sábado, 31 de maio de 2014

LOTE DE SALVADOS 1: AS FERIDAS DE AQUILES

                                                            heitor e andrómaca, chirico

A Maria João Cantinho foi a pessoa que mais se bateu para que eu publicasse, em 2007, o meu primeiro livro de poesia escrito em Moçambique, Piripiri Suite, um livro cru e rude, onde eu me afastava da metáfora para traduzir a erosão humana, social, e paisagística que vim encontrar nestas sendas africanas. Cento e cinquenta páginas que nunca descolariam verdadeiramente para a luz porque a editora acabou no dia seguinte ao do lançamento do livro, que acabou por só estar distribuído numa livraria do Porto e noutra de Lisboa, tendo conhecido o piedoso silêncio da imprensa. O que, evidentemente ela desconhecia. O que interessa é que nesse período de alguma depressão ela me apoiou e fiquei-lhe grato. Por isso, mais do que muitos, ela merece conhecer o que escrevi em seguida e mantenho inédito.
Em 2008 escrevi As Feridas de Heitor, absolutamente diferente de Piripiri..., como ela comprovará. É para a leitora ideal que ela é que deposito aqui uma pequena amostra:


AS FERIDAS DE HEITOR


1                        Avenida Vladimir Lenine


Na Vladimir Lenine, quando o primeiro outdoor,
sobre um fundo preto, expôs a folia do açafrão,
onde se lia: «Este espaço é seu! Ocupe-o!»,
reboou o motim popular e os mais afoitos, na ira

e na fúlgida mesa de Baco barraram a rua, “isch...”,
cuspinhando para as câmaras de televisão, “isch...
o terreno onde o painel de publicidade
foi colocado já tem dono”.
                    
Magias de Maputo e da sua ex-
cedentária ração de raios de sol.
Nem escárnio nem clamor, só contarei
o que acontece, como a Heitor –

recuperado do susto que o catapultou
três vezes à volta da muralha –
que estaca e enfrenta o intenso Aquiles,
não interpretando mais os sinais da sua morte.




7                           (Heitor corrige Aragon)

Para os meus amigos mortos em flagrante
Maio e só para esses, que de ora em diante

as minhas rimas tenham “o charme”
com que as armas embebedam o desarme.

E que por todos os viventes
que se transplantam no vento

se aguçe em nome dos mortos
a branca lâmina do remorso.

Palavras nupciais palavras mortais
rimas como um espelho na viela,

que batem em castelo a clareza dos boémios
se simétricos afundam na água os remos,

ou a flor que morre na lapela,
sequiosa lua dos borralhos.

Rimas como o lótus embutido no armário
de sândalo: da reminiscência um corsário

e onde rubro e langue
se entoa cálido o sangue. Rimas

que não nos deixem esquecer como nos comem
vorazes as nossas sombras, iguais ao homem.

E quando o nosso coração se fine
despertem-nos, rimas, da nossa sina

reavivando a lâmpada mortiça
que atrás do vidro parece numa missa!

Eu canto e todavia sigo
os mortos em Tróia, meus amigos.




8
                           
Passas-me o fiambre? Hum, volta a reler:
‘Alguma vez conseguiremos descobrir a história
de um povo que não esteja manchada de cisnes?´.
É um trocadilho curioso, prossegue,
mas será ético
em relação à memória dos crimes?
Passas-me o sumo?
É todo teu, Andrómaca. 



15                     (leitura de Ficino)

Perdido o ponto da vela,
o meu país
é por ora um alpendre ensimesmado,
uma colmeia que diverge do mel
e que sob a batida dos impostos
crava as abelhas
nas ombreiras de um padecer monstruoso.
Este meu exílio é perpétuo
                             e, sim,
nascido para a luz,
aguardo que o universo
se converta em amor,
apesar de já não arder
no meu peito a pálpebra de Deus,
e
de ouvir atrás de mim, usurpador ofegante,
o urso que urde a desordem
do mel. 



