irving penn
Quando estou num período mais repousado, por
questões de equilíbro e ecologia mental, tento traduzir ou fazer versões de
pelo menos um poema por dia. Hoje descobri outra razão adicional para o fazer:
a busca de uma expressão exacta, como quem esculpe na água.
Mais dois poemas de Milosz. No segundo habita um
verso que é particularmente luminoso do ponto de vista da intuição que nos
inculca: «Amo a matéria que é só um espelho que gira». Este é um verso que
diríamos herbertiano, não fora ser-lhe três décadas anterior – dele ressalta o
veio profundo que navega subterraneamente na diccção de alguns grandes poetas,
uma espécie de vsão transpesoal interior/anterior ao expresso. E repare-se como
este «espelho que gira» é já «o andado desandado» do segundo poema, escrito
sessenta anos depois.
MANHÃ
Bela é a terra
belas são as nuvens
belo é o dia
e muito intenso é o amanhecer.
Assim cantava um homem olhando para baixo, a
cidade,
de onde fumegava uma bateria de cem chaminés.
E o pão da mesa era um segredo,
de vê-lo palpitava a fronte
o homem levantou alto o braço
e entre risos dançava ao redor, desfraldado.
O sabor do pão recorda a luz do sol
ao comê-lo, do pão irradiam raios.
Depois, indo para o trabalho, o homem sentiu o
amor
e mencionou-o às pedras da rua.
Amo a matéria que é só um espelho que gira.
Amo o movimento do sangue, única razão do mundo.
Creio na destrublidade de tudo o que existe.
Para não perder-me, tenho na mão um lívido mapa de
veias.
ESTE MUNDO
Acontece que houve um mal entendido.
Tomou-se por literal o que não passava ainda de uma
prova.
Os rios voltarão às suas origens,
o vento deixará de dar voltas.
As árvores não brotarão e voltarão às suas raízes.
Os velhos correrão atrás da bola,
Olhar-se-ão no espelho e serão outra vez meninos.
Os mortos despertarão sem compreender.
Até que todo o andado se desandará.
Que alívio! Respirai, vós que tanto haveis
sofrido!
COMENTÁRIO A PASCAL
Pascal: «il n’aime plus cete personne qu’il aimait il
ya dix ans. Je crois bien: elle n’ est plus la même, ni lui non plus. Il était
jaune e elle aussi; elle est tout autre. Il l’aimerait peut-être, telle qu’elle
étais alors.»
A asserção é heraclitiana e há algo de pueril
neste juízo. Próprio de um homem que nunca teve mulher. É evidente que tempo nos muda e, simultaneamente, muda
também as circunstâncias e o pano de fundo em que amávamos. De facto as
relações afectivas têm estações como a natureza e conhecem o inverno. Na nossa imaturidade
não acreditamos que o inverno prepara a Primavera, dado associarmos, com nefanda
estupidez, o amor à intensidade emocional dos instantes. O amor é uma lenta
aprendizagem do tempo à sua feição natural, que é cíclica. Ou antes, é uma
forma de incarnar sem atrito as transformações silenciosas que o tempo produz
em si mesmo ao vivenciar as suas manifestações.
Crescemos sem darmos conta, como amadurecem os
frutos e os cães mudam de temperamento – um dia olhamos a criança e notamos:
está enorme! Nós não nos vemos envelhecer, de forma consciente – a não ser que
tenhamos a doidice de Frida Khalo que tinha um espelho no dossel, suspeito que
para espreitar duas coisas: o seu rosto lânguido quando gozava e, no inverso,
os estragos que o sacho e a enxada do tempo faziam no seu corpo. Provavelmente,
por fim, para surpreender a chegada da morte, embora seja impossível estarmos
em vigília permanente; suspeito que a morte lhe terá chegado pelas traseiras.
Na verdade, a vida é sem esperança e o amor – essa entronização do tempo em nós
através da atenção e do corpo de outrém – é a aceitação disso sem tragédia, com
sabor incluído e um ligeiro patetismo. Não convoco aqui, para já, outro
elemento vital ao amor mas suplementar: a dignidade. É um suplemente desejável,
mas à parte. Pode haver paixão sem dignidade, pode ser até iníqua. Faz parte do
espectro da paixão desvelar nódoas no carácter, porque é sem moral. O amor pelo
contrário, é a polpa que aprende a não corromper-se. É a isto que se chama
fidelidade. Que não tem nada a ver com os acidentes na paisagem – a passagem de
um ou outro aerolito momentâneo – mas antes com a constância de acreditar que o
inverno prepara a primavera. Pelo que a proposição pascaliana (ou heraclitiana) não passa de uma
puerilidade coroada pelo sucesso da sua fórmula.
INFORME SOBRE A SITUAÇÃO NA TURQUIA
Formigam os homens endiabrados
À procura da pata de Deus.
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