Anteontem à tarde um meu
vizinho ocasional de café, pessoa que nem conhecia mas com quem tive uma
conversa de circunstância, mostrou-me no telefone um vídeo de cinco minutos
onde se via um linchamento colectivo – tendo aí sido mortas cerca de seis pessoas.
Fiquei embatucado (nunca se tem estômago para a violência e a brutalidade
selvagem e cega das multidões) e a matutar como conseguiria traduzir a
indignação que me foi subindo do estômago à cabeça e que me fez dar milhentas
voltas na cama.
Ontem, às sete da manhã fui dar
uma aula dedicada a Hamlet. Quando saí da aula fui tomar um café, decidido a
ler um bocado. Mas a moinha não deixou, às 9h30 abri o computador e às 11h30
tinha a pequena peça escrita. Uma catarse por via dum pastiche shakespeariano, inclusive na linguagem.
O caso a que o vídeo reporta,
dizia, passou-se o ano passado, no centro de Moçambique, mas estamos a vê-lo em
Gaza, em milhentos lugares.
Se estivesse em Gaza escreveria
sobre Gaza (aliás já o fiz em «Combate de Flautas», três cartas a três poetas
árabes, editado pela &etc.).
Agora estou em África, dói-me
África mais directamente. É o humano que está doente e espalha a barbárie em
todas as coordenadas. Que a literatura seja uma medicina, a possível. Pelo
menos para mim, que vi, e ainda não sacudi o estupor.
UM HAMLET AFRICANO
Hamlet anda insone pelos corredores do palácio. Olha para
a janela, ainda é noite.
HAMLET
Depois desta
noite
não passarei
de um bastardo…
que maldição…
e que a noite não encalhe
no limiar da
dor
e a sua
língua volte a escorrer,
inocente
cascata, nas palavras que clareiam,
e que seja o
seu miolo lavável,
passível de
ser esquecido,
sem trazer,
tormentoso,
ao espírito o promontório
que vicia na
contemplação da borrasca.
Que a noite
polinize a manhã
e arda nela
a tua alma como o matutino
que foi lido
e embrulha agora o peixe
no mercado,
esquecida de si
mesmo e com a
paz com que a pedra
se redime ao
sol.
Quero ser
pedra, sim.
Senta-se no parapeito de uma janela, enquanto atrás de si
a luz vai mudando, fazendo chegar a alba.
A sua mãe entra em cena, os óculos de ler pendidos no
peito.
GERTRUDES
Falavas com
quem, filho? Ouvi-te…
HAMLET
Falo com a
sombra, mãe,
com este rio
que não me
cessa de ser frio.
GERTRUDES
Às vezes
assustas-me, filho,
desconcertas-me
em falas
que me
esfumam a razão.
Que tens tu
a apaziguar na tua sombra?
HAMLET (evasivo)
Enlaça-me a
dor, e como um baloiço
sobe e
desce…
GERTRUDES
Vê, a manhã
nasce sem culpa.
Que te pode
trazer tão sombrio?
HAMLET
Não viu a
mãe, esta noite, um fogo que mordia o céu,
como as
esporas nos cavalos, em negros cachos?
GERTRUDES
Quando viste
tu, o que tanto te afecta?
HAMLET
Um fumo
frondoso, espesso e escuro tomou
esta noite
conta da cidade e penetrou nela
como um
caroço que tem a esconder
no centro do
fruto
um mal que
não se dissipa.
GERTRUDES (metendo os óculos na cara)
Meto os
óculos, não porque vá ler,
mas para me
defender de ti… filtro
as tuas
palavras amargas - que algo
de bom há-de
ter acontecido algures.
HAMLET
Em algures e
talvez também em nenhures,
mas
entretanto vá a mãe à janela
e inspire
fundo,
e diga-me
depois que odor
se recorta
no azul do céu. Vá, mãe…
GERTRUDES
Se precisas
tanto que te sossegue, filho…
HAMLET
Não hesite
mãe… Redobro o meu pedido: vá…
GERTRUDES
Se
insistes... (chega-se à janela e inspira)
há um leve
aroma adocicado…
HAMLET
São os
degraus com que a cinza chega ao céu…
GERTRUDES
Que cinza
filho, só vi um azul onde se podem enxotar as moscas.
HAMLET
Mas sentiu?
GERTRUDES
Levemente.
Pareceu-me que algo se infiltrava no ar… semi-doce. Não sei definir…
HAMLET
E ouviu
gemer?
GERTRUDES
Porquê? Vi a
torre da igreja ao fundo
e o coreto a
meio
e chegada à
janela não se via vivalma…
Quem poderia
ouvir gemer?
