STORYTELLING
para o Henrique Fialho, com um abraço ao Corvo
1
a depilar a algazarra,
a cagança e o descaro –
que um trocadilho entre
garça e graça já passe
por poema. gosto da secura
dos indigentes a cismar
nas melhoras beatas, do acinte
janota com que enrolam
as mortalhas, num renovo:
vejo aí as qualidades da terra.
e o que arde desafecta…’, pre -
cisou ao riscar o fósforo
com que floresceu no petróleo.
2
tocava uma trompete fantasma. feminina
comme il faut. as suas cordas vocais imitavam
o instrumento, enfim, os pistões comme il faut
excursionavam num ataque d’asma de má sina
ou por desafinadas notas agudas felizardas
por explodir. canoras silvas de saliva
que bastavam para colorir uma narça
colectiva. ‘papagaios é o que a tua mãe guarda
na cona, fosse mais cedo era o Victor Hugo!’,
atirava se o picavam por derrota do Benfica.
o mar há muito não presta e não passa de peúga
rota, só lá me enfiei lá dentro, comme il faut,
para achar os sons do homem-orquestra:
glu-glu-glu-glu-glu-glu-glu-glu-glu-glô…
3
tinha um filtro irónico e reinadio, por isso
afluía de natural a uma vidinha de raposo
gingão: mulherio, assaltos
(nunca aos vizinhos), dissipação.
sabia a Bíblia de fio a pavio
e chamava ao sexo a espada
de Salomão. deixou três ramelosos
rebentos, duas mulheres, um rio
de livros e permutas. ‘o hiv,
como um planctôn daninho, presta-se
a papar o Leviatã’, e mostrou-me o Vi-
agra, numa gargalhada impoluta,
antes de, atraído à Cloaca Mãe,
abraçar a Grande Puta.
4
tão magro, de alcunha o Entremez,
o mínimo flato era nele
um sismo de grau três. palavras
leva-os o vento, repetia, naquele
triste embaraço depois da Rosa
o ter trocado plo retalhista.
‘a rapariga afligia-se de te
ver a alpista’, atirou acintosa
uma amiga. ‘eu não
emagreço por gosto
mas por vocação,
eu simplesmente ouso – si
labou - concentrar-me
n-o o-s-s-o.’
5
o barra em jogos florais
a meio da queda constatou:
não distinguia nos estratos
da falésia aliterações
de rimas sonantes.
sem se deter (e onde?)
um melro cruzou
o desamparo do seu corpo.
quis detê-lo,
trocar com o dele
o seu aparato.
chamou-o, como se parido
naquele momento,
a ferros: m-e-l-r...
6
‘os pretos são todos iguais mas
nos pormenores são só idênticos’,
gracejava, escarafunchando a cicatriz
no braço, do último acidente nas obras.
um dia a serra eléctrica, numa guinada,
deixou-lhe a mão pendurada por um fio.
arrancou-a. queria uma de ferro. vira
na televisão, disse nos bombeiros.
não lha deram. ‘com uma mão
assento o tijolo mas não lhe coloco
o cimento’. era de Santiago onde o eco
é iletrado e ninguém lhe respondia
às cartas. partiu a garrafa, mordeu
o cepo, e trilhou o casco no pescoço.
7 (a última carta do futebolista)
entrava no balneário, a suar em bica, da jogatana,
e ao molhar-me, reflectindo-me no cromado
das torneiras, sentia-me culpado. em criança
só havia torneiras de cobre em casa. e só
aos dez anos, numa deslocação da família
ao campo me dei conta que a água caía,
nas mãos da minha mãe que me esfregava
a cara, de uma torneira amarelada e fosca.
até aí o opaco não entrara na minha vida.
olhava a torneira e ela não espelhava a minha cara
deformada. