A Maria João
Cantinho foi a pessoa que mais se bateu para que eu publicasse, em 2007, o meu
primeiro livro de poesia escrito em Moçambique, Piripiri Suite, um livro cru e rude, onde eu me afastava da
metáfora para traduzir a erosão humana, social, e paisagística que vim
encontrar nestas sendas africanas. Cento e cinquenta páginas que nunca
descolariam verdadeiramente para a luz porque a editora acabou no dia seguinte
ao do lançamento do livro, que acabou por só estar distribuído numa livraria do
Porto e noutra de Lisboa, tendo conhecido o piedoso silêncio da imprensa. O
que, evidentemente ela desconhecia. O que interessa é que nesse período de alguma
depressão ela me apoiou e fiquei-lhe grato. Por isso, mais do que muitos, ela
merece conhecer o que escrevi em seguida e mantenho inédito.
Em 2008
escrevi As Feridas de Heitor,
absolutamente diferente de Piripiri...,
como ela comprovará. É para a leitora ideal que ela é que deposito aqui uma pequena amostra:
AS FERIDAS DE
HEITOR
1 Avenida Vladimir Lenine
Na
Vladimir Lenine, quando o primeiro outdoor,
sobre
um fundo preto, expôs a folia do açafrão,
onde
se lia: «Este espaço é seu! Ocupe-o!»,
reboou
o motim popular e os mais afoitos, na ira
e na
fúlgida mesa de Baco barraram a rua, “isch...”,
cuspinhando
para as câmaras de televisão, “isch...
o
terreno onde o painel de publicidade
foi
colocado já tem dono”.
Magias
de Maputo e da sua ex-
cedentária
ração de raios de sol.
Nem
escárnio nem clamor, só contarei
o que
acontece, como a Heitor –
recuperado
do susto que o catapultou
três
vezes à volta da muralha –
que
estaca e enfrenta o intenso Aquiles,
não
interpretando mais os sinais da sua morte.
7 (Heitor corrige
Aragon)
Para
os meus amigos mortos em flagrante
Maio
e só para esses, que de ora em diante
as
minhas rimas tenham “o charme”
com
que as armas embebedam o desarme.
E que
por todos os viventes
que
se transplantam no vento
se
aguçe em nome dos mortos
a
branca lâmina do remorso.
Palavras
nupciais palavras mortais
rimas
como um espelho na viela,
que
batem em castelo a clareza dos boémios
se
simétricos afundam na água os remos,
ou a
flor que morre na lapela,
sequiosa
lua dos borralhos.
Rimas
como o lótus embutido no armário
de
sândalo: da reminiscência um corsário
e
onde rubro e langue
se
entoa cálido o sangue. Rimas
que
não nos deixem esquecer como nos comem
vorazes
as nossas sombras, iguais ao homem.
E
quando o nosso coração se fine
despertem-nos,
rimas, da nossa sina
reavivando
a lâmpada mortiça
que
atrás do vidro parece numa missa!
Eu
canto e todavia sigo
os
mortos em Tróia, meus amigos.
8
Passas-me
o fiambre? Hum, volta a reler:
‘Alguma
vez conseguiremos descobrir a história
de um
povo que não esteja manchada de cisnes?´.
É um
trocadilho curioso, prossegue,
mas
será ético
em
relação à memória dos crimes?
Passas-me
o sumo?
É
todo teu, Andrómaca.
15 (leitura de Ficino)
Perdido
o ponto da vela,
o meu
país
é por
ora um alpendre ensimesmado,
uma
colmeia que diverge do mel
e que
sob a batida dos impostos
crava
as abelhas
nas
ombreiras de um padecer monstruoso.
Este
meu exílio é perpétuo
e, sim,
nascido
para a luz,
aguardo
que o universo
se
converta em amor,
apesar
de já não arder
no
meu peito a pálpebra de Deus,
e
de
ouvir atrás de mim, usurpador ofegante,
o
urso que urde a desordem
do
mel.
18
Demasiados
anos a adiar a leitura de Saint-
-John
Perse de fio a pavio e agora,
blasfémia,
preferia
a amplitude de um conhaque em Pavia,
à
sombra de um castanheiro centenário e na mira
do
dolmen, a fronte limpa de presságios.
