terça-feira, 5 de novembro de 2013

STORYTELLING E AS GAFAS DE GIMFERRER




STORYTELLING

                   
                                            para o Henrique Fialho, com um abraço ao Corvo

1


‘aparquei no soneto, decidido

a depilar a algazarra,

a cagança e o descaro –

que um trocadilho entre

garça e graça já passe

por poema. gosto da secura

dos indigentes a cismar

nas melhoras beatas, do acinte

janota com que enrolam

as mortalhas, num renovo:

vejo aí as qualidades da terra.

e o que arde desafecta…’, pre -

cisou ao riscar o fósforo

com que floresceu no petróleo.



 

2



tocava uma trompete fantasma. feminina

comme il faut. as suas cordas vocais imitavam

o instrumento, enfim, os pistões comme il faut

excursionavam num ataque d’asma de má sina

ou por desafinadas notas agudas felizardas

por explodir. canoras silvas de saliva

que bastavam para colorir uma narça

colectiva. ‘papagaios é o que a tua mãe guarda

na cona, fosse mais cedo era o Victor Hugo!’,

atirava se o picavam por derrota do Benfica.

o mar há muito não presta e não passa de peúga

rota, só lá me enfiei lá dentro, comme il faut,

para achar os sons do homem-orquestra:

glu-glu-glu-glu-glu-glu-glu-glu-glu-glô…



 

3



tinha um filtro irónico e reinadio, por isso

afluía de natural a uma vidinha de raposo

gingão: mulherio, assaltos

(nunca aos vizinhos), dissipação.

sabia a Bíblia de fio a pavio

e chamava ao sexo a espada

de Salomão. deixou três ramelosos

rebentos, duas mulheres, um rio

de livros e permutas. ‘o hiv,

como um planctôn daninho, presta-se

a papar o Leviatã’, e mostrou-me o Vi-

agra, numa gargalhada impoluta,

antes de, atraído à Cloaca Mãe,

abraçar a Grande Puta.



 

4



tão magro, de alcunha o Entremez,

o mínimo flato era nele

um sismo de grau três. palavras

leva-os o vento, repetia, naquele

triste embaraço depois da Rosa

o ter trocado plo retalhista.

‘a rapariga afligia-se de te

ver a alpista’, atirou acintosa

uma amiga. ‘eu não

emagreço por gosto

mas por vocação,

eu simplesmente ouso – si

labou - concentrar-me

n-o o-s-s-o.’



 

5



o barra em jogos florais

a meio da queda constatou:

não distinguia nos estratos

da falésia aliterações

de rimas sonantes.

sem se deter (e onde?)

um melro cruzou

o desamparo do seu corpo.

quis detê-lo,

trocar com o dele

o seu aparato.

chamou-o, como se parido

naquele momento,

a ferros: m-e-l-r...



 

6



‘os pretos são todos iguais mas

nos pormenores são só idênticos’,

gracejava, escarafunchando a cicatriz

no braço, do último acidente nas obras.

um dia a serra eléctrica, numa guinada,

deixou-lhe a mão pendurada por um fio.

arrancou-a. queria uma de ferro. vira

na televisão, disse nos bombeiros.

não lha deram. ‘com uma mão

assento o tijolo mas não lhe coloco

o cimento’. era de Santiago onde o eco

é iletrado e ninguém lhe respondia

às cartas. partiu a garrafa, mordeu

o cepo, e trilhou o casco no pescoço.



 

7 (a última carta do futebolista)



entrava no balneário, a suar em bica, da jogatana,

e ao molhar-me, reflectindo-me no cromado

das torneiras, sentia-me culpado. em criança

só havia torneiras de cobre em casa. e só

aos dez anos, numa deslocação da família

ao campo me dei conta que a água caía,

nas mãos da minha mãe que me esfregava

a cara, de uma torneira amarelada e fosca.



até aí o opaco não entrara na minha vida.

olhava a torneira e ela não espelhava a minha cara

deformada. mudou tudo quando fiquei famoso,

as torneiras cromadas fizeram-me pensar que todos

os objectos foram criados para me reflectir.

que me perdoem, não foi isto que me ensinaram.



 

8 (o meu mestre)



para que mantinha aquele cacifo

há dez anos na estação

de Santa Apolónia ninguém

sabia. todo ele um mistério,

calibrado em frases soltas

e sibilinas: «só o insensato orgulho

do homem o leva a conceber

deus como um ladrão de cinzas?»,

anotei uma vez, à socapa,

porque Ele não gostava de perder

tempo a olhar para trás.

‘depois cortas-me a cabeça e

guardas-ma no cacifo’, instruiu-

-me no dia anterior ao ocorrido.



 

 
9



o amigo tem horas?

e, ele, célere, puxava

da naifa e desmoralizava

as tripas do inquiridor.

recai-se quando se fala

do tempo e nos desconec-

tamos do seu fluxo: o

tempo é uma mandala

na areia, reflecte tudo,

se a unha risca o padrão

o vento começa a ficar feio,

disse na polícia. à terceira ini-

ciaram-no nos electro-choques:

morreu de barriga cheio.



 

10



em menino, pedi um penico e caguei

um galo: o meu primeiro prodígio.

inventei depois, tendo em vista os litígios

dos casais – os meus avós, pais, tios… –,

a faca que se desenrola como a língua

do camaleão. a minha terceira

invenção foi o pára-quedas que amua

e não abre quando transporta um pária,

ou um desses borjeços que se pelam

por um trocadilho à Zé do Pipo:

‘eh pá, não é hamlet, é omolete!’

admiram-se se fui à televisão

e encharquei de gasolina o tipo

do execrável Compre Você Mesmo?




11



há deslizes mais venturosos que outros,

figueiras que no devido tempo

cospem o figo aos pés do mestre,

sílabas de uma só dentadura: o espelho

da sua vida. nasceu pobre, morreu

endividado – chamar-se-se-ia a tal,

nos velhos tempos da política, coerência.

alimentou dois projectos, aquela cabeça

a que num assomo de auto-estima

chamava "o meu torresmo": escrever

uma ficção que seria uma "tradução

das partes gagas"e um manual

de título ‘Kamasutra para Rouxinóis’.

o drama é que toda a vida confundiu

kamasutra com kamikazes e o 11 com o 13.



 

AS GAFAS DE GIMFERRER                             
 


Não se lembra se foi nas reuniões de tupperware

a que a mãe o arrastava, ou da vez que foi às putas,

no rasto de colegiais que o desagravaram com absinto.

Na certeza porosa, inebriaram-no os estames

da genesíaca flor carnívora e extraviou o número

de ouro, a divina proporção que piratearia

em riso a sua flagrante auto-estima. Areiam-se-lhe

as gafas num gafado espelho de Deus? Ou são

o ecrã em que revê - no mesmíssimo transe

da esposa, que a seu lado mergulha

os morangos nas natas – as pernas

de Marlene Dietrich? Não admira

que a ponta do nariz lhe ressalte como

cornija em saudoso apelo d’andorinhas.

 

 

 

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