Hoje é o “Ide” muçulmano, que altera completamente
as rotinas do quotidiano em Maputo.
Vejo dois jovens muçulmanos entrarem no café de
túnica comprida e lenço aferrado à cabeça como se usa na Arábia saudita e
interrogo-me que sentido tem uma tão urgente necessidade em demonstrar, a), que
se habita um não-lugar e, b), que a religiosidade deve exibir, seja qual for a
coordenada em que manifeste, e como se borbulha fosse, a sua propensão a um “centro”
que imponha às restantes miudezas topológicas, uma hierarquia. Como se o local
não passasse de uma víscera apátrida que procura o jugo de um coração. O que me
lembra a anedota da rapariga que chega a Nova Iorque e se apaixona ao terceiro
dia por um taxista, sem saber que é o seu irmão.
Incomoda-me que se ostente esta abstracção do
espaço e dos lugares com uma voluntariedade, para o dizermos de forma corporal, à tripa forra . Afinal, onde vivem estes jovens?
Percebo então o que me incomoda em todos “os
profissionais da fé”, sejam islâmicos, cristãos, judeus, budistas, hare-krishnas:
a gana com que se agarram às marcas exteriores. Têm uma compreensão da religião
absolutamente exotérica, frívola, inencontrável a não ser no dogma.
O que importa numa fé, a sê-la, é o que ela nos
move por dentro e não a sua adesão a hábitos, aqui entendidos na ambivalência
de costumes e de indumentária.
É pelo
trespasse dos costumes que uma fé se manifesta, e não há absolvição para a fé
que se cristaliza num ditado. Um muçulmano que se veste como muçulmano, um
judeu que antes de qualquer comportamento que o valide nos exibe as suas
patilhas em saca-rolhas para que não tenhamos dúvidas sobre a sua identidade
religiosa, etc., etc., parecem-me criaturas arredadas de qualquer movimento de
translação. De mal nutridas convicções religiosas, até – apesar das aparências.
Até a fé
aprenderam de cor.
A mim,
como ateu-não- sistemático choca-me esta cegueira em que se converteram as
religiões, e choca-me porque isso me veda qualquer filiação séria e me priva,
pois acho que há três condições para que uma vida se cumpra: o sagaz
reconhecimento da felicidade na experiência que nos toca, o pendor socrático
para não recearmos viver e, simultaneamente, examinarmos a vida; a humildade de
experimentarmos um sentimento de re-ligação. Este último item é o que a falência
das ideologias políticas e as diversas literalidades religiosas têm vindo a
tornar mais sombriamente suspeito.
Releio Che
cos’è la poesia?, de Derrida, e como
é natural há coisas que acolho e outras a que torço o nariz. Acho este preceito
abominável:
«A economia
da memória: um poema deve ser breve, elíptico por vocação, qualquer que seja a
sua extensão objectiva ou aparente. Douto inconsciente da Verdichtung e da retracção.»
Creio que Derrida terá Celan na memória ao
escrever isto mas apesar do bom exemplo não acho aceitável a lei. Bastava-lher ler a poesia hindu para se aperceber que essa
medida não é universal. E um bom haiku não torna dispensável o Savitri, de Sri Aurobindo, são apenas
experiências diferentes. As odes do Claudel e do Pessoa são grande poesia,
apesar da sua arquitectura pouco elíptica.
Já gosto muito de outras duas asserções. A
primeira:´
«O poético,
digamos, seria aquilo que desejas apender, mas do outro, graças ao outro»,
que eu associo à porosidade com que o inesperado nos fisga, em Heraclito;
e a segunda:
«Não
conhecias ainda o coração, assim o aprendes. Por esta experiência e por esta
expressão. Chamo poema àquilo que ensina o coração, que inventa o coração»,
o que em meu entender pressupõe muitíssimo mais do
que imaginar a poesia como acto de comunicação, de transbordo de fronteiras,
etc. Para isso temos a net, as redes sociais.
Antes da poesia o humano está em estado de afonia,
vulnerável e acossado; no jogo da poesia e da sua partilha há uma interioridade
(nascente) que se engata e nos arranca à amnésia, à selvajaria, e que, na
unicidade do poema, nos volta a sincronizar o coração com o ritmo.
Não um ritmo qualquer mas o que incorpora uma
certa paixão e lê o acidente como um engenho portador de sentido. Não chega
ainda a ser um conhecimento mas é uma reviravolta do caos, um quiasma onde algo
começa. O que é mais que uma simples comunicação – uma “extensão” muito mais
permeável ao aleatório e ao ruído - e onde a palavra nem sempre se elege nem
opera como um interruptor do humano.
Hoje sonhei com haikus e tankas – nem sempre as
imagens são os propulsores dos sonhos - e por isso fui para o café com Bashô e
várias antologias com tankas e haikus, e ao reler As Sendas de Oku aqueles haikus pareceram-me mnemónicas. Explorar
esta chave.
SÉNIOR
Para os velhos
tudo é demasiado.
A lágrima que embebe a fresta
na rocha pode vencer
a sede quando é tão escassa. Fim
e véspera do fim pedem
pouco, falam baixo.
Mas nós, na plenitude da idade,
na fornalha do tempo, nós? Pensai.
(Mario Luzi, versão minha)
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