sexta-feira, 29 de abril de 2016

MAGNÓLIA E DANTE / a parte maldita


A arrumar papeis redescubro este artigo que fiz sobre  o magnifico Magnolia, nos distantes anos 90. Porque o achei sem rugas, aqui o deixo



MAGNÓLIA E DANTE:
A PARTE MALDITA
Blake e Miles são os dois dálmatas que flanam pela mansão de Earl Partridge, o empertigado magnate da comunicação que se debate com a doença, num leito que se adivinha derradeiro.
Houvesse um terceiro dálmata (poderia chamar-se Bacon) e refazia-se assim a figura de Cérbero, o monstro com três fa(u)ces de cão e corpo eriçado de cabeças de serpente (que fisionomicamente têm semelhanças com as cabeças dos dálmatas, nasceram do mesmo padrão), que guarda Aqueronte, o rio da morte, e convocava-se, ao mesmo tempo, a poesia, a música e a pintura: três testemunhas fiáveis do “passamento” dos humanos neste trânsito terreno.
Magnólia, o filme de Paul Thomas Anderson, encena um mundo em queda, nos seus diversos círculos infernais. Precisamente, uma das leituras inesperadas que este filme proporciona nasce da consonância do seu universo com o que Dante desenha a pontas de fogo n’ O Inferno. E numa narrativa que começa com o insólito caso de um suicidado, Sydney Barringer, às mãos dos seus pais, e por expôr a serialização que as coincidências organizam, assestando uma nova mira para a inteligibilidade do real (as sincronicidades jungianas), a existência de inegáveis semelhanças estruturantes com a obra de Dante permite lê-lo como uma plausível variante cinematográfica da Divina Comédia.

Magnolia compõe um mosaico de destinos que se animam como labaredas à medida que se vai impondo o âmbito dramático. As personagens de Magnolia, nove como os círculos deO Inferno, só descobrem a sua verdadeira dimensão quando acossadas pelo carácter emergente, irreversível, inaceitável da dinâmica que a morte descongela.
O feliz prazer da repetição ou reiteração, que governa a vida da infância até à estação final, vê aí amputado de súbito aquilo que futuriza a vida: o poder de antecipar (Julian Marias). É pela voragem da morte que o filme lhes sega as ilusões e nos faz penetrar na autêntica dimensão das personagens: a Dor, letal e impensável “latência manifesta”. Aquilo que obstrui à vida o seu delta de possibilidades.
Mas lembremos os traços gerais da trama: Earl Partridge/ Jason Robards (1), dentro de poucas horas, vai morrer. A sua jovem mulher Linda/ Julianne Moore (2), que sempre o atraiçoou e herdará a sua fortuna, devia estar radiante. E no entanto... O moribundo só tem um desejo: rever o filho, Frank Mackey/ Tom Cruise (3), que ele, um dia abandonou à cabeceira da cama onde a sua primeira mulher morreria do “mesmo” cancro que agora o abate. Frank converteu-se num falocrata irado, um guru da misogenia que quer converter os vínculos sexuais à lógica do «fast food». Para realizar o contacto com o filho Earl só pode contar com a solidariedade de Phil/ Philip Seymour Hoffman (4), o devotado enfermeiro que o assiste.
Entretanto, outro núcleo duro de personagens orbita à volta de Jimmy Gator/ Philip Baker Hall (5), um celebrizado pivot televisivo que por sua vez também morre com um cancro. Gator, para os telespectadores incarna os valores da família americana, mas existe um fosso entre as aparências e a realidade. Como sabe Claudia/ Melora Walters (6), sua filha, de quem o pai abusou e que agora é um farrapo humano entregue à toxicodependência. Na vida desta, por via de uma queixa dos vizinhos entra Jim (7), um polícia de falas mansas absolutamente devotado à causa do bem. Implicados com Gator estão também Stanley(8), um menino prodígio que é um barra nos concursos de temática cultural, e Donney (9), um ex-campeão dos concursos, e cujo sucesso não o deixou amadurecer para o amor (como ele diz:«tenho mesmo amor para dar mas não sei onde o pôr»).
Entre a agonia de Earl e a apocalíptica chuva de sapos perfazem-se as poucas horas desta narrativa quase contada em tempos reais.        
As sequências do filme incrustam-se umas nas outras: não se desenvolvem, como é corrente, de modo espasmódico, linear, até à sua tensão final, funcionando antes como elásticos que se esticam e contraem. À maneira de uma boneca russa que assimila ou incorpora bonecas semelhantes, o filme cruza tramas que desenham um padrão comum. E assim pelo entrelaçamento de histórias paralelas, de destinos activados pela dor que os isola, instaura-se uma sincronia, a mesma que Ossip Mandelstam, em Colóquio sobre Dante, detectava em O Inferno: «O tempo para Dante é o conteúdo da história, entendida como um acto único e sincrónico».
Escrevia Mandelstam: «o terror do presente, uma espécie de terror praesentis» estampa-se com tal veemência no poema que «o presente puro equivale a um exorcismo.Ao separar-se de todo o futuro e do passado, o presente conjuga-se como dor pura, como perigo».
Repare-se agora no que diz Dante, no Canto XVI: «Eu estava onde ouvia o ribombar/ da água caindo noutro círculo, semelhante ao que soa um colmear.» É espantoso verificar como isto ilustra a montagem de Magnólia. A montagem do filme processa-se por cortes verticais, não faz “avançar” o tempo, é –lhe interior. Cada cena é um estrato, de onde a “água” (o caudal das imagens) transborda, caindo no seguinte: o mecanismo é normalmente um travelling lento que vai aproximando a câmara da personagem até ao GP (grande-plano). Quando a câmara foca esse mapa que é o rosto, o instante conjuga-se como dor pura, como perigo, e os sulcos da emoção acabam por emaranhar-se, decalcar-se uns nos outros, por transbordar, alterando assim o desenho do mapa, isto é, do rosto.
A dor de Earl, por exemplo, que lhe reduz a expressão à afasia, permite o raccord com a elocução de Gator, que também está minado. Ou a volúpia de Frank a enaltecer nos seus seminários o membro viril tece um raccord com o grito de remorso de Linda quando alude aos felácios com que traiu Earl.
Sublinha-se este procedimento formal em duas sequências onde a montagem desenha uma “panorâmica” de 360º pelas personagens: primeiro no começo da emissão do concurso televisivo, O Que É Que As Crianças Sabem?;depois, no momento anterior à queda dos sapos, quando todas as personagens interpretam o terrível refrão da canção de Aimée Mann,Wise Up: «A dor não vai parar/ Até que consigas despertar». Despertar para quê? Para a morte? O que é iniludível é que essas duas “panorâmicas” perfazem um círculo, infernal, que a todos contém. Ninguém está ileso.
Adiantava-se acima que as personagens são nove como os círculos do cone invertido doInferno. E serão atribuíveis a cada uma características que as afinam com os diferentes tipos de «pecadores» recenseados em cada círculo? De imediato podem-se identificar três dos protagonistas centrais da fita – Earl, Franck, Gator – com as três feras assustadoras que aparecem a Dante, no início da sua jornada: a pantera, o leão, a avareza. A jovem pantera com o filho, Frank, o leão com o pai, Earl, a avareza, por antonomásia, com Gator – o animador televisivo que pode manipular o destino financeiro dos concorrentes. Curiosamente, estão os três ligados à “indústria dos media” e neste caso, ousemos extrapolar, nesta Trindade coube a Gator o papel do Espírito Santo, aquele que na realidade corporiza e valida o “espírito” da televisão.
Mas podíamos ensaiar algumas outras afinidades: Stanley, o menino prodígio da televisão, Don, o ex-menino prodígio, e os pais de ambos, podem perfeitamente caber no círculo IV, os dos «avarentos e pródigos» (os pais são avarentos porque retém «o dom de amar», ou o condicionam às performances dos filhos, os pródigos);Linda teria o destino dos «luxuriosos», o Círculo II; Frank engrossa a lista dos «fraudulentos» que recheiam o Círculo VIII, como aliás o seu pai e Gator; a filha deste, Claudia, inscreve-se no Círculo VII, o dos «violentos contra si mesmo»; Jim, o polícia, identifica-se com os «pusilânimes» do Vestíbulo, que se situa aquém do Aqueronte, etc.
