Recuperei uma palestra, que julgava perdida, e que dei no Instituto Camões, em Maputo, em 2009. Aqui fica:
1
A Catábase designava, na Antiguidade, a viagem
iniciática ao Inferno. A que foi empreendida por Ulisses, no intuito de
consultar Tirésias, ou por Eneas ou Orfeu; a que desbaratou o siso de Perseu.
Há um inevitável factor de desmesura neste
itinerário, cujo alvo inconfessado, para além do desafio de sobreviver à
experiência, visa reactualizar a ressurreição que juntou as partes despedaçadas
de Orfeu/Osíris numa nova unidade ou síntese, sob o regime de um olhar
renovado.
Pessoa, Herberto, Lispector têm precisamente a
ligá-los a desmesura, a hybris grega,
uma propensão a espreitar por cima do parapeito que delimita os horizontes do
representável e uma inclinação para passarem do subjectivo para o transpessoal.
Mas já lá chegaremos.
Escreveu Pessoa: «Os classificadores de coisas, que são aqueles homens de ciência cuja
ciência consiste só em classificar, ignoram em geral que o classificável é
infinito. Mas no que consiste o meu pasmo é em que ignorem a existência de
classificáveis desconhecidos, coisas da alma e da consciência que se encontram
nos interstícios do conhecimento» (citado em Valente:2002:41).
Muitos versos de Pessoa dão testemunho destes
“classificáveis desconhecidos”, versos que não deveríamos ler como metáforas
mas como afrontamentos, projecções ou catarses, pois repetidamente a sua obra
testemunha que o poeta viveu a experiência de uma desestruturação da
consciência, da qual se encontram indícios, sobretudo, em poemas de
Fernando Pessoa ortónimo. Pergunta-se explicitamente em A Múmia, «De quem é o olhar /Que espreita por meus
olhos?», ou leia-se esta descrição, num dos sonetos de Passos da Cruz:
«(...) A
noção de mover-me
Esqueceu-se
do meu nome.
Na alma
meu corpo pesa-me.
Sinto-me
um reposteiro
Pendurado
na sala
Onde
alguém jaz morto.
Qualquer
coisa cai
E tiniu
no infinito.»
Esta estrofe dá a ver, com a violência de uma
fractura exposta, uma clara dissociação da consciência, numa montagem muito
rápida. À disjunção do nome associa-se a ameaça da “queda” por excesso de
gravidade do corpo, ao que se segue o cadáver e a metempsicose, com o sujeito
poético a “encarnar” num reposteiro; finalmente, os últimos dois versos atestam
algo de tremendo, uma impotência diante de forças maiores, insubordináveis, que
nem a morte afastam, pois tinir no
infinito é como não tinir.
Um susto irreparável, portanto, que aplaina a
veleidade de crer-se útil qualquer estabilidade identitária (para quê, tinir no
infinito?) face à indefectível oscilação dos nomes e que conhece o seu
contraponto e defesa, no que registou o heterónimo Carlos Pacheco: «Sentir a poesia é a maneira figurada de se
viver./ Eu não sinto a poesia, não porque não saiba o que ela é/ Mas porque não
posso viver figurativamente».
Sobrepuja, deste modo, em Fernando Pessoa a
justaposição dos planos ontológico e espiritual, operando a literatura como a
catapulta de acesso à metanóia – uma
mutação da vida e da consciência.
O que torna a metanóia imperiosa? A evidência de
estar imbricada na experiência espiritual a questão do Mal. A metanóia será,
corolariamente, o resguardo de reversão face à presença do Mal Absoluto – essa
entidade que separa e dispersa por força da sua profusão não integrada
dos símbolos. Não se estranhe assim, detectou José Gil, que Deus seja um termo
que se impõe constantemente nos poemas de Campos «para indicar o ponto
último de um absoluto que o poeta quer atingir: o ser tudo e todos os outros,
viver tudo de todas as maneiras e”amar as coisas como Deus”, como se lê em
Passagem das Horas» (Gil: 1993:20) .
Também Bernardo Soares – continua José Gil –
anseia por, a expressão é do próprio, “descascar as sensações até Deus”, no
ensejo de conseguir “ver o Polícia como Deus o vê” (Gil:1993:20).