18

Demasiados anos a adiar a leitura de Saint-
-John Perse de fio a pavio e agora,
                                                         blasfémia,
preferia a amplitude de um conhaque em Pavia,
à sombra de um castanheiro centenário e na mira
do dolmen, a fronte limpa de presságios.
Nem vale a pena maldizer o tempo ceifado
                           nesta ilusão
de que a astúcia recuperaria a inocência.

Divago, que o mar defronte é baço, e picados
foram os meus velhos ossos de borboleta!

Deveria tê-lo lido em minuciosa reverência
na idade em que o homem encontra
                           a mulher e ficam incontáveis
os seus olhos e todo o espaço
existe no mesmo instante e rodopia
favorável a fazer da compreensão criatura.
Distraidamente,
                          soletrá-lo no descante
de ser novo, sem aquele ninho de cegonhas
a vedar a luz na clarabóia -
é-me agora tão inútil a sua promessa ática
como a sua bruma.
                               Divergimos
no pouco que interessa perseverar.

Também a criança que fui desistiu
de robustecer o homem que pila
até ao invisível um coração de canela.
Mas no tempo em que proferia
                     “O que eu quiser, será!”,
não imaginava que o diplomata de Guadalupe
me rolaria das mãos como uma maçã tocada
                e que o seu ressalto na relva
não delimitaria para mim
a região ímpia.



19           (o pesadelo de Heitor)

Cortado pela base da copa
e escavado por dentro, o imbondeiro
muda em cisterna, em viveiro
de ágatas, num devotamento de guelras.

Aí se esconde Andrómaca.
De olhos fechados, quando Neoptolemo,
o filho do assassino do seu amado,
lhe mexe nas entranhas com o seu caduceu

real. O presumido varão julga-a aninhada,
paralisada pelo prazer, alga musical
num fluido irrenunciável,
enquanto, na cessação da angústia,

Andrómaca conta os peixes e pela milio-
néssima vez os finos cabelos de Heitor
Escavado por dentro, secreto, decaído
em musgo e palpitação de escamas,

o imbondeiro muda em Helena.



27

Intermitente, a vida ganha estofo.
A carraça hiberna dezoito anos, áscua
de pura ausência, na casca da mafurreira.
Um dia, uma devastadora onda de calor
atrai à sombra o lacunar mamífero.
Cismando em novelos de sangue,
a carraça deixa-se cair. Hábil
arqueiro zen no escuro, aloja-se
na junção da orelha esvoaçante
com o pescoço do labrador. O céu
rende-se à danação e trocado o azul
pelo rubro recolhe-se em nova abóbada.

Intermitente, a vida consagra-se.
Há quem eleja uma pátria e uma mulher
(a pátria é dispensável, prefira-se
o pub onde, à vez, os gagos iluminam
a noite), mas pode tomar balanço
quando um incauto confessa
‘eu nunca menti!’, ou se um turista
descobre que a pedra a que Moisés
encostava a cabeça para dormir,
no deserto de Canãa, lateja ainda       
como o sapo sitiado pelo
demente lucilar das estrelas.

Intermitente, a vida recomenda-se.
Sacode os sargaços e coloca uma mão
à tona. Intérmina e à tona, apesar
do mal ser ubíquo. A vida é a morte
por dom e não se pense que não somos
do bem. O bem, a gente veste ao domingo.




29              saudades de William Blake

Em tempo de infâmia, com licença
digital e emitida por satélite,
convém supor a quem nos dirigirmos,
quem pesará a alma no dia do trespasse.
Quem profere as palavras e alivia
de grumos a matéria subtil – moinhas,
pruridos, segredos que as unhas estriam,
moradas duma razão insulsa?
Em tempo de infâmia, crivados os poetas
do sono de Newton, débeis rimas
infiltradas de neuroses: spleens
cozinhados aos balcões das tabernas,
enquanto, coalhos e sórdidos, como frades,
se entredevoram em litanias urbanas,
tomando o solar da pele por contemplação
do mundo e as insónias por visão,
quem pesará a alma no dia do trespasse?

