Posto de novo, com emendas e alguns acrescentos ao texto, feitos para esta edição da Relógio d'Água, o meu posfácio ao livro de Jaime Rocha, que agora tem esta bela reedição. Que o livro venda e seja bem acolhido, são os meus votos:
«Conhece
o livro de Jaime Rocha, A Loucura Branca,
a sua terceira edição. Congratulo-me por isso. Tempos houve em que a singularidade
do universo literário de Jaime Rocha não lograva leitores ou a atenção crítica.
Fui desde o princípio um dos raros entusiastas e inclusive responsabilizei-me
pela segunda edição da novela, na defunta Íman,
na fruste tentativa de chamar a atenção para o livro. Treze anos passaram e o
autor ganhou leitores, prémios, uma certa aura, a ponto de se tornar plausível
uma terceira edição: o tempo trabalha na legitimação do genuíno.
Pediu-me
o Jaime que revisse o posfácio que então escrevi para o livro. Relido o texto,
pouco tenho a acrescentar, até pelos motivos mais simples: creio que no essencial
está lá tudo o que saberia dizer sobre o livro e ademais o modo discreto como o
livro se volatizou na voragem do fluxo editorial, que começava então a
configurar a explosão demencial que torna invisível oitenta por cento do que se
lança no mercado, dá ao texto um carácter pouco menos do que inédito.
Daí
que o repita, com algumas alterações de pormenor e o acrescento de dois
páragrafos, esperando que esta vez A
Loucura Branca reclame o seu momento de atenção:
A tremenda afasia das
sextas. Ter de acabar o posfácio a uma sexta, sem poder gozar a preguiça, as
hesitações, a frondosa irresolução dos sábados e domingos, enrodilha-me o corpo
numa agonia.
Resolvo tomar um banho de
imersão, frio, a fim de procurar no choque da temperatura a faísca.
E à primeira submersão da
cabeça distrai-me o que ouço: o latido distante de um martelo, um motor não
identificável, a vizinha de cima a queixar-se à filha da vizinha de baixo, o
chuchar de um bebé no pé de uma boneca de plástico, o matraquear de uns dedos
num teclado. A água amplifica os sons, dá-lhes recorte e detalhe – o som que viaja
pelos canos, subitamente ubíquo.
E então ocorre-me: a
escrita de Jaime Rocha é a de quem anda pelas ruas com a cabeça submersa nos
rumores do mundo, nas suas dimensões dúplices, ocultas, cifradas, afastando da
sua frente, com gestos de nadador, as cortinas do aparente.
Escreveu Goethe: «Não
se morre. Apodrece-se em certos lugares, amadurece-se noutros». Se Goethe
se referisse à ambivalência das paisagens sedimentadas num corpo esta sua formulação
podia reportar-se àquelas conhecidas e irracionais figurações onde rostos e
olhos heterotópicos deixavam de se alojar na cabeça do humanóide para errar por
outras partes do corpo, em busca de um lugar onde: homologador.
Vítor, a personagem de A
Loucura Branca, está diante da mesma inquietação ulcerada: onde firmar os
olhos, no/ do corpo, se a memória – ponte levadiça – não tem um fosso que a
salvaguarde da melancolia?
Cabe-lhe assim vaguear,
sofregamente, no torpor de quem não queria mas foi posto de vigília, a reboque
de um conjunto de circunstâncias que lhe ilumina as dimensões reversas,
inaparentes, cifradas, do real.
Para Aristóteles, a
melancolia tinha dois pólos: a loucura e as úlceras. Victor, após o
inexplicável suicídio de um amigo fica num estado catapléctico, enfermiço.
Vomita. Até aquilo que se conectava com as suas manifestações subjectivas
enquistar. Tumor, anuncia o médico, diante duma tão evidente desobediência do
corpo. E onde? Algures, pelo meridiano das úlceras.