Caeiro, pelo seu lado, unifica todas estas contradições,
atingindo a realidade das coisas sem as deformar, conclui José Gil.
Qual é o conseguimento de Caeiro, aquilo que leva
Pessoa a considerá-lo seu Mestre, ao ponto da sua escrita se ter transformado
depois da erupção de O Guardador de Rebanhos?
Caeiro chegou à arte de esvaziar, ao descasque da
“doença dos símbolos”. Caeiro – elucidou José Gil com uma enorme clareza - diz
as coisas, os seres, para que eles sejam eles mesmo e não para os congelar
naquilo que eles são para nós. Diz a rosa com a linguagem da rosa, as cores são
cores na cor e não na asa da borboleta. Caeiro remove das coisas o halo de
subjectividade, de juízo, de opinião que as recobria e restitui-as a alèthéia, essa verdade grega que deve ser entendida como ausência do esquecimento,
ou o levantar do véu que oculta.
De que modo se alcança esse descascamento essencial de Bernardo Soares, que nos devolve ao
olhar inaugural, à perspectiva do alienígena que recém-chegado à terra mira
pela primeira vez as coisas na sua singularidade e diferença - subtraídas ao
pesado manto das suas intersecções?
Chega-se lá por uma inversão das categorias, um
desencaixe sucessivo dos dispositivos lógicos que governam a razão, despertando
o falante para novas paisagens até então obstruídas pela ganga da memória:
«Procuro
despir-me do que aprendi
Procuro
esquecer-me do medo de lembrar que me ensinaram
E raspar
a tinta com que me pintaram os sentidos
Desencaixotar
as minhas emoções verdadeiras,
Desembrulhar-me
e ser eu, não Alberto Caeiro,
Mas um
animal humano que a natureza produziu”.
Rimbaud, na célebre carta ao seu professor
Izambard em que dá como desígnio do poeta a Vidência, explicava o seu método: «Trata-se de chegar ao desconhecido pelo desregramento de todos os
sentidos». É inteligível uma correspondência entre o “descascamento essencial”
de Bernardo Soares e esta “exaltação dos sentidos” até à sua despersonalização
proposta pelo autor de uma Temporada no
Inferno; e apesar da diferença de recorte entre o método negativo de Soares
e a emulsão em contra-luz de Rimbaud o objectivo coincide.
O desenlace desta aventura pode germinar a
loucura, devido à obliteração de um ponto de fuga que impeça a lógica de se
tornar numa estrela negra, como,
veremos adiante, acontece na paranóia. A loucura, que Fernando Pessoa sempre
temeu e que testemunha pela pena de Bernardo Soares: «Minha alma é um maelstrom negro, vasta vertigem à roda de um vácuo,
movimento de um oceano infinito em torno de um buraco em nada, e nas águas
bóiam todas as imagens que vi e ouvi no mundo – vão casas, caras, livros,
caixotes, rastros de música e sílabas de vozes, num rodopio sinistro e sem
fundo» (citado por Gil:1993:61), vertigem que não cessa e se prolonga noutro fragmento: «A vida é oca, a alma é oca, o mundo é oco.
Todos os deuses morrem de uma morte maior que a morte. Tudo está mais vazio que
o vácuo» (citado por Gil:1993:73).
Este estado, que antecede o Inferno, desprende-se
normalmente de um excesso de
serendipidade. A serendipidade, técnica muito apurada por Sherlock Holmes,
designa a arte de transformar detalhes insignificantes em indícios, logrando, e
paradoxalmente, reconstituir um puzzle através das suas “zonas cegas”. Método
que substantiva o engenho dos detectives, nos filmes policiais – eis o lado bom
da serendipidade. O seu lado mau des(p)enha-se na paranóia, estado alterado da consciência, onde, mercê da sua
presença excessiva, abafadora, todos os sinais, objectos e palavras são de tal
forma saturados de conexões e significados que parecem conspirar contra nós,
decepando a inocência do mundo, ou decalcando-a em constelações de sentido que nos visam. Fica tudo saturado de sentido.
Lê-se numa nota de Pessoa de 1910, ainda em
inglês: « Há para mim – houve – toda uma
riqueza de significações em coisas tão ridículas como a chave de uma porta, um
prego na parede, os bigodes de um gato. Há para mim toda a plenitude de
sugestões espirituais numa galinha que atravessa a rua com os seus pintaínhos.»