Em tempo de infâmia, baldado o ouro
verde, lascado como cedro podre
o homem em quem a mente se confunde
com o crânio, sem  atentar que o corpo
é unicamente a luva que um dia ouve
tocar a banda e vai à varanda deitar adivinhas,
pôr a língua de fora e perdulário expor
o intrínseco ao vento, quem perfura o écran
das imagens dominantes e sai do amorfo
para evocar Toth, o único
que no lodaçal dos pratos resgata o anel?

Tanto lhe quis dizer antes de interpor-se
o mistério da sua carne, e fesceninos,
esfacelados os olhos em tanta água,
desatarmos a foder como coelhos bravos.




32    (descoberta de Israeli, no Google)

Só o teu olhar e o meu, poisados nele,
amortecem a selvajaria do objecto. A chave,
com os seus caninos, as comissuras raiadas
de sangue, o comando da tv, essa fauce
da guerra - só o nosso olhar cingido
à sua textura lhes impõe uma momentânea
abstenção. Perdoa. Não fui estratega.
Olhei sempre como água dissoluta,
entre poldras. Não me aliei aos objectos,
ao polido corrimão da infância, ao primeiro
canivete, ao ritmo descompassado
do isqueiro de metal voltejando sobre si       
na mesa de mármore. Mas não os repeli.

Será a junção que os rebaixa e insurge,
secretamente? Desconfiava. Que a lua
é a reverberação do primeiro ser
mudado em coisa. A lua é a aurora
que veio depois do primeiro morto,
perdido do primeiro olhar. Só
o teu olhar e o meu, poisados nele,
amortecem a selvajaria do objecto.



33                (carta à minha filha Carolina)


Quero publicitar este cansaço,
os cúmulos que encimam o molhe.

Quarenta e oito anos enredados
por tanto reclame antecipado,

guerras em que caí, por lapso,
outras em que acordei, inanimado,

atido à gaguez e a uma tremenda falta
de condão para distinguir vent e vin.

Como um esquife, morto de cansaço,
o verso que me habilita à proporção.

Tanto resmoneio e afinal: pinturas
rupestres e cem por cento de humidade.

Na tv, passam flamingos. Quarenta e oito
e não me refaço do susto da mão no favo,

da dor que inseminou: não há, para o nascido,
momento, nem pausa, nem minuto

ou lágrima, que restituam a fonte - 
ainda que chegados ao primeiro balido

com quase um ano de zelo, eis-nos,
hélas, exilados do firmamento.



40                                    globaliza-se

Tinha dezassete anos quando morreu Heidegger,
para quem a linguagem é o que permite
à coisa mostrar-se a si mesma, retorqui,
delicadamente, a um seguidor de Allan Kardec
que me convidava para uma sessão espírita.
Tornou-se-me impossível crer na técnica
do toc-toc, prossegui, fixando a ondulação do vento
no canavial que margina o Zambeze. É pena, insistiu,
vamos todos à esplanada da piscina comer
uma pizza e depois zarpamos para a sessão.
Gostei do “zarpar”, ainda tem algo de azagaia,
mas que saudades do tan-tan africano!



42

Eis Deus aflito, a tentar sondar
pela chuva as coisas que Rastelli
conseguiu esconder no ar.
Cai em corda, oblíqua,

Embora nenhum navio singre
na cal das árvores.
Pelo adiantado da água
não chegarei a horas à aula.

Numa rapariga com a roupa colada
à pele despontam duas mangas brancas.
De bico espetado.
É um seio que tivesse sonhado o pintor.

Na Zambézia, saudosa de servidão,
que ainda hoje lamenta a independência,
porque esta debandou os latifundiários.
É de pasmar, mas esta chuva escava no calcário,

marasma sombras e cabides.
Um táxi-borboleta pedala contra a cortina
líquida. O expedito condutor
da bicicleta guia com uma mão, a outra

segura a meia-laranja que abriga o cliente.
É serviço para brancos,
garante-me o vizinho da esplanada.
A honra de Cartago: tão longe, meu amor.
 


49

Sou um poeta místico
que conheceu Dada.