O facto de Jim ser um pusilânime, defeito que o coloca, digamos, no hall do Inferno, ser-lhe-á favorável. A sua exterioridade abre-lhe as portas da narração, dando-lhe o direito de ser um dos cicerones desta visita aos labirintos das trevas que a malha urbana tece. Ainda que o deixe duplamente sozinho face à consciência de que pouco pode fazer para alterar o seu e os restantes destinos. Jim e Phil, um enfermeiro de tal forma devotado que só lhe resta uma réstia de vida «por procuração», simbolizam «o bem» nesta fita. Ambos altruístas, embora impotentes: a nenhum deles é reservado o poder da cura. A situação deles compara-se à que Dante definiu para Virgílio: «mais do que uma sombra e muito menos que um homem».
Jim, com honras de narrador final, resume deste modo a sua missão no mundo: «Às vezes as pessoas precisam de ser perdoadas. A parte tramada é que não posso abrir mão disto...». Subentenda-se: a parte tramada é não lhe caber o livre arbítrio, condenado a esse papel de uma vã misericórdia! É caso para invocar a terrível fórmula de Séneca: «antes de sermos marinheiros somos naúfragos!». 
A única finalidade aceitável das actividades humanas como a cultura é a produção de singularidades que enriqueçam de modo contínuo a relação do sujeito com o mundo. Nos concursos televisivos esta relação é pervertida pois a cultura é convocada para ser diluída como item ou molécula no fluxo informativo. Stanley sabe identificar e mesmo cantar um trecho de Carmen de Bizet mas não é um fruidor do «belo canto», pois esta qualidade requeriria um desperdício de tempo; tão vital à sua abulimia de dados informativos.
O que é que as crianças deste concurso televisivo sabem? Que as esferas cognitivas e a da emocionalidade estão de costas voltadas. Que a concorrência começa em casa, o que as obriga a viver num cenário onde o tempo já não devaneia, sonha, ou se extravia. O tempo, neste filme, sofre-se como um desgaste ou um veio por onde correm a especulação e o embuste. Tempo é dinheiro. E por isso caiem sapos do céu, como se moedas de lama fossem. Na realidade, em Magnólia, o céu já não existe, foi convertido numa enorme pantalha luminosa onde cada sapo equivale a um grão.
A dado momento, não vaticina um jovem rapper que o crime que Jim investiga foi cometido pelo «Verme»? Verme era um dos nomes que designava o Diabo na Idade Média. E consequentemente justifica-se o espanto do jovem rapper em relação à cegueira com que as forças da ordem sonegam o evidente.
Uma sociedade na qual o tempo já não é transporte no sonho e onde sobrevém uma dificuldade em fixar o que se apresenta à frente dos olhos produz uma modelização restritiva quer do sujeito, quer do social. Ángel Crespo num ensaio sobre as «metamorfoses» em Dante conclui que, em O Inferno, estas estão subordinadas ao que o pecado de cada um potencializava. Ou seja, as metamorfoses (os suicidas transformados em árvores, por exemplo) espelham uma eterna confirmação da falta praticada e a maior condenação estaria nesse impedimento em ser-se outro, ou outra coisa. A impossibilidade de esquecer, em suma. Queixa-se Gator, a dado momento: «Nós podemos cortar com o passado mas o passado não corta connosco». 
No filme, o drama de Donney, que sintomaticamente quer mudar a sua imagem com uma operação aos dentes, reside na sua impossibilidade de esquecer que já foi, como Stanley um menino de ouro e que agora não passa de uma nódoa-em-aberto. Este insofismável sentimento da queda tem raíz na sua «imagem televisiva» - de um implacável vencedor - em contradição com a sua débil presença «ao vivo». Donney não sabe descartar-se da sua imagem, o que precipita uma extrema indistinção sobre o que em cada momento sente. 
E isto leva-nos a outra analogia, a da esfera televisiva com Dite, a cidadela que se implanta no Sexto Círculo de O Inferno e à beira de cujas muralhas se localiza o cemitério de Epicuro e dos seus sequazes.
Segundo Epicuro o bem supremo do homem está no prazer negativo, na ausência completa de dor para o corpo e de perturbação para a alma. O pensamento de Epicuro está para a filosofia como as poluções nocturnas estão para o amor mas o figurino antecipadamente «virtual» das suas posições - o bem é substituído pelo prazer e o mal pela dor - estatui como norma de conduta um critério eminentemente subjectivo, que contribui para a dissolução de qualquer vínculo moral.
Perfil que me parece encaixar no perfil desse «espectador televisivo» que Fernando Belo evocava num dos seus livros (em Filosofia e Linguagem) ao relatar o caso daquela senhora das Avenidas Novas que à menção da bomba de neutrons replicava, excitada: «Não hei-de morrer sem ver. Ora, está consumada a aspiração das guerras «em directo». E com ela chegaram o turismo televisivo, a ginástica ou o sexo televisivo, a lotaria e o confessionário. Hoje, o hedonismo social persegue o êxito televisivo – que entre outros atractivos converte vícios em virtudes e até um aprisionado Capitão de Abril (o Otelo) numa inesperada fera sexual – que, com uma irónica vocação mallarmeneana, tende a olhar o mundo como um atributo da sua caixa virtual.  
Em Dite, a cidade onde se acolhiam, repare-se, os «violentos contra Deus, a natureza e a Arte», todos os seus «internos» se encontravam sob vigilância de uma tropilha de demónios. Esta vigilância medida ao décimo de milímetro não me parece distante da que é hoje ensaiada por uma Entidade Audiovisual que procura moldar o mundo ao seu circuito interno. E que dizer quando até o interior do corpo (como nas tomografias de Earl) é vasculhado pelas «imagens», transformando a doença num ruído?
Saliente-se, por último, o paradoxo que desencadeia o facto de que quanto mais nos sentimos vigiados pelas câmaras menos queremos ver o que está diante dos olhos.  
Conta Boccaccio na sua “Vida de Dante” que os últimos treze cantos do Paraíso se haviam extraviado e que acabaram por ser encontrados quando um sonho revelou a Pedro Alighieri, filho de Dante, onde se escondiam. Não teria Dante, para quem a sua obra se inscrevia no quadro das profecias, achado que esta precisava de ser actualizada soprando aos ouvidos de um adormecido Anderson a trama para o filme?
É uma hipótese: é mais que um dizer.

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