(Pessoa:86:22)
Quem está possesso
e navega nesse limiar não descontrai, não encontra fuga, um patamar para a
distracção da óptica, o bigode do gato ressalta como a chave que faltava, o
mais ínfimo pormenor conta e confirma
– o exterior, numa brutal introjecção, vaza-se inteiramente no interior.
Mas não é sempre negativa a serendipidade: quando
vivemos saudavelmente num estado poroso, ler os sinais pode trazer-nos coisas
surpreendentes.
Para escrever esta comunicação, andava há semanas
à procura de um verso de Pessoa que não encontrava. Anteontem adormeci no sofá
da sala e acordo a meio da noite. Olho para a parede e soergo-me num susto: a
sombra recortava o deus Ápis, à minha cabeceira, com o seu tronco de homem e a
sua distinta cabeça de touro. Olho para a varanda e percebo que uma camisa
estendida, presa por duas molas, e uma caixa esquecida no parapeito da janela,
montava a aparência daquela sombra. Suspiro aliviado, e então repego num livro
de José Gil que me faltava acabar. Reparo num capítulo intitulado “O Egipto e a
Escrita Heteronímica” e, intrigado pela coincidência, retomo a leitura por aí. E
não é que encontro, citado, o verso de Caeiro que me fugia há semanas e que diz
assim: «ser real quer dizer não estar
dentro de mim»? É tramado.
Quem
está, pois, dentro de mim? Eis o
fulcro do susto. Eu ser-me abrupta e
totalmente exterior é o que qualifica a percepção a que Rimbaud chamava a
“visão objectiva”, a que é captada por um crivo essencialmente não subjectivo e
nos afasta do empírico (Rimbaud foi, com efeito, após insinuação de
Jean-Paul, quem primeiro fez sua a verdade da impessoalidade da linguagem e da
sua particular independência de toda a subjectividade).
Esta passagem da mira subjectiva para uma pauta
transubjectiva da realidade foi a meta de alguma modernidade, desde os seus
primórdios. “Ver o polícia como Deus o vê”
não é vê-lo como eu o vejo, ou o
ladrão, ou a mulher, mas como Deus vê – em 360º, como na breve amplitude
inaugural e totalitária do amor.
Rimbaud, o que na tradição literária ocidental
mais explicitamente falou de uma presença de impessoalidade na linguagem,
jurava: Eu é um Outro, e dizia Pensam-me,
em vez de Eu Penso. Aliás, On me pense,
faz trocadilho com On me panse, que
significa “cavalgam-me”, como quem vinca: sou a sela de Algo maior do que Eu
(Guerdon: 1980:88). O que Pessoa corrobora em Passos na Cruz: “Não sou em quem descrevo. Eu sou a tela/ E
oculta mão colora alguém, em mim”, ou no soneto XI, do mesmo ciclo: “Emissário de um rei desconhecido/ Eu cumpro
informes instruções do além/ E as bruscas frases que aos meus olhos vêm/
Soam-me a um outro e anómalo sentido”.
«Essa
vontade de construir-se fora de si, de objectivar as suas
fantasias ou intuições, tornando-as palpáveis para si e para os outros, é
condição essencial à criação artística», lavrou o poeta e crítico de arte
brasileiro Ferreira Gullar (Gullar:1999:56).
Contudo, previna-se, esta “construção fora de si”
não incita a qualquer idealização mística nem se traduz em supinos olhos em
alvo, subentendo fontes anteriores ao acontecer da obra: é apenas uma refocagem
do olhar, a mutação que, esvaziando o artista dos seus à priori, descondiciona
a sua percepção, fazendo-o captar o mundo dos objectos no avesso do seu uso e
função: numa súbita dimensão de presença.
Podemos agora chegar a uma outra definição do que
significa Catábase, que pedimos emprestada a Jung – ele não se importa. Diz o
psicólogo analítico: «a catábase expressa
o mecanismo de introversão da mente, do consciente em relação às camadas mais
profundas da psique inconsciente. Desse nível derivam conteúdos de caráter
mitológico ou impessoal...»(subl. meu)(Jung:1971:64 ).