Gostava de morrer atropelado
numa zebra, na confluência
de uma pernas catitas com o olhar,
enquanto na árvore de Buda
se despenha um figo de maus bofes.

Mosca magrinha nunca vi.
Talvez a inversa seja verdadeira.
Dois prestigiados chapeleiros.

Não tive mestres, nem
no meu apogeu, ou antes:
as glicínias que perfuram
o olho de Deus sem pedir licença.

Eis, contudo, o que me trama:
palpita-me que a cauda
cresce ao lagarto depois de cortada
porque foram as suas células
incapazes de deixar de amar.

Envelheço em ti
como lucilam as estrelas
no seu declínio?

Certo é,
não se anda de dúvidas
na corda bamba.



51

A prontidão com que colhe o fruto
das nossas fadigas e se retempera, penetrando
Helena com uma gratuidade felina,
loquaz, voluptuosa - aquele que se evade

no momento em que lhe falecem os homens!
Sim, bem sei, que em abrindo esse deus
juvenil, maligno e cego, de sardas
e pêlo ígneo, as suas asas de rapina

se sucede instantâneo o estalido
da alma que se entrincheirou entre
as unhas do desejo. Nascido de um ovo
chocado pela Noite, amamentado

por uma pantera, tirano impenitente
de deuses e homens, se distraído
sacode as asas de rapina logo uma alma
corre a aninhar-se, inflamável,

junto às fagulhas do tempo.
Enigmas. No seu ombro, cinge-se
uma aljava com flechas de cipreste,
a árvore que finca as suas raízes

na malbaratada melancolia dos homens,
e as setas molha-as em chumbo derretido,
lançando-as ao acaso. Pobre
de quem ouve um silvo furar-lhe a carne,

atreita ficará a sua sombra
à dilapidação do amor.
É o que me dizem os olhos de corça
com que Helena embala no leito as coxas

de vime do seu amado e os seus gemidos
de trepadeira em falésias de ar.
Mas interrogo-me se a Paris não cabia estar
entre os soldados, na muralha, a embeber

no lume o algodão que lastra
a ponta das flechas, e a acudir ao susto
com que situou os seus
por amor de uma câmara de ecos.
  



52

Como querer viver sem estar ferido,
meu amor? O falcão e a rola
desprendem-se da mesma nuvem,
de um mesmo sono sem cuidados.

Como estar vivo e não me engastar
no medo relativo? Heitor
é o estado que acrescentei ao nome,
a telha que faltava ao céu azul,

as tuas três sílabas de argila
com que a água escora o vento
e o hálito aclara a alusão:
presença a si mesmo desvendada.


Átrio III

Por muito que se alcem as buganvílias,
não tapam o sol.  
                         Não lutei contra Menelau,
que nem em contacto com Eros foi tenaz,
nem por Príamo,
                         meu pai, que cria o trovão

                      desirmanado do relâmpago.
         E como levar-se a peito o amor dos frívolos,
o de Helena e Páris, ou o de Orfeu,
                                  que usando os truques
das sereias penetrou no Hades com a sua cítara
sem a ter trocado pela alma de Eurídice
                 ou ter depositado a sua como penhor?
Lutei por Andrómaca, para morrer no seu lugar.

Outrora consultei os búzios (o embutido
                            de alma no leão
            que ouve rugir o mar),
o voo das abelhas, as fezes da Pitonisa,
                           li as palmas do peregrino
que dormitava
sob o loureiro no Templo, surpreendi a furtiva
       dança das sombras despenhadas pela alba,
                   consultei a pedra ventríloqua,
vi de olhos raiados em sangue as águias do Ocidente
                   e do Oriente traficarem sementes,
enquanto a chuva cicatrizava as fontes.
Mas só a inadiável ferida dos confins
que me despovoou o medo me entreabriu
                             o segredo:
amar suprime o hiato que é a morte.




1 comentário:

  1. De alma lavada por uma leitura de algo poderoso.
    Como só os grandes podem escrever assim. Obrigada António. Beijo.

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