Nem
vale a pena maldizer o tempo ceifado
nesta ilusão
de
que a astúcia recuperaria a inocência.
Divago,
que o mar defronte é baço, e picados
foram
os meus velhos ossos de borboleta!
Deveria
tê-lo lido em minuciosa reverência
na
idade em que o homem encontra
a mulher e ficam
incontáveis
os
seus olhos e todo o espaço
existe
no mesmo instante e rodopia
favorável
a fazer da compreensão criatura.
Distraidamente,
soletrá-lo no descante
de
ser novo, sem aquele ninho de cegonhas
a
vedar a luz na clarabóia -
é-me
agora tão inútil a sua promessa ática
como
a sua bruma.
Divergimos
no
pouco que interessa perseverar.
Também
a criança que fui desistiu
de robustecer
o homem que pila
até
ao invisível um coração de canela.
Mas
no tempo em que proferia
“O que eu quiser, será!”,
não
imaginava que o diplomata de Guadalupe
me
rolaria das mãos como uma maçã tocada
e que o seu ressalto na relva
não
delimitaria para mim
a
região ímpia.
19 (o pesadelo de Heitor)
Cortado
pela base da copa
e
escavado por dentro, o imbondeiro
muda
em cisterna, em viveiro
de
ágatas, num devotamento de guelras.
Aí se
esconde Andrómaca.
De
olhos fechados, quando Neoptolemo,
o
filho do assassino do seu amado,
lhe
mexe nas entranhas com o seu caduceu
real.
O presumido varão julga-a aninhada,
paralisada
pelo prazer, alga musical
num
fluido irrenunciável,
enquanto,
na cessação da angústia,
Andrómaca
conta os peixes e pela milio-
néssima
vez os finos cabelos de Heitor
Escavado
por dentro, secreto, decaído
em
musgo e palpitação de escamas,
o
imbondeiro muda em Helena.
27
Intermitente, a vida ganha estofo.
A carraça hiberna dezoito anos, áscua
de pura ausência, na casca da mafurreira.
Um dia, uma devastadora onda de calor
atrai à sombra o lacunar mamífero.
Cismando em novelos de sangue,
a carraça deixa-se cair. Hábil
arqueiro zen no escuro, aloja-se
na junção da orelha esvoaçante
com o pescoço do labrador. O céu
rende-se à danação e trocado o azul
pelo rubro recolhe-se em nova abóbada.
Intermitente, a vida consagra-se.
Há quem eleja uma pátria e uma mulher
(a pátria é dispensável, prefira-se
o pub onde, à
vez, os gagos iluminam
a noite), mas pode tomar balanço
quando um incauto confessa
‘eu nunca menti!’, ou se um turista
descobre que a pedra a que Moisés
encostava a cabeça para dormir,
no deserto de Canãa, lateja ainda
como o sapo sitiado pelo
demente lucilar das estrelas.
Intermitente, a vida recomenda-se.
Sacode os sargaços e coloca uma mão
à tona. Intérmina e à tona, apesar
do mal ser ubíquo. A vida é a morte
por dom e não se pense que não somos
do bem. O bem, a gente veste ao domingo.
29 saudades de William Blake
Em tempo de infâmia, com licença
digital e emitida por satélite,
convém supor a quem nos dirigirmos,
quem pesará a alma no dia do trespasse.
Quem profere as palavras e alivia
de grumos a matéria subtil – moinhas,
pruridos, segredos que as unhas estriam,
moradas duma razão insulsa?
Em tempo de infâmia, crivados os poetas
do sono de Newton, débeis rimas
infiltradas de neuroses: spleens
cozinhados aos balcões das tabernas,
enquanto, coalhos e sórdidos, como frades,
se entredevoram em litanias urbanas,
tomando o solar da pele por contemplação
do mundo e as insónias por visão,
quem pesará a alma no dia do trespasse?
