Fazia
falta uma voz assim, esta, de foco nos interstícios, nas modulações com que o
vivido e o raciocínio se retroalimentam. Uma voz onde ressoa - sem pôs-se em
bicos de pés (e isso é magnífico) - a presciência dos oráculos, porque não
dispensa a escuta, embora reflicta a partir do quotidiano, em ondulações que
lhe chegam dos primórdios, dos gregos que traduziu, da combustão dos sages em
que medita.
Esta
parece-me um tipo de navegação pela orla do que delimita o logos, balanceada na
estreita linha (ondulatória) que separa sabedoria de filosofia. Ou mantendo
aberta uma janela entre as duas.
Por
isso António de Castro Caeiro me lembra uma conversa perdida entre Antonio
Porchia e André Comte-Sponville, dois pensadores que não temem o convívio entre
a sageza e a filosofia e põem as palavras a interpelar as ideias para ver a
energia que aí se solta.
Ontem,
por graça, depois de ter lido uma observação de Caeiro no Facebook, onde se
lia:
“É por
isso que não existe relação entre sujeito e objecto. Tudo é como o olhar
fulminante de uma rapariga onde quer que seja. Há uma invasão do olhar e uma
contaminação por toda a nossa vida da presença da ausência. Não há sujeito, muito
menos objecto. É este TUDO O QUE ME ESTÁ A ACONTECER que define os encontros no
mundo.”
desafiei-o:
“isso dava uma belíssima reflexão que eu poria no meu blogue”.
E
ele não só respondeu, literalmente, no minuto seguinte, enviando-me o texto que
posto em baixo como me anuncia que este segmento faz parte de um livro que
sairá, imagine-se, que o não sabia de todo, na Abysmo.
Fico
contente. É bom saber que se pertence a uma família. E isto é que é olho.
O
olho que intuitivamente adivinha - diziam-nos gregos e António Caeiro com eles
- que afinal na rede de olhares é que entroncamos a individualidade que
cultivamos adrede. (Ah, não perder uma oportunidade para utilizar o advérbio).
O
que também comungam alguns poetas, como Juarroz, por exemplo:
«
Uma rede de olhares
mantém unido o mundo,
não o deixa cair.
E ainda que não saiba o que se passa com os cegos
hão-de os meus olhos apoiar-se numas costas
que podem ser as de deus.
No entanto
o que eles buscam é outra rede, outro fio,
que agora encobre os olhos com um fato emprestado
e precipita uma chuva já sem solo nem céu.
É isso que buscam os meus olhos,
o que nos descalça
para ver se algo mais nos sustenta por baixo,
ou inventar um pássaro
para averiguar
se existe o ar,
ou criar o mundo
para saber se há deus,
ou aceitar meter um chapéu
para comprovar que existimos.»
(tradução minha)
Mas o melhor é ler, o belíssimo
trecho que António Caeiro nos ofertou:
Os outros
Não conhecemos a esmagadora maioria das pessoas que
existem. Pertencemos a uma geração, e, portanto, também não conhecemos a
esmagadora maioria das gerações passadas e das gerações vindouras.
Mas nós somos irremediavelmente com outros. Somos com os
outros que, sem os adivinharmos, estiveram presentes e acabaram por
desaparecer. Somos com outros que têm estado sempre presentes. Mas até os que
nunca conhecemos não são nada, são dignos de registo. Sabemos que existem.
Os órfãos, os viúvos, os sobreviventes convivem com
ausências mais presentes do que muitas pessoas presentes nas suas vidas.
Nós vivemos numa clareira entre gerações. Existimos
espalhados entre o que a pessoa mais velha que conhecemos viveu e a pessoa mais
nova que encontrarmos, quando estivermos no limite da nossa idade.
Os mais velhos que apanhamos no princípio da nossa vida
já não estão cá. Ainda nos lembramos do que contavam das suas juventudes.
Transportaram-nos para tempos idos que já só existiam nas suas cabeças e agora
também nas nossas. Quando formos velhos e contarmos a uma criança como fomos na
juventude, damos-lhe a conhecer um conteúdo que não viveu em directo e ao vivo,
mas a que tem acesso de alguma maneira. A criança há-de sobreviver-me.
Mas existimos também na contemporaneidade dos nossos. Os
nossos amigos, parentes e familiares não são apenas vidas que estão incluídas
nas nossas ou aí ao pé de nós.
Cada olhar do outro modifica a constituição do meu. Não
apenas vinca e sublinha conteúdos como os apaga e faz esquecer.
O meu próprio olhar é o do outro. Quando alguém morre
apaga-se esse olhar e as coisas todas estão nuas porque estão despidas do
revestimento do olhar do outro.
Há momentos de ausências, quando vão às suas vidas. Há
momentos de reencontros: à noite ou no próximo fim-de-semana. Ou um qualquer dia.
Há muitos encontros, invasões do nosso olhar pelos
outros. Há muitos desencontros e mortes. "No primeiro olhar, a promessa.
No primeiro olhar, a despedida." Estamos com os outros que estão prestes a
deixar de ser. Estamos com os outros que vieram, estiveram e foram-se.
Vivem vida fora. Às vezes sabemos deles, mas a esmagadora
maioria do tempo vivemos pela ausência deles: uma ausência com corpo e volume,
esmagadora, um buraco negro. O nada que nos deixaram.
Somos esses outros todos através dos quais projectamos as
nossas vidas. Carregamo-los mortos, cegos, mudos, no silêncio das suas
ausências.