Mas a súbita “erupção” de
um “corpo estranho” na massa de um corpo que a rotina conformara a uma vida
amorfa, de uma cartilaginosa repetição formal, fá-lo afrontar pela primeira vez
a realidade e reconhecer (em si) uma presença informe, incognoscível. Quem era,
fora do seu uso? Entre si e si havia um espaçamento. Daí que Vítor, durante o
repouso a que a doença o obriga, descubra que nem nunca conheceu
verdadeiramente a casa onde habita - «Vítor ia olhando para os objectos com
espanto. Nunca tinha dado por um crucifixo no quarto, nem reparara que os
reposteiros estavam decorados com formas de árvores de fruto.» -; ou sequer
reconheça a relação espacial entre os objectos que a mobilam. Pior, a sutura do
seu corpo desdobra-se numa sutura óptica, pois à medida que, pela primeira vez,
vê as coisas como elas são, espalmadas à sua frente, mais se aproxima de uma
fractura ontológica, de uma espécie de terror praesentis que
tudo transfigura.
Tanto em A
Loucura Branca, como no posterior Os Dias de um Excursionista,
Jaime Rocha expõe universos de um concretismo diabólico, que fazem resvalar os objectos
e gestos triviais para a sobrenaturalidade: «Vítor pediu um café, estendeu a
mão por cima do balcão, viu os dedos suados que se mexeram uns contra os
outros. Nunca antes observara esta posição dos dedos, ora aproximando-se, ora
afastando-se, para depois se fecharem e desaparecerem na palma da mão. A
chávena do café ficara encostada ao polegar. Num dos dedos tinham nascido
cabelos finos e noutro ressaltava uma pequena borbulha arroxeada parecida com
um confeite. Pela primeira vez sentia que possuía uma mão, mas não conseguia
mexer os dedos. Via-os mexer, sabia que era a sua mão, mas era como se os dedos
pertencessem a outro corpo, como se a mão continuasse por um braço artificial
que se tivesse colocado atrás de si e se houvesse colado ao seu ombro.»
Ambas as novelas se podem
ler como paisagens cristalográficas onde – o que é comum às narrativas
fantásticas – a potencialidade visionária da mente humana amplifica os recortes
patológicos, refractando sombras e convertendo o mundo das coisas simples em
signos suspeitos, ameaçadores. Funda-se aqui o drama ou o pasmo das personagens
de Jaime Rocha: estão sideradas pelos segredos ou pelo inadmissível que irrompe
atrás das portas que tantas e tantas vezes atravessaram, como se debaixo do
tapete da realidade houvesse não apenas a sujidade acumulada por descuidadas
mulheres-a-dias mas sobretudo o rol de temores e mistérios para que não
estávamos aptos, para o qual nunca ficaremos aptos.
Diz o narrador, em A
Loucura Branca: «Teme-se o que se desconhece, por isso, apesar de ter
nascido naquela paisagem o seu temor deveria vir de outros segredos que só
agora experimentava».
Em Os Cadernos de
Malte Brigge, Rilke dedica meia página à observação do andar de um
transeunte a quem domina um estranho tique, que o obriga a dar um saltinho com
meia-rotação do pé a cada três passadas. Era uma criatura dominada pelo que
queria ocultar.
Jaime Rocha levanta nas
suas novelas uma galeria de personagens cuja característica comum é exactamente
a de estarem sempre a inventar cenários para camuflarem os seus tiques e
obsessões aos olhos dos outros. Pois o que quer dizer um corpo, senão a
inaceitável mediação de um desconhecido que se intromete entre nós e o tempo?
Neste desajuste o tique
de cada um funciona como a sua inconfessável forma de desvio, de resistência ao
social, no sentido da imediatez daquilo que não domina. Com o risco de a pouco
e pouco o seu carácter (o do tique) se ir sobrepondo ao do seu portador, fazendo
sobrevir o pânico da segregação social. Esta contradição tece uma rede de
gestos impensados, encarnados no irracional que (n)os conduz.
