O
poema com que fechei a escrita de As Feridas de Heitor, que sairá em fins de Outubro pela Abysmo, em Lisboa e no Brasil. É um 2 em 1, um livro de amor que
tem umas guinadas satíricas (ó pecaminosa mistura de géneros!), pelo que sai
barato. Queiram começar a reservar, pois a edição será unicamente de 3000
exemplares, juro eu. Ouviste João Paulo Cotrim?
A foto é de Alice W R e chama-se Alone Together
82 para o Helder Macedo
Faltará
aqui uma breve reflexão sobre Portugal,
O que se ilumina nos trilhos da
floresta,
se andamos aos cogumelos,
sob
um mavioso aguaceiro,
e ouvimos a respiração do lobo
nas nossas costas, o seu rilhar.
No
país dos Braganças - a dinastia
que
converteu um país à fotossíntese,
ao exangue ornamento –
adoptou-se
a
sabedoria de Mister Chance
sobre
pés de couve e regos d’água
e diante do engendramento de tais
valores
(estulta
nação que até nas heresias
poupa)
ficam poucos
sentimentos
disponíveis.
Que
bela tença, meu Capitão!
Menor
a de Pessoa, que foi magno
a
fertilizar a pátria ingrata,
a mesma que, perdida do seu desígnio,
no presente escolta o vento.
Arfa.
Ofereço-lhe as duas cenouras
que trago comigo? Pelo menos
raiava-lhe
nos olhos outro brilho!
Teve em
tempos Portugal
mais forma que privação,
mas agora é um casebre
desconjuntado como o pêlo encravado
a quem cerceia
a
linha picotada entre
“desanimado”
e “inanimado”;
ei-lo
reduzido a um mapa,
desprovido
de joelhos, de salsa, de lábios,
e que
mataria de riso
o Buster Keaton;
hematoma
que tirita
com a miúfa de extravasar-se,
e que
então se faz fútil, quotidiano, tributável,
grossa
lágrima
suspensa
num
doce
auto-engano
(curvada
a fronte ao realismo)
- e
vão três poetas de enfiada,
que é a última Trindade
que lhe resta, perdido
o
rasto ao tens cá disto?
Um
país sem âmago
é como um dedal
pode
ser de ouro mas carece
de um
dedo, ó caraças,
a cabeça foi-lhe cortada tão
habilmente
que tombou na tina,
seca e peca.
Embalsamada
talvez
ainda fosse a Meca,
porque
prenhe de milagres e prodígios
não
esmorece na tentativa
de
alçar
a palavra à boca
para a molhar na saliva.
Entretanto,
lembro Lisboa,
a
deslumbrante,
e a quem a tristeza
hoje
sobre-lota, sob a custódia
dos
canalhas.
Parente distante,
sob
condição de viver fora
do Estado,
lambo
a memória das feridas.
E
lembro
as
sete ímpares cabeças de peixe
e os
poços nos vales,
o seu
frescor que até o fado
dessedentava,
e que hoje,
ferruginosos,
fedem
do
fundo às bordas, afogada
a
esperança nos sargaços.
Dizíamos?
Nada.
Não dizíamos nada.
Se
queres sair da cepa torta
liga-lhe,
é amigo do Relvas
(o
filho bastardo de Mister Chance),
um
gajo mesmo à maneira
que escancara janelas e portas,
dono,
recordas-te, estava
nas
Amoreiras mas mudou
para
Telheiras,
da Confeitaria
Tortue.
Evidente, em Portugal
tudo
rima com tartaruga!
O certo, bom povo tuga,
é que
antes de seres designado
pela
iniquidade da História,
havia desovas de trutas
nos
teus rios, e picanços
que
polvilhavam os telhados.
Hoje
a paisagem é um plateau
para
as telenovelas da TVI
e no Big Brother vê-se
a forma inacabada do teu crânio.
Que
bela tença, meu Capitão!
Ao
fundo, no seu quarto, a Luna,
o meu pequeno orvalho matinal,
toca
Paganini no violino,
e sacode-me a melancolia:
va te faire foutre, Portugal!
Um
país que mataria de riso
o
Buster Keaton!
Já a Ana,
a
mais velha, voltou a Lisboa
para
observar que vista do céu
nada nela fosforesce
além do sorvo de ar
com
que a Igreja do Carmo
acolheu o firmamento
- o
mesmo alfabeto oco
que
circula nas veias do morto.
Mentira,
fala o pai por ela.
Porque
Lisboa se fantasmeia num texto
indecifrado,
substituídos
os limoeiros
por
garagens, enquanto
com
descaro, no fb,
os
políticos juram
a sua
tremenda versatilidade
e rejeitam a dignidade
de um
dissídio, por inaudito
amor à urbe
que maltratam,
no
intervalo de um Black Label,
pirataria
de um bridge fora de portas.
Lie to me, eu aprendi tudo
com o Tim Roth, terra
ingrata, espúria, mesquinha -
tivesses
tu um Ovídio
que escrevesse a sua Tristia
a
partir da diáspora interior
-
imagem tão justa como ser
almofadado o que apura
as
garras, na palma dos lobos.
Vês
aquela falésia, ali?
Tu és aquela falésia!
–
ensina um pai desempregado
aos
filhos, nos miradouros
da cidade dos corvos,
com a
voz trémula dos indecisos.
Porque
a coragem, ó caraças,
foi-lhe cortada tão rente
que
tombou na tina,
seca e peca.
Embalsamada
talvez
ainda fosse a Meca,
pois
prenhe de milagres e prodígios
não
esmorece na tentativa
de
alçar
a palavra à boca
para a molhar na saliva.
Deixem
que me zangue,
vivo na carne o pendor
com
que o país desbarata
qualquer lampejo
e faz da crise
viático
para nababos!
Que
mais dizer de um destino
cismático,
perfurado
por chernes e roedores,
em
que acefalamente – as pessoas
querem
divertir-se, esquecer
os
problemas – nunca
se vota em Ibsen?
Bela
tença, senhor Capitão!
Átomo
volúvel e inúmero,
de tão
divisível,
que conduta
manifesta
na Europa?
Portugal
cuida dos filhos,
da casa, da cozinha.
Ah, e
tem aquele Sol,
um ladrão cristalino
que
vai às caixas de Mon Chéri
afundar
no licor as mariposas.
Não
me incube ser cúmplice
de tanta irrealidade,
perdemos
o domínio dos detalhes
- a
febre virulenta que cega
os
povos de si mesmos.
Álcool
e tabaco são legais,
pode um
país sê-lo
se oferece miragens
mais
tóxicas que a terebentina?
Sabes
Sena, só no teu parentesco
se curva ainda o mar.
Já reparaste Helder
como
até as nuvens se marasmam
sobre o Terreiro do Paço?
Num
ser paródico, apátrida,
culminou o espírito luso.
Falo
dos Barrosos desta vida!
O que
lhe deu maleabilidade
para ir apertando o cinto,
disfarçando
a usura do tempo
(as máscaras de um vampiro
que
a si mesmo suga),
mas
dá pouca estaleca face à morte.
Ah,
mas isto não se deve dizer
não
se diga, não se diz…
Rilha.
Ofereço-lhe as cenouras?
Afinal,
nunca foi à tropa,
meu estouvado
Capitão?
* citam-se neste poema versos de Herberto Helder, Fernando Pessoa e Helder Macedo
* citam-se neste poema versos de Herberto Helder, Fernando Pessoa e Helder Macedo
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