HAMLET
Dormem
ainda, depois do massacre…
GERTRUDES
Falas por
enigmas e os labirintos assustam-me…
HAMLET
… porque se
me desconjunta o futuro
antes que o
próprio comboio
se entronize
nas calhas do tempo.
Escusas de
matar o pai, o kutchinga está feito.
GERTRUDES
Deliras… o
teu transe desacredita-te.
HAMLET
Antes não
tivesse visto, mãe. Antes
morresse
antes de ter visto
os fantasmas
tomarem forma
e a
violência engrossar neles o sangue.
GERTRUDES
Pões-me
nervosa. O que viste
então,
estando eu adormecida?
HAMLET
Vi que uma
mole humana subia a serra
com archotes
e num alarido
e pensando
que fosse um meteoro
que ali
caía, segui-os. Que o tempo
me tivesse
cegado com a sua lima de ferro,
mas tinha de
assistir para saber como o homem
não é mais
que a maçã que apodrece
num
tiquetaque…
GERTRUDES
Cada palavra
tua me acorda para as sirenes
em Gaza…
HAMLET
Deixe que o
distante se faça distante
e antes
aproxime, mãe, a mira dos seus,
para que não
seja lisa a aspereza
do que aí
vem… e a dor cobre
o seu peso
em ruínas,
inflamando-as
ao rubro até
que toda a
lembrança espanquem…
GERTRUDES
Aproximas-me
do fogo, como quem murmura…
Pé ante pé
mortificas-me…
HAMLET
Que então o
fumo do fogo não te embote mais
a dor
daqueles que ontem arderam
pois até os
antepassados que assistiam
sentiram
repentino frio no prepúcio
que há tanto
circundaram.
Mas,
dizia-te, segui a multidão
curioso de
não haver reticências e de um entusiasmo
a
transportar, como o esfomeado segue
tolamente as
miragens, até a de um leão. E lá em cima
na clareira
com o tamarindeiro milenário,
a quem
rodeiam os embondeiros onde se oferta
aos
espíritos as libações e o sangue dos cordeiros,
vi que havia
uma vala já feita,
como se tudo
fora previamente combinado,
e que a
multidão excitada chambocava
seis
cidadãos que na aflição e na dor
se
revezavam. Não te saberia descrever
o
desorbitado naqueles olhos e o deserto
nos dos
outros que pulavam com os seus cascos
sobre os
desgraçados, pisando-os, e insultando-os,
enquanto os
paus faziam da sua prévia fúria embalo.
Em breve as
vítimas, no sonho de acharem
um reduto
que os salvasse, se encolhiam
de joelhos
encostados ao queixo
como os
fetos no útero, e inclusive
os queixumes
baixaram como se extirpados
da vida real
eles sonhassem apenas aquilo.
Depois a
multidão, a uma voz dos incitadores,
encheu de
ramos e folhas secas a vala
e nela pegou
o fogo…
GERTRUDES (a voz embargada)
Quem eram,
os que estavam a ser linchados?
HAMLET
E isso
salvará as aparências?
Que importa
os nomes, quando tudo arde?
Quem nos
salva do ódio que fez
primeiro dos
outros lenha, e depois
esbraseia,
voraz, à espera
que
capitulemos ao seu mandato?
Quando
fazemos do ódio supermercado
nenhuma
prateleira nos esconderá
os seus
recursos. E entre os incitadores, mãe,
entre
aqueles que não renunciavam
a envilecer
as suas palavras, estava o pai.
Como o chefe
da polícia e dois agentes
e o
secretário de bairro, e o padre,
mãe, o padre
que os devia acalmar
e meter de
novo na cama.
Por isso o
kutchinga está feito.
GERTRUDES
Desejas a
morte do teu pai?
HAMLET
Está já
morto. No seu lugar senta-se
agora a
infâmia. A infâmia
que se
deitará no teu leito e que chegou
de um
paradeiro invisível para tomar
o seu lugar,
fazendo dele o parente
que morreu.
Quem te acariciará
é já o
incesto com o mal.
GERTRUDES
Eu não vi,
filho. Que queres que julgue?
HAMLET
E é por isso
Mãe África, que a partir de agora serei um actor mudo.
Sai.
Elipse.
Dirige-se para o pátio com um gerican de petróleo,
senta-se a meio do pátio.
HAMLET
Quero ser
pedra… mas não a pedra
do não-ser, a
pedra que arde.
Deita petróleo por cima dele, depois acende um fósforo.
1. o kutchinga é a prática, muito em voga no campo mas também em certas franjas periféricas da cidade africana, da viúva passar a ser mulher do irmão do morto. o que aliás é o que também acontece no Hamlet
2. chambocar: um verbo que designa o acto de malhar em alguém com um cassetete ou um pau
Sem comentários:
Enviar um comentário