A arrumar papeis redescubro este artigo que fiz sobre o magnifico Magnolia, nos distantes anos 90. Porque o achei sem rugas, aqui o deixo
MAGNÓLIA E DANTE:
Blake e Miles são os dois dálmatas que flanam pela
mansão de Earl Partridge, o empertigado magnate da comunicação que se debate
com a doença, num leito que se adivinha derradeiro.
Houvesse um terceiro dálmata (poderia
chamar-se Bacon) e refazia-se assim a figura de Cérbero, o monstro com três
fa(u)ces de cão e corpo eriçado de cabeças de serpente (que fisionomicamente
têm semelhanças com as cabeças dos dálmatas, nasceram do mesmo padrão), que
guarda Aqueronte, o rio da morte, e convocava-se, ao mesmo tempo, a poesia, a
música e a pintura: três testemunhas fiáveis do “passamento” dos humanos neste
trânsito terreno.
Magnólia, o filme de Paul Thomas Anderson,
encena um mundo em queda, nos seus diversos círculos infernais. Precisamente,
uma das leituras inesperadas que este filme proporciona nasce da consonância do
seu universo com o que Dante desenha a pontas de fogo n’ O Inferno. E
numa narrativa que começa com o insólito caso de um suicidado, Sydney
Barringer, às mãos dos seus pais, e por expôr a serialização que as
coincidências organizam, assestando uma nova mira para a inteligibilidade do
real (as sincronicidades jungianas), a existência de inegáveis semelhanças
estruturantes com a obra de Dante permite lê-lo como uma plausível variante
cinematográfica da Divina Comédia.
Magnolia compõe
um mosaico de destinos que se animam como labaredas à medida que se vai impondo
o âmbito dramático. As personagens de
Magnolia, nove como os círculos deO Inferno, só descobrem a sua
verdadeira dimensão quando acossadas pelo carácter emergente, irreversível,
inaceitável da dinâmica que a morte descongela.
O feliz prazer da repetição ou reiteração,
que governa a vida da infância até à estação final, vê aí amputado de súbito aquilo que futuriza a vida: o poder de
antecipar (Julian Marias). É pela voragem da morte que o filme lhes sega as
ilusões e nos faz penetrar na autêntica dimensão das personagens: a Dor, letal
e impensável “latência manifesta”. Aquilo que obstrui à vida o seu delta de
possibilidades.
Mas lembremos os traços gerais da trama:
Earl Partridge/ Jason Robards (1), dentro de poucas horas, vai morrer. A sua
jovem mulher Linda/ Julianne Moore (2), que sempre o atraiçoou e herdará a sua
fortuna, devia estar radiante. E no entanto... O moribundo só tem um desejo:
rever o filho, Frank Mackey/ Tom Cruise (3), que ele, um dia abandonou à
cabeceira da cama onde a sua primeira mulher morreria do “mesmo” cancro que
agora o abate. Frank converteu-se num falocrata irado, um guru da misogenia que
quer converter os vínculos sexuais à lógica do «fast food». Para realizar o
contacto com o filho Earl só pode contar com a solidariedade de Phil/ Philip
Seymour Hoffman (4), o devotado enfermeiro que o assiste.
Entretanto, outro núcleo duro de personagens
orbita à volta de Jimmy Gator/ Philip Baker Hall (5), um celebrizado pivot
televisivo que por sua vez também morre com um cancro. Gator, para os
telespectadores incarna os valores da família americana, mas existe um fosso
entre as aparências e a realidade. Como sabe Claudia/ Melora Walters (6), sua
filha, de quem o pai abusou e que agora é um farrapo humano entregue à
toxicodependência. Na vida desta, por via de uma queixa dos vizinhos entra Jim
(7), um polícia de falas mansas absolutamente devotado à causa do bem.
Implicados com Gator estão também Stanley(8), um menino prodígio que é um barra
nos concursos de temática cultural, e Donney (9), um ex-campeão dos concursos,
e cujo sucesso não o deixou amadurecer para o amor (como ele diz:«tenho mesmo
amor para dar mas não sei onde o pôr»).
Entre a agonia de Earl e a apocalíptica
chuva de sapos perfazem-se as poucas horas desta narrativa quase contada em
tempos reais.
As sequências do filme incrustam-se umas nas
outras: não se desenvolvem, como é corrente, de modo espasmódico, linear, até à
sua tensão final, funcionando antes como elásticos que se esticam e contraem. À
maneira de uma boneca russa que assimila ou incorpora bonecas semelhantes, o
filme cruza tramas que desenham um padrão comum. E assim pelo entrelaçamento de
histórias paralelas, de destinos activados pela dor que os isola, instaura-se
uma sincronia, a mesma que Ossip Mandelstam, em Colóquio sobre Dante, detectava em O Inferno: «O tempo para Dante é o conteúdo da
história, entendida como um acto único e sincrónico».
Escrevia Mandelstam: «o
terror do presente, uma espécie de terror praesentis» estampa-se com tal
veemência no poema que «o presente puro
equivale a um exorcismo.Ao separar-se de todo o futuro e do passado, o presente
conjuga-se como dor pura, como perigo».