Em tempo de infâmia, baldado o ouro
verde, lascado como cedro podre
o homem em quem a mente se confunde
com o crânio, sem
atentar que o corpo
é unicamente a luva que um dia ouve
tocar a banda e vai à varanda deitar adivinhas,
pôr a língua de fora e perdulário expor
o intrínseco ao vento, quem perfura o écran
das imagens dominantes e sai do amorfo
para evocar Toth, o único
que no lodaçal dos pratos resgata o anel?
Tanto lhe quis dizer antes de interpor-se
o mistério da sua carne, e fesceninos,
esfacelados os olhos em tanta água,
desatarmos a
foder como coelhos bravos.
32 (descoberta de Israeli, no Google)
Só o teu olhar e o meu, poisados nele,
amortecem a selvajaria do objecto. A chave,
com os seus caninos, as comissuras raiadas
de sangue, o comando da tv, essa fauce
da guerra - só o nosso olhar cingido
à sua textura lhes impõe uma momentânea
abstenção. Perdoa. Não fui estratega.
Olhei sempre como água dissoluta,
entre poldras. Não me aliei aos objectos,
ao polido corrimão da infância, ao primeiro
canivete, ao ritmo descompassado
do isqueiro de metal voltejando sobre si
na mesa de mármore. Mas não os repeli.
Será a junção que os rebaixa e insurge,
secretamente? Desconfiava. Que a lua
é a reverberação do primeiro ser
mudado em coisa. A lua é a aurora
que veio depois do primeiro morto,
perdido do primeiro olhar. Só
o teu olhar e o meu, poisados nele,
amortecem a selvajaria do objecto.
33 (carta à minha filha Carolina)
Quero publicitar este cansaço,
os cúmulos que encimam o molhe.
Quarenta e oito anos enredados
por tanto reclame antecipado,
guerras em que caí, por lapso,
outras em que acordei, inanimado,
atido à gaguez e a uma tremenda falta
de condão para distinguir vent e vin.
Como um esquife, morto de cansaço,
o verso que me habilita à proporção.
Tanto resmoneio e afinal: pinturas
rupestres e cem por cento de humidade.
Na tv, passam flamingos. Quarenta e oito
e não me refaço do susto da mão no favo,
da dor que inseminou: não há, para o nascido,
momento, nem pausa, nem minuto
ou lágrima, que restituam a fonte -
ainda que chegados ao primeiro balido
com quase um ano de zelo, eis-nos,
hélas, exilados do firmamento.
40 globaliza-se
Tinha
dezassete anos quando morreu Heidegger,
para quem a
linguagem é o que permite
à coisa
mostrar-se a si mesma, retorqui,
delicadamente,
a um seguidor de Allan Kardec
que me
convidava para uma sessão espírita.
Tornou-se-me
impossível crer na técnica
do toc-toc,
prossegui, fixando a ondulação do vento
no canavial
que margina o Zambeze. É pena, insistiu,
vamos todos à
esplanada da piscina comer
uma pizza e
depois zarpamos para a sessão.
Gostei do
“zarpar”, ainda tem algo de azagaia,
mas
que saudades do tan-tan africano!
42
Eis Deus
aflito, a tentar sondar
pela chuva as
coisas que Rastelli
conseguiu
esconder no ar.
Cai em corda,
oblíqua,
Embora nenhum
navio singre
na cal das
árvores.
Pelo
adiantado da água
não chegarei
a horas à aula.
Numa rapariga
com a roupa colada
à pele despontam
duas mangas brancas.
De bico
espetado.
É um seio que
tivesse sonhado o pintor.
Na Zambézia,
saudosa de servidão,
que ainda
hoje lamenta a independência,
porque esta
debandou os latifundiários.
É de pasmar,
mas esta chuva escava no calcário,
marasma
sombras e cabides.
Um
táxi-borboleta pedala contra a cortina
líquida. O
expedito condutor
da bicicleta guia
com uma mão, a outra
segura a
meia-laranja que abriga o cliente.
É serviço para
brancos,
garante-me o
vizinho da esplanada.
A honra de
Cartago: tão longe, meu amor.
49
Sou um poeta
místico
que conheceu
Dada.