Apurando a sonda, Jaime
Rocha mostra esse manto de inconsciência que recobre os comportamentos e
governa o quotidiano: «O barulhos dos pés em cima do oleado enervava-o. Só
naquele dia compreendeu a razão porque colocara uns chinelos no começo do
corredor, que só serviam para atravessar o oleado»; a consciência dos actos
é sempre posterior ao seu acontecer, o que instala uma dimensão paralela por
onde se vão disseminando as metástases da “loucura normal”.
Sendo que esse manto de
insconsciência também é óptico e, estranhamente, se aparenta à função que
Walter Benjamin, em A Pequena História
da Fotografia (de 1931) atribui à câmara fotográfica: «Se é banal analisar (..) a maneira de andar dos homens, nada se sabe com certeza de
seu estar durante a fração de segundo em que estica o passo. Conhecemos
em bruto o gesto que fazemos para apanhar um fuzil ou uma colher, mas
ignoramos quase todo o jogo que se desenrola realmente entre a mão e o metal, e
com mais forte razão ainda devido às alterações introduzidas nesses gestos
pelas flutuações de nossos diversos estados de espírito. É nesse terreno que
penetra a câmara, com todos os seus recursos auxiliares de imergir e de emergir,
seus cortes e isolamentos, suas extensões do campo e suas acelerações, suas
ampliações e reduções.»
Presa ao mesmo movimento,
mas num impulso contrário, Inês, a falsa-cega que a dado momento o salva de ser
internado, cede à tentação (ao tique)
de penetrar em casas alheias, não pelo fito de roubar mas à cata de indícios
(um extraviado bilhete de cinema, uma conta de supermercado, um bilhete postal)
que, somados, possam recensear os movimentos da verdadeira vida dos locatários
– vasculhando o que neles secretamente difere da vida que relatam, numa
desbordante fantasia.
Esta “loucura”, que
coalesce nos mais irrelevantes sinais, é delatada por Jaime Rocha com o sentido
de humor de um Tati, um humor em surdina, subtil, que desencadeia na ordem do
trivial a sua inescapável natureza cómica: «Quando o médico saiu é que
Victor verificou que era coxo. Ninguém mais dera por isso. A todos pareceu que
ele saltava por cima do gato.»; «Vítor ouviu a rapariga com atenção, tinha
uns grandes olhos castanhos, um sorriso cândido, com um dente molar dourado que
se destacava do resto da dentadura. Reparou que ela ostentava um broche com o
feitio de um pão caseiro, que devia ser o emblema da editora».
Outro aspecto
interessante nos livros de Jaime Rocha é que os comportamentos humanos, apesar
de descritos com uma minúcia estonteante, não nascem propriamente de uma
determinação causal - «A cama já não existe, havia-se partido
numa manhã de domingo em que Vítor se sentira mal e vomitara. Adelaide
lembra-se desse dia porque um dos filhos tinha atirado um vaso ao chão e uns
minutos depois a vizinha tocara à porta a pedir açucar» -, tornando-se
imprevisíveis ou mais propensos a adoptar a plasticidade que reveste o universo
exterior. Tanto A Loucura Branca como Os Dias de Um
Excursionista estão impregnados por uma compulsiva lógica de
transformação que no entanto leva as personagens a confrontar a força do
aleatório. Daí o horror.
Começa pela súbita
irrealidade do olhar e do corpo, que se tornam estranhos (cf. o segundo excerto
citado acima) e acaba na fusão de objectos exteriores no corpo: um misterioso
triângulo de vidro que se encastra na carne de Vítor e lhe provoca uma mutação
do seu aparelho perceptivo.
É fácil aludirmos a Kafka
quando lemos A Loucura Branca mas parece-me mais produtivo
remontar a Dante, autor para quem o homem necessitava de uma metamorfose para
adquirir noutro mundo uma forma definitiva e eterna.
Para Dante o homem era
larva neste mundo, crisálida no outro (sobretudo no Purgatório) e ser completo
ou imago no Paraíso. O Inferno correspondia à maldição de
estarmos confinados numa identidade, numa memória, reféns de um corpo
perecedouro e tão maldito como imutável.
