Porque, afinal, “As coisas belas transformam aquilo que em nós está ainda informe” (p. 154).


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1 comentário:

  1. Eu já encomendei. Encomende você também. Perdoe que de nada lhe serve (e se tem a haver com África, tenha a lata de ler também o que Adelto Gonçalves abaixo escreveu).

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