Repare-se agora no que diz Dante, no Canto XVI: «Eu estava onde ouvia o ribombar/ da água
caindo noutro círculo, semelhante ao que soa um colmear.» É espantoso
verificar como isto ilustra a montagem de
Magnólia. A montagem do filme processa-se por cortes verticais, não faz
“avançar” o tempo, é –lhe interior. Cada cena é um estrato, de onde a “água” (o
caudal das imagens) transborda, caindo no seguinte: o mecanismo é normalmente
um travelling lento que vai aproximando a câmara da personagem até ao GP
(grande-plano). Quando a câmara foca esse mapa que é o rosto, o instante
conjuga-se como dor pura, como perigo, e os sulcos da emoção acabam por
emaranhar-se, decalcar-se uns nos outros, por transbordar, alterando assim o
desenho do mapa, isto é, do rosto.
A dor de Earl, por exemplo, que lhe reduz a expressão à
afasia, permite o raccord com a elocução de Gator, que também está minado. Ou a
volúpia de Frank a enaltecer nos seus seminários o membro viril tece um raccord com o grito de remorso de Linda
quando alude aos felácios com que traiu Earl.
Sublinha-se este procedimento formal em duas sequências
onde a montagem desenha uma “panorâmica” de 360º pelas personagens: primeiro no
começo da emissão do concurso televisivo, O
Que É Que As Crianças Sabem?;depois, no momento anterior à queda dos sapos,
quando todas as personagens interpretam
o terrível refrão da canção de Aimée Mann,Wise Up: «A dor não vai parar/ Até que consigas despertar». Despertar para
quê? Para a morte? O que é iniludível
é que essas duas “panorâmicas” perfazem um círculo, infernal, que a todos
contém. Ninguém está ileso.
Adiantava-se acima que as personagens são nove como os
círculos do cone invertido doInferno. E serão atribuíveis a cada uma
características que as afinam com os diferentes tipos de «pecadores»
recenseados em cada círculo? De imediato podem-se identificar três dos
protagonistas centrais da fita – Earl, Franck, Gator – com as três feras assustadoras
que aparecem a Dante, no início da sua jornada: a pantera, o leão, a avareza. A
jovem pantera com o filho, Frank, o leão com o pai, Earl, a avareza, por
antonomásia, com Gator – o animador televisivo que pode manipular o destino
financeiro dos concorrentes. Curiosamente, estão os três ligados à “indústria
dos media” e neste caso, ousemos extrapolar, nesta Trindade coube a Gator o
papel do Espírito Santo, aquele que na realidade corporiza e valida o
“espírito” da televisão.
Mas podíamos ensaiar algumas outras afinidades: Stanley, o
menino prodígio da televisão, Don, o ex-menino prodígio, e os pais de ambos,
podem perfeitamente caber no círculo IV, os dos «avarentos e pródigos» (os pais
são avarentos porque retém «o dom de amar», ou o condicionam às performances
dos filhos, os pródigos);Linda teria o destino dos «luxuriosos», o Círculo II;
Frank engrossa a lista dos «fraudulentos» que recheiam o Círculo VIII, como
aliás o seu pai e Gator; a filha deste, Claudia, inscreve-se no Círculo VII, o
dos «violentos contra si mesmo»; Jim, o polícia, identifica-se com os
«pusilânimes» do Vestíbulo, que se situa aquém do Aqueronte, etc.
O facto de Jim ser um pusilânime, defeito que o coloca,
digamos, no hall do Inferno, ser-lhe-á favorável. A sua exterioridade abre-lhe as portas da narração, dando-lhe o
direito de ser um dos cicerones desta visita aos labirintos das trevas que a
malha urbana tece. Ainda que o deixe duplamente sozinho face à consciência de
que pouco pode fazer para alterar o seu e os restantes destinos. Jim e Phil, um
enfermeiro de tal forma devotado que só lhe resta uma réstia de vida «por
procuração», simbolizam «o bem» nesta fita. Ambos altruístas, embora
impotentes: a nenhum deles é reservado o poder da cura. A situação deles
compara-se à que Dante definiu para Virgílio: «mais do que uma sombra e muito
menos que um homem».
Jim, com honras de narrador final, resume deste modo a sua
missão no mundo: «Às vezes as pessoas precisam de ser perdoadas. A parte
tramada é que não posso abrir mão disto...». Subentenda-se: a parte tramada é
não lhe caber o livre arbítrio, condenado a esse papel de uma vã misericórdia!
É caso para invocar a terrível fórmula de Séneca: «antes de sermos marinheiros somos naúfragos!».
A única finalidade aceitável das actividades
humanas como a cultura é a produção de singularidades que enriqueçam de modo
contínuo a relação do sujeito com o mundo. Nos concursos televisivos esta
relação é pervertida pois a cultura é convocada para ser diluída como item ou
molécula no fluxo informativo. Stanley sabe identificar e mesmo cantar um
trecho de Carmen de Bizet mas não é um fruidor do «belo canto», pois esta
qualidade requeriria um desperdício de tempo; tão vital à sua abulimia de dados
informativos.