Caleidoscópio
1. Uma sala apinhada de gente. Custa a entrar. Sente-se
todos os olhares em cima de si. Sente-se despido. Se fosse a peso, carregava
todos os olhares que o miravam. A timidez era incontrolável. Não era medo de
nada, era apenas medo da exposição e vulnerabilidade. Tudo era inóspito.
2. A sala apinhada de gente. Tinha estado lá fora à
espera. Não por ninguém, ou por que a sala enchesse. Gostava de aumentar a
ansiedade criada pelo momento da antecipação. Sentia a garganta gelar e picos
de adrenalina. Entrava, e os olhares não intimidavam, inchavam-no. Cheio de si
e sem peso: crescia à altura de todos os horizontes abertos por todos os
olhares na sua direcção.
3. Ninguém tinha dado por que lá tivesse estado, contudo.
Tudo coisas da sua imaginação.
4. O olhar anónimo dos estranhos que passam a rua, que
estão na esplanada, de fim-de-semana, na sala de aula, no restaurante, na praia
imensa, de férias. A presença do ceguinho que pede no metro. É sempre o mesmo?
O olhar anónimo lá no trabalho, lá no ginásio, lá na rua e no bairro. O olhar
revisto de quem não temos visto e por isso não nos vê. O olhar que nos ignora
de quem nos dá um encontrão e nem pede desculpa. Os olhares indiscretos de quem
não sabemos que, ou se, nos olha ou vê. O olhar de 60.000 espectadores de
futebol in loco, ao vivo, e dos telespectadores em todo o mundo.
5. Também espreitamos. E escondemo-nos. Tornamos visível
o que o outro acha invisível: na emboscada erótica e polémica.
6. A presença anónima das vidas passadas. O que pensaria
o avô? E a avó? E o amigo R. da infância? A presença de um olhar invisível a
quem somos vulneráveis, sem metafísica a não ser a natural.
7. A ausência total de olhar. A ausência total de si? Ou
só do olhar de alguém? Quem?
8. Quem levantamos com o nosso olhar? Quem negamos quando
fechamos os olhos?
9. Coup de foudre: olhar e ser olhado, ver e ser visto.
Sem somatório: um par de olhos mais um par de olhos. Não. A vida:
totumanalyticum. O todo é mais do que a soma das partes. Hendiadyoin. Como ela
era... Como nós éramos. Como eu era.
10.
"Der König Oedipus hatein Auge zuvielVielleicht." ("O rei Édipo tinha um olho a mais, talvez"),
Hölderlin. InlieblicherBläue.
Viuvez
Eu hoje vi-me. Estava diferente. Lá ao longe, dobrou uma
esquina e desapareci. Fui a Oriente, atravessei a cidade toda. Não ia lá há
tantos anos.
Onde fica uma parte da cidade, quando lá não vamos? A sua
localização geográfica não é a sua forma de acontecer. É onde alguém vivia e o
que lá íamos fazer tinha sentido. Quando deixa de ter sentido e deixamos de ir
ter com alguém, essa parte da cidade desaparece, não vamos lá fazer nada, e com
a pessoa esse alguém volta ao campo da latência, à letargia.
Passei pela escola da infância e há ainda muitas vozes de
todos os que eu fui: no colégio, na natação, nos bairros da escola e da
piscina. São camadas diferentes e não coincidentes, mas que ficam confusas na
nebulosa da memória. Quando foi que isto e aquilo me aconteceu? Onde estão toda
a multidão de eus que eu fui e sou, explodidos por tanta gente, a habitar
mundos de sentido que ressuscitam quando os revisto e adormecem quando me
afasto.
Às vezes Lisboa toda é latente e eu letárgico. Mergulha
para onde? A cidade inteira transita para um campo da lucidez e submerge
escondida. Eu sou a representação que os outros têm de mim e há tantos eus
quantos os outros sujeitos de representação.
Também eu mergulho para um campo de latência, submerso no
esquecimento de alguém. Eu sou esquecido por alguém, desapareço para alguém.
Fui.
É assim que os outros se apagam, no tudo que
representavam representam nada: sombras na escuridão, vultos sem rosto, uma
multidão de sombras de vidas passadas que coincidiram outrora com a minha.
Estão desaparecidos os outros que estiveram comigo e todos os eus e os si
próprios de mim.
Que é feito delas? São felizes? Estarão vivas essas
pessoas todas do meu passado a serem minhas contemporâneas.
E nós quando não somos representados por ninguém que
somos? Quem nos acende e ressuscita? Quem nos dá o ser ao ter-nos por perto?
Quem é esse quem? Quem nos nomeia? Que olhar é esse?
Um ponto de vista de nenhures? E somos nós representados
pelo pensamento de ninguém? Podemos ser ninguém para ninguém? Podemos estar
numa abertura de ângulo cego. Tudo o que é decisivo pode estar tapado e os
outros não aparecem. Nem eu próprio me enxergo. E praças da memória cheias de
pessoas que puderam ter sido e que são fantasmas apenas presentes no passado,
que não ouvem o que lhes dizemos, olham para nós e não nos reconhecem. Outras
vidas de outras vidas. Sou também o seu fantasma. Somos os fantasmas das vidas
dos outros. Se calhar nem nunca encarnamos nem fizemos corpo com ninguém. Ou
então só nos encontramos com alguém no seu corpo sem chegar à sua alma.
Eu hoje vi-me. Estava diferente. Lá ao longe, dobrou uma
esquina e desapareci.
Os gregos diziam que cada ser humano era "viúvo de
si próprio."
Eu não sou do *vosso grupo* mas louvo e muito a boa palavra escrita .um luxo poder ler. Que agradeço.
ResponderEliminarVossa leitora. Espartana a comentar mas sincera na admiração.