Neste fundo
impróprio opera-se a passagem de uma visão subjectiva, ainda psicológica,
para a visão transpessoal – a qual eclode no
exterior do confinamento psicológico.
Vemos deste modo como a poesia, ao contrário do
que alvitravam Platão e Sócrates que faziam da escrita «um divertimento em que o sério não está implicado, que deverá ser
reservado para as horas de recreio, semelhante àqueles jardins em miniatura
compostos artificialmente para ornamento das festas e chamados jardins de Adónis»
(Blanchot: 2002:18), é mais do que um passatempo adestrável e - eles sabiam-no
- pode suscitar riscos insusceptíveis de serem controlados, visto que assalta
as muralhas onde a identidade aquartela uma impressão de domínio.
2
Foquemo-nos agora no segundo convocado desta
noite: Herberto Helder. O Herberto é um poeta de génio, talvez o que mais se
aproxima dessa figura romântica em Portugal, depois de Pessoa.
É tão celebrado como enjeitado por causa do seu
pretenso hermetismo, que não se compadece com a pressa contemporânea e exige
uma leitura por incubação. Ademais acontece que, como lembrou o próprio, «é
preciso achar as chaves – às vezes é fácil, às vezes difícil» (Helder:95:59).
Crê José Gil, e eu comungo, de que ao contrário da
ideia-feita de que a heteronomia tem raízes na esquizofrenia, devem
considerar-se «os heterónimos como o meio de que Pessoa se dotou para escapar à
loucura, conservando-a sempre “à mão de semear.”» (Gil:1994:13). E por isso se
pôde Pessoa entregar às mais excessivas experiências de despersonalização.
Herberto, por seu turno, em Photomaton & Vox, é
muito explícito sobre a tarefa do poeta: «O
dramático esforço de Orfeu, que desce aos Infernos para reunir a sua
dispersão na unidade final do canto, é
tarefa de cada um – e isso nos baste, mesmo que não sirva para nada, além de
servir para a possível salvação de quem nele se empenha.(idem:141)» (sublinhado meu).
Pessoa, através do operador Caeiro, que foi o seu psicopompo - i. é, o guia da sua alma
dilacerada pelas veredas do Inferno -, derivou da vidência desregrada de
Rimbaud para a presciência de René Char – figura com que Blanchot
distinguiu o estro de ambos (Blanchot:2002:34). O mesmo visa o poeta de O Amor em Visita.
Em Photomaton
& Vox, ao estabelecer uma linhagem, Herberto sinaliza em Apollinaire e
Cendrars a técnica necessária a um mergulho no fulcro infernal: «A paciência tinha enfim acesso a uma
extrema intensidade da memória. Era simples ser múltiplo; bastava ter o centro
em toda a parte» (subl. meu), e frisa
adiante: «Esta seria a montagem
ideal; a memória como tecido ininterrupto ou
a permanência rigorosa do imaginário no tempo; e a ilusão do mundo, inesgotável»
(subl.meu).
Há em Herberto uma obsessão extrema quanto ao
papel e às possibilidades da memória. Porquê?
Contemos previamente uma história, um episódio que
acontece à Alice, no final do terceiro capítulo de Alice Por Detrás do Espelho. Depois de passar para lá da sua imagem
no espelho e de abrir caminho no país que era um tabuleiro de xadrez, Alice
penetra num bosque escuro onde, segundo o aviso que lhe deram, as coisas não
têm nome. «”Bom, de qualquer modo é um
alívio... - diz ela – depois de tanto calor, estar dentro do... dentro do...
dentro do quê?, pergunta-se espantada por não conseguir pensar na palavra. Alice
tenta lembrar-se: “Bom, isto é, estar debaixo do... debaixo das... debaixo
disso, ora!”, disse, apalpanda o tronco da árvore.» Alice descobre, de
supetão, que na floresta nada tem um nome, até que se nomeie.
O tremor de Alice diante do traço de apagamento
que afecta os nomes e da sua súbita responsabilidade na renomeação do mundo
associa-se em Herberto ao eco que lhe trouxe a morte da sua mãe quando o poeta
era criança. A mãe que o ensinou a nomear o mundo, iniciou-o também no opaco,
na roedura incomensurável da morte, e, enigma maior, com o poeta nasceu a
palavra e ao mesmo tempo a morte.