O que é que as crianças deste concurso televisivo sabem?
Que as esferas cognitivas e a da emocionalidade estão de costas voltadas. Que a
concorrência começa em casa, o que as obriga a viver num cenário onde o tempo
já não devaneia, sonha, ou se extravia. O tempo, neste filme, sofre-se como um
desgaste ou um veio por onde correm a especulação e o embuste. Tempo é
dinheiro. E por isso caiem sapos do céu, como se moedas de lama fossem. Na
realidade, em Magnólia, o céu já não
existe, foi convertido numa enorme pantalha luminosa onde cada sapo equivale a
um grão.
A dado momento, não vaticina um jovem rapper que o crime que Jim investiga foi cometido pelo «Verme»?
Verme era um dos nomes que designava o Diabo na Idade Média. E consequentemente
justifica-se o espanto do jovem rapper
em relação à cegueira com que as forças da ordem sonegam o evidente.
Uma sociedade na qual o tempo já não é transporte no sonho
e onde sobrevém uma dificuldade em fixar o que se apresenta à frente dos olhos produz uma modelização
restritiva quer do sujeito, quer do social. Ángel Crespo num ensaio sobre as
«metamorfoses» em Dante conclui que, em O
Inferno, estas estão subordinadas ao que o pecado de cada um
potencializava. Ou seja, as metamorfoses (os suicidas transformados em árvores,
por exemplo) espelham uma eterna confirmação da falta praticada e a maior
condenação estaria nesse impedimento em ser-se outro, ou outra coisa. A
impossibilidade de esquecer, em suma. Queixa-se Gator, a dado momento: «Nós podemos cortar com o passado mas o
passado não corta connosco».
No filme, o drama de Donney, que
sintomaticamente quer mudar a sua imagem com uma operação aos dentes, reside na
sua impossibilidade de esquecer que já foi, como Stanley um menino de ouro e
que agora não passa de uma nódoa-em-aberto. Este insofismável sentimento da
queda tem raíz na sua «imagem televisiva» - de um implacável vencedor - em
contradição com a sua débil presença «ao vivo». Donney não sabe descartar-se da
sua imagem, o que precipita uma extrema indistinção sobre o que em cada momento
sente.
E isto leva-nos a outra analogia, a da
esfera televisiva com Dite, a cidadela que se implanta no Sexto Círculo de O
Inferno e à beira de cujas muralhas se localiza o cemitério de Epicuro e dos
seus sequazes.
Segundo Epicuro o bem supremo do homem está
no prazer negativo, na ausência completa de dor para o corpo e de perturbação
para a alma. O pensamento de Epicuro está para a filosofia como as poluções
nocturnas estão para o amor mas o figurino antecipadamente «virtual» das suas
posições - o bem é substituído pelo prazer e o mal pela dor - estatui como
norma de conduta um critério eminentemente subjectivo, que contribui para a
dissolução de qualquer vínculo moral.
Perfil que me parece encaixar no perfil
desse «espectador televisivo» que Fernando Belo evocava num dos seus livros (em
Filosofia e Linguagem) ao relatar o
caso daquela senhora das Avenidas Novas que à menção da bomba de neutrons
replicava, excitada: «Não hei-de morrer
sem ver!». Ora, está
consumada a aspiração das guerras «em directo». E com ela chegaram o turismo
televisivo, a ginástica ou o sexo televisivo, a lotaria e o confessionário.
Hoje, o hedonismo social persegue o êxito televisivo – que entre outros
atractivos converte vícios em virtudes e até um aprisionado Capitão de Abril (o
Otelo) numa inesperada fera sexual – que, com uma irónica vocação
mallarmeneana, tende a olhar o mundo como um atributo da sua caixa
virtual.
Em Dite, a cidade onde se acolhiam, repare-se, os «violentos contra Deus, a natureza e a
Arte», todos os seus «internos» se encontravam sob vigilância de uma
tropilha de demónios. Esta vigilância medida ao décimo de milímetro não me
parece distante da que é hoje ensaiada por uma Entidade Audiovisual que procura
moldar o mundo ao seu circuito interno. E que dizer quando até o interior do
corpo (como nas tomografias de Earl) é vasculhado pelas «imagens»,
transformando a doença num ruído?
Saliente-se, por último, o paradoxo que
desencadeia o facto de que quanto mais nos sentimos vigiados pelas câmaras
menos queremos ver o que está diante dos olhos.
Conta Boccaccio na sua “Vida de Dante” que
os últimos treze cantos do Paraíso se haviam extraviado e que acabaram por ser
encontrados quando um sonho revelou a Pedro Alighieri, filho de Dante, onde se
escondiam. Não teria Dante, para quem a sua obra se inscrevia no quadro das profecias, achado que esta precisava
de ser actualizada soprando aos ouvidos de um adormecido Anderson a trama para
o filme?
É uma hipótese: é mais que um dizer.
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