Gostava de
morrer atropelado
numa zebra,
na confluência
de uma pernas
catitas com o olhar,
enquanto na
árvore de Buda
se despenha
um figo de maus bofes.
Mosca
magrinha nunca vi.
Talvez a
inversa seja verdadeira.
Dois
prestigiados chapeleiros.
Não tive
mestres, nem
no meu
apogeu, ou antes:
as glicínias
que perfuram
o olho de
Deus sem pedir licença.
Eis, contudo,
o que me trama:
palpita-me
que a cauda
cresce ao
lagarto depois de cortada
porque foram
as suas células
incapazes de
deixar de amar.
Envelheço em
ti
como lucilam
as estrelas
no seu
declínio?
Certo é,
não se anda
de dúvidas
na corda
bamba.
51
A prontidão
com que colhe o fruto
das nossas
fadigas e se retempera, penetrando
Helena com
uma gratuidade felina,
loquaz,
voluptuosa - aquele que se evade
no momento em
que lhe falecem os homens!
Sim, bem sei,
que em abrindo esse deus
juvenil, maligno
e cego, de sardas
e pêlo ígneo,
as suas asas de rapina
se sucede
instantâneo o estalido
da alma que
se entrincheirou entre
as unhas do
desejo. Nascido de um ovo
chocado pela
Noite, amamentado
por uma
pantera, tirano impenitente
de deuses e
homens, se distraído
sacode as
asas de rapina logo uma alma
corre a
aninhar-se, inflamável,
junto às
fagulhas do tempo.
Enigmas. No
seu ombro, cinge-se
uma aljava
com flechas de cipreste,
a árvore que
finca as suas raízes
na
malbaratada melancolia dos homens,
e as setas molha-as
em chumbo derretido,
lançando-as
ao acaso. Pobre
de quem ouve
um silvo furar-lhe a carne,
atreita
ficará a sua sombra
à dilapidação
do amor.
É o que me
dizem os olhos de corça
com que
Helena embala no leito as coxas
de vime do
seu amado e os seus gemidos
de trepadeira
em falésias de ar.
Mas
interrogo-me se a Paris não cabia estar
entre os
soldados, na muralha, a embeber
no lume o
algodão que lastra
a ponta das
flechas, e a acudir ao susto
com que
situou os seus
por amor de
uma câmara de ecos.
52
Como querer
viver sem estar ferido,
meu amor? O
falcão e a rola
desprendem-se
da mesma nuvem,
de um mesmo
sono sem cuidados.
Como estar
vivo e não me engastar
no medo
relativo? Heitor
é o estado
que acrescentei ao nome,
a telha que
faltava ao céu azul,
as tuas três
sílabas de argila
com que a
água escora o vento
e o hálito
aclara a alusão:
presença a si
mesmo desvendada.
Átrio
III
Por muito
que se alcem as buganvílias,
não tapam
o sol.
Não lutei contra Menelau,
que nem em
contacto com Eros foi tenaz,
nem por
Príamo,
meu pai, que cria o
trovão
desirmanado do relâmpago.
E como levar-se a peito o amor dos
frívolos,
o de
Helena e Páris, ou o de Orfeu,
que usando os
truques
das
sereias penetrou no Hades com a sua cítara
sem a ter
trocado pela alma de Eurídice
ou ter depositado a sua como
penhor?
Lutei por
Andrómaca, para morrer no seu lugar.
Outrora
consultei os búzios (o embutido
de alma no leão
que ouve rugir o mar),
o voo das
abelhas, as fezes da Pitonisa,
li as palmas do
peregrino
que dormitava
sob o
loureiro no Templo, surpreendi a furtiva
dança das sombras despenhadas pela alba,
consultei a pedra
ventríloqua,
vi de
olhos raiados em sangue as águias do Ocidente
e do Oriente traficarem
sementes,
enquanto a
chuva cicatrizava as fontes.
Mas só a
inadiável ferida dos confins
que me
despovoou o medo me entreabriu
o segredo:
amar
suprime o hiato que é a morte.
De alma lavada por uma leitura de algo poderoso.
ResponderEliminarComo só os grandes podem escrever assim. Obrigada António. Beijo.