De forma semelhante, em
Jaime Rocha o Inferno não está nos outros, como garantia Sartre, mas no
pequeno, compulsivo e irrefragável tique
que prende cada um à imobilidade que lhe atrasa o ser mutável e resiste ao
fluente devir outro. Porque – e sublinha-se aqui o paradoxo infernal – se por
um lado o nosso tique homologa uma forma de resistência privada à alienação no
colectivo, por outro sinaliza a nossa impotência para superar as nossas
propensões identitárias, o estado larvar.
Diga-se entretanto que, por
incrível que nos pareça, o sistema do medievo Dante era afinal muito mais
aliciante que o grotesco aparato com que o mercado de massas nos impinge um
turismo das emoções.
O conceito dantesco do homem como ser necessitado de uma metamorfose para adquirir no outro mundo uma forma definitiva e eterna, dava entretanto, neste mundo, uma plasticidade transitiva à espécie humana.
O conceito dantesco do homem como ser necessitado de uma metamorfose para adquirir no outro mundo uma forma definitiva e eterna, dava entretanto, neste mundo, uma plasticidade transitiva à espécie humana.
Isto clarifica que todo o poema de Dante seja habitado pela ideia de
transformação. Nascia-se com uma forma para devirmos outra, como as crisálidas
devém borboletas. O objectivo estava à nossa frente, e tudo podia ainda acontecer. O ladrão Vanni Fucci, por exemplo, ao
ser picado por uma serpente, converteu-se num monte de cinza; os luxuriosos
tornaram-se estorninhos; os gulosos uivavam como cães; os suicidas em árvores;
mas estes eram exemplos dados por Dante, cabia ao leitor agir no sentido de
mudar o seu comportamento e determinar aí o seu futuro avatar – o que releva é
que a vida se desdobrava numa crença na capacidade de transformação.
Com a sociedade de massas,
pelo contrário, somos conformados na
origem, formatados por estereótipos que nos condicionam para determinados
gostos e respostas, sendo-nos imprimida um tipo de personalidade consumista.
Nela, o que importa não é aquilo em que nos transformamos mas o quanto podemos
ser conformados.
Para Jaime Rocha só a
loucura, electrizada pelo seu naipe de significantes flutuantes, pode então
operar a passagem para outra modalidade de ser, acelerar os processos.
Repita-se Goethe: «Não se morre. Apodrece-se em certos lugares, amadurece-se
noutros». O ser que evanesce num lugar não encalha no Nada. O Nada deixa de
ser negativo para sinalizar unicamente um intervalo entre dois traços, o
momento em que uma sincronia entre a realidade exterior e a realidade interior
gera uma nova possibilidade, um novo lugar para o despontar do rosto errante.
E é branca essa loucura
porque, nesse instante em que o novo se entroniza, abolindo todas as anteriores
categorias e dispositivos da percepção, a sua virtualidade abarca o espectro
inteiro.
Vítor, que ao princípio
observa um caranguejo agonizante na praia, escolhe no fim penetrar no mar, como
quem despe uma carapaça exterior (esse esqueleto de crustáceo) para se fundir
numa totalidade que o dilata e engolfa. Ali, só uma variável o separa do
crustáceo, como só uma débil intensidade da conciência (o quisto da memória) destrinçava
o seu corpo do triângulo que afinal lhe inventou um «dentro» e a decisão de uma
ocasião. Crisálida que o vento liberta.
E se isso é um bem ou um
mal esta água transparente que (na banheira) me cobre e se infiltra na
intimidade do meu corpo, restabelecendo-me um sentido ao aberto da vigília,
nada me diz. Mas sinto - ironia – que o corpo se apega ainda à caução do medo,
às rochas. Levanto-me, sento-me à mesa, retomo o posfácio: «a escrita de Jaime
Rocha é a de quem anda pelas ruas com a cabeça submersa nos rumores do mundo,
nas suas dimensões dúplices, ocultas, cifradas, afastando da sua frente, com
gestos de nadador, as cortinas da aparência. É uma escrita de quem dá conta de
que os objectos nos lêem, etc... »
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