Há dois modos de atacar um conto.
Uma, é mobilizar imediatamente uma escrita que nos suspende a descrença e devolve ao
entusiasmo que inocula de energia a palavra, e dou dois exemplos, o primeiro com o
arranque de Fala-lhes de Batalhas, de
Reis e de Elefantes, de Mathias Énard:
«A noite não comunica com o dia. Arde
nele. Levam-na para a fogueira ao alvorecer. E, juntamente com ela, a sua
gente, os beberrões, os poetas, os amantes. Nós somos um povo de degredados, de
condenados à morte. A ti não te conheço. Conheço o teu amigo turco; é um dos
nossos. A pouco e pouco desaparece do mundo, engolido pelas sombras e pelas
suas miragens; somos irmãos. Não sei que dor ou que prazer o empurrou para nós,
para o pó de estrela, talvez o ópio, talvez o vinho, talvez o amor; talvez
alguma obscura ferida da alma, bem escondida nos recessos da memória.»,
o segundo é a abertura do capítulo III de As Núpcias de Cadmo e Harmonia, de Roberto Calasso, onde se lê:
«Delos era um dorso de rochedo
deserto, e navegava seguinte a corrente como uma haste de asfódelo. Aí, onde
nem os infortunados servos se vão esconder, nasceu Apolo. Naquele penedo
perdido, as únicas que pariram antes de Leto foram as focas. Havia, porém, uma
palmeira a que a mãe, sozinha, se agarrou. Enterrando os joelhos na erva
escassa. E Apolo surgiu. Nesse momento, tudo, desde os alicerces, se
transformou em ouro. Era também de ouro a água do rio, e as folhas de oliveira.
Esse ouro deve ter-se expandido para as profundezas do mar, porque fez ancorar
Delos, que, desde então, deixou de ser uma ilha errante.»
Mas podíamos também ter citado a frase de abertura do livro: «Na praia de Sídon, um toureio tentava imitar
um gorjeio amoroso.»
O outro processo envereda pela entronização imediata do
leitor no enigma. É o acontece com esta anedota que conta Tcheckov: "Um
homem em Montecarlo, vai ao casino, ganha um milhão, volta para casa,
suicida-se".
O que temos aqui? A tensão que organiza a loucura normal. Não há quem não
queira saber o que se passou para o protagonista adoptar este comportamento
paradoxal.
Adianta Piglia, a quem fui buscar este exemplo, que um
bom conto narra sempre duas histórias, a manifesta e a oculta (achado meio
freudiano mas que a minha prática confirma).
Daí que Hemingway não desacertasse quando referia que um
texto flui quase automaticamente quando achamos para o seu arranque algo de verdadeiro, o que, sublinhe-se, não
significa algo de lógico mas antes o que entreabre, no espaço amorfo da rotina,
outra dimensão, irredutível a qualquer função ou simetria; uma duplicidade.
Sempre que consigo “ferir” o texto logo no seu arranque,
ele desdobra-se diante de mim, convulso e estruturado até ao fim, sem que, a
meio, me estorve qualquer cortina opaca.
O que penso ter achado hoje para uma novela curta, ao escrever:
«Inventamos o amor para que Deus não se suicide!».
O resto é para ler depois.
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