A morte chega pela mesma embocadura da palavra.
Esta funesta coincidência repercute-se na pergunta fundamental: pode-se
renomear o que é perecível? É-nos reservada alguma dimensão intersticial que
nos subtraia ao embate e apagamento no destino? Podem achar-se outros
vocábulos, outros ritmos, outras inerências
para a nomeação que contrariem a fagocitação da morte, o seu halo sobre tudo?
O primeiro elemento em que o poeta busca um
antídoto é na água, como Tales de Mileto. E lê-se:
«E através
da mãe o filho pensa
que
nenhuma morte é possível e as águas
estão
ligadas entre si
por meio
da mão dele que toca a cara louca
da mãe
que toca a mão pressentida do filho.
E por dentro
do amor, até somente ser possível
amar
tudo,
e ser
possível tudo ser reencontrado por dentro do amor»
Mas veio a morte e sufocou em aspas incondicionais
o amor da mãe.
Em Húmus,
um dos seus poemas nucleares, assiste-se a uma luta entre o inferno e o sonho. A
palavra, transporte do sonho, incita à metamorfose, como se lê neste excerto,
mas subsiste nela uma cruel ambivalência
regressiva:
«A pedra
abre a cauda de ouro incessante,
somos
palavras,
peixes repercutidos»
A metamorfose contagia o vocábulo “pedra” assim
que é nomeado, munindo-a de uma “cauda de ouro incessante”. Não obstante, de
imediato sobrevém o desmentido da iludida operação alquímica: somos palavras
(ecos), peixes repercutidos. Repercutidos por outrém e não peixes iniciais,
presenças em status nascendis. Reagimos, não urdimos a combustão do
mundo, somos antes a matéria que é ardida – embargada e muda. E a seguir
sentencia-se: “só a água fala nos buracos”. Só a água, o seu fluido proteiforme
adaptável a todos os formatos, é uma energia vivificadora – imune à erosão da
morte, à tremenda iniciativa com que cava buracos em qualquer meteria ou carne.
Como adquirir a memória da água – a sua capacidade
para emergir, singrar, fluir, à tona, em terrenos improváveis? Incide aqui um
dos mistérios da poesia: o punch do
poeta potencia-se pelo despojamento do Eu, se aceitar para si, a volubilidade
da água, uma natureza que flui sem depositar resíduos. Leia-se a seguinte
estrofe:
«Há no meu
esquecimento, ou na lembrança
total das
coisas
uma rosa
como uma alta cabeça
um peixe
como um movimento
rápido e
severo.
um
rosapeixe dentro da minha ideia
desvairada.
Há copos, garfos, inebriados
dentro de
mim
- porque
o amor das coisas no seu tempo futuro
é
terrível,
profundo,
é suave, devastador»
O que se enuncia aqui? A abrir, a constatação de
que que a lembrança total das coisas depende do meu esquecimento. Depois, nesse outro nível da lembrança total, vemos como o peixe a rosa se enfeixam n’Um, duas
manifestações copulativas que reatam uma energia aglutinadora (- Empédocles não
está nada distante desta reminiscência processada por uma lógica copulativa).
Temos por último que os copos e garfos, dois signos da materialidade exterior,
volvem interiores, configurando a promessa de um futuro a um tempo terrível e
suave. Qual a razão desta polaridade? A simples constatação de que despir o ego
para entronizar uma transubjectividade é um passo que nos coloca no limiar do
pavor. E será necessário superar esse medo, será preciso confiar que apesar de “tudo
morrer o nome noutro nome”, num constante deslocamento, como se lê num poema,
isso pode não ser um fim. Basta, se nos situarmos como a Alice no vértice
hipotético da re-nomeação, não descurar a possibilidade de redesenhar o atlas das nossas coordenadas.
Em certas sociedades como o Antigo Egipto a
linguagem tornava verdadeiro o que afirma verdadeiro, sobretudo se esta verdade
é narrada. A própria narração institui um certo poder: repetir o mito é
participar dele, contar um milagre perpetrado por um santo provoca a repetição
do milagre.
Herberto Helder, na súmula que intitulou Ou o Poema Contínuo, na qual abre
pistas e fornece chaves para a sua obra, insiste na vivificação de um mito: o
da ressurreição do incriado – do que,
por não ter sido ainda nomeado, está arredado da aritmética humana.
A ressurreição do incriado pode ocorrer na
(re-)montagem do poema, se lhe acorda uma memória outra, estabilizada pela
plasticidade que emerge de uma nova coincidência da linguagem consigo própria,
momento em que tudo flui de novo como água. Por isso, o poeta alude (em
P&V) «ao que tem lugar na
ressurreição do instante imediatamente anterior à morte». Como se o
moribundo virtual, num golpe de rins, “florescesse” para vida e não para morte
– e, cristicamente, ressuscitasse. Faz sentido convocar aqui um filósofo
romântico, pela pena de Eugénio Trias: «Que
quiere decir existencia? (em Shelling):
ser fuera de toda causa, ser lanzado, fuera de la causa».
O objectivo está desenhado: forçar a ressurreição
do instante anterior à morte da mãe, reactualizando nesse avatar a ductilidade
da vida anterior à calcificação dos nomes e das categorias. Voltar ao
indistinto caos amniótico, uterino, onde a criança sonha – ainda com o inferno
muito longe de si. Ou, no mínimo, propulsionar na intensidade de um nó
(uma sílaba percutida até vibrar) a ressurreição futura do filho: aí, o poeta,
desprendido do arrepio sacrificial do tempo (queda ilustrada em metáfora
brutal: «o corpo é um buraco onde cai o
corpo»), vê-se fora de toda a causa.
Daí que, no poema que culmina a montagem de Ou o Poema Contínuo, adquira uma
enorme importância o eco das vogais da palavra redivivo.
Redivivo significa: aquele que voltou à vida, ressuscitado - e o som das suas
vogais, se repetirmos contínuamente a palavra em voz alta, abre-se em delta
como o mantra om dos budistas.
Explica Roberto Calasso que «para os videntes
védicos a evanescente substância sonora da sílaba é celebrada como o
indestrutível, como “o não fluente”, a-ksara. De todas as coisas se pode
espremer um sumo, um sabor, “rasa”, diz o Jaiminia Upanisad Brahamana.
Mas não da sílaba, posto que a sílaba é já em si a seiva de tudo. Por isso
subsiste, imaculada, inesgotável. Tudo flui da sílaba (...) E quando mais
tarde, aksara, a Grande Sílaba, é identificada com um som, este será
Om, que é uma interjecção e não um substantivo.»
A percussão das consoantes no vocábulo «redivivo»,
a suspensão dos “is”, a metamorfose do “e” inicial em “o” final, imprime
igualmente à sua massa sonora uma circularidade que recoloca a última sílaba do
verbo no ponto de partida, como se abrisse uma brecha no tempo linear ou fossem
admitidas mudanças no fluxo do tempo, tornando-o mais manejável, com inversão
de marcha, reversivo.
Fecha assim o poema:
«Redivivo. E
foi por essa mínima palavra
que
apareceu
não se
sabe o quê que arrancou
à folha e
à esferográfica can-
hota a
poderosa superfície
de Deus e
assim é
que te
encontraste redivivo
tu que
tinhas morrido um momento antes,
apenas.»
O poeta redivive pelo negativo de Deus – superfície arrancada à página.
Esclareça-se que Deus é em Herberto Helder
(P&V) uma potência que se manifesta pela unidade rítmica, uma
espécie de inteligência não adstrita – como o inconsciente – que nos fascina,
hipnotiza, e dispersa a atenção, até
nos perder no extravio de si mesmo. E escreve: «Deus dorme, dentro de um sono pesadíssimo e por isso pesa tanto aquela
cabeça». E nós somos os seus sonhos dispersos.
Herberto participa da convicção, que nos chegou do
sono de Brahma e penetra em Santo Agostinho, ou Nicolau de Cusa, de que Deus é
«contracção» ou absconso - Deus
absconditus, escondido de si mesmo. O mesmo Deus de Jacob Bohme, de
Schelling: «Dios es el ser que dispone de
un fundamento que es matriz, que no es Él mismo, sino una natureza oculta».
(Trias:1995:142) O que nos suspende num abismo sem fim.
Por outro lado, em Herberto rastreia-se também o
enlaçe com o aforismo luminoso de Héraclito: «Os imortais são mortais e os mortais imortais. Eles trocam
perpetuamente a vida e a morte». A extrema dispersão de Orfeu, no Inferno,
será a mesma de Deus e cabe ao poeta unificá-la, superando o particular ritmo
da retirada, ou da ocultação do divino (e a melancolia que deixou como rasto),
e despertar na passada um novo Deus, uma relação inversa, uma nova instância rítmica.
Avisava Rimbaud, falando de Deus: «Quando
eu for toda a vossa memória – seja aquela que sabe garrotar-vos –
estrangular-vos-ei», num ímpeto tão semelhante ao que exortam os mestres
zen: «Se encontrardes Buda, matai-o!».
Desafio que Mallarmé também não deixou por mãos alheias: “antes de aceder a
qualquer contacto com o divino, impõe-se, portanto, o assassinato de um ser
chamado Deus” ( CALASSO:95:142).
Como Orfeu, o poeta é aquele que percorreu toda a
distância do profano ao sagrado e cuja memória é vidência: a fórmula é de
Mandelstam mas elucida o desígnio herbertiano, em quem a imaginação emulsiona
o pensamento mágico, única energia que perserva o rio do não-esquecimento; não
para reiterar a deificação mas para despertar no sagrado a auto-reflexividade
que torna reversível o tempo e traz à luz a sua lei: não somos, devimos.
3
A Paixão Segundo GH, da brasileira Clarisse Lispector é o terceiro
apeadeiro nesta nossa viagem por terras do Tártaro.
A novela, a sermos sucintos, narra “o encontro de terceiro
grau” entre uma dama de classe média e uma barata, no devoluto quarto de criada
do seu apartamento.
Um feixe de pequenas incidências ordena uma
experiência de teor místico, a partir desse breve encontro.
Primeiro ocorre “a colisão”, num pasmo doméstico,
que desencadeia o asco físico e o intempestivo esmagamento da barata na porta
do guarda-vestidos. Depois a reflexão desperta a consciência de uma identidade
cénica face a face com o tempo imemorial que a periplaneta americana
representa, e avoluma-se em GH a sensação de não passar de um mero atributo da
barata, na sua imperceptível longa duração: «o mundo não tinha mais sentido
humano, e o homem não me tinha mais sentido humano» (GH: 66).
Segue-se «a gradual redução dos sentimentos,
das representações e da vontade, a perda do eu» (Nunes:1989:63), o que abre
espaço para o contacto; ou antes, para o desbordamento do ser esvaziado numa
identificação com o ser indiviso, instaurando aí uma situação de não-dualidade.
Por fim, tem lugar a tentativa de «confirmar o seu estado de união, ingerindo a
massa branca da barata esmagada, redimindo-se na e com a própria coisa em que
participa» (idem:65).
Em que é que, afinal, participa GH? «Eu entrara
na orgia do Sabath. Agora sei o que se faz no escuro das montanhas em noites de
orgia. Eu sei! Sei com horror! Gozam-se as coisas de que são feitas as coisas –
esta é a alegria crua da magia negra. Foi desse neutro que vivi – o neutro
era o meu caldo de cultura. Eu ia avançando e sentia a alegria do inferno».
E mais adiante atesta a personagem: «O que
sai da barata é: “hoje”...»,(79).
Em certas narrações medievais o feliz encontro do
monge com um pássaro e um jardim pode unificar subitamente o mundo e tranformar
a percepção do humano, abrindo-lhe o ouvido ao entendimento da línguar solar,
“a língua dos pássaros”. Então, pode ter lugar “a visão do paraíso” e o tempo
dilata-se. A personagem adormecia debaixo de uma figueira-da-índia (é um
exemplo), a ouvir um pássaro, e acordava 100 anos depois, convencido de que
acordara para “hoje”, dado que esse momento de confluência, de unidade com todo
o vivente, criara uma angra de refúgio para o instante que, tendo-o resguardado
das tormentas da manifestação, lhe ampliara incomensuravelmente a duração (cf.
Valverde:82).
O choque de G.H. é similar. Deparar com a prova
de uma presentificação irredutível é coisa que a sidera, dado fugir à sua pauta
de representações e supor algo de anterior ao humano. Mas tem mais: o
seu “encontro” fá-la concretizar que – na esteira de Schelling, segundo a leitura
de Trias – não há dissociação entre um “eu” e um “não-eu” (a barata), visto que
aquilo a que chamamos não-eu não passa de um eu latente (a externidade
imemorial do “hoje”), um eu adormecido (à ombreira do efémero).
Consequentemente, de que modo afastar, doravante,
a clarividência de que o temporal emerge no humano como um colocar-se fora
de si, num derrame que não se escamoteia? Aí, o inexpressivo (a massa
branca da barata, “o agora do hoje”) exposto finalmente à luz revela-se diabólico:
«Eu estava sendo levada pelo demoníaco.
Pois o inexpressivo é diabólico. Se a pessoa não
estiver comprometida com a esperança, vive o demoníaco. Se a pessoa tiver
coragem de largar os sentimentos, descobre a ampla vida de um silêncio
extremamente ocupado, o mesmo que existe na barata, o mesmo nos astros, o mesmo
em si próprio – o demoníaco é antes do humano. E se a pessoa vê essa
actualidade, ela se queima como se visse Deus. A vida pré-humana divina é de
uma actualidade que queima» (97).
Esta actualidade
insuportável leva GH a compreender finalmente que na vida não podemos pôr o
acento sobre x coisa em detrimento de outra e que aceitar todos os elementos da
vida dilui as polaridades, integra os contrários, o belo e o horrífico, o
humano e o inumano, o sentido e o absurdo, o evanescente e o impronunciável.
Concomitantemente, o demoníaco é a tentação que precede a coagulação das
categorias mentais.
Mas recapitulemos. Uma senhora, de estatuto e
identidade bem definidos, entra no quarto da criada, que se despedira, para ver
se na partida esta deixara alguma coisa para arrumar (subtil inversão dos
papéis) e encontra um quarto imaculado, onde avulta peremptório, um
guarda-vestidos. Abre-o e depara com umas antenas que exorbitam de um coágulo
escuro, de uma fuselagem que brota do começo do mundo. O que a abisma na
danação do tempo (uma porta, e os seus gonzos: eis uma clara isotopia do tempo)
e na apalpação da impercepível cegueira do seu passo: «A barata é um tamanho
escuro andando» (109).
A criada (ausente) é então a metáfora da nossa
forma de empregar o tempo (sequencial, ordenada, causal “faz isto, faz
aquilo...faz isto para aquilo”),
enquanto a barata funciona como o nexo que activa a anamnese no
perdulário caminho de uma vida. Processo que nos catapulta ao encontro do incondicionado.
E, imperturbável, o mistério canibaliza a acção:
o que está para além da linguagem e prescinde de palavras de pensamento
colhe um sentido que a palavra cinde? «Mas eu tenho muito mais, à medida que
não consigo designar» – diz GH. Então escrever, admite Lispector no posterior Legião
Estrangeira, é o modo de quem tem a palavra como isca: a palavra pescando o
que não é palavra. Pescando no inapreensível, inumano, Todo, como se lê em GH:
«Enfim, quebrara-se realmente o meu invólucro, e sem limite eu era. Por não
ser, eu era. Até o fim daquilo que eu não era, eu era. O que não sou, eu sou.
(...) Da organização geral que era maior que eu, eu só havia até então
percebido os fragmentos. Mas agora, eu era muito menos que humana – e só
realizaria o meu destino especificamente humano se me entregasse, como estava
me entregando, ao que já não era eu, ao que já é inumano (...) E tal entrega
é o único ultrapassamente que não me exclui. »
Talvez a urgência do humano ressalte, se
entronize, depois de acolhermos a inumanidade que nos é intrínseca.
Uma tensão que se estende aos escritores destas
notas e que se revêm na ideia de que compartilhamos a alteridade, ainda que não
folguemos nela.
Mas, entretanto, eis Orfeu refeito, o ser
descascado, e o polícia visto como Deus o vê. E como a sua irmã, que nele
sempre confiou - ou não tivesse toda a
verdade uma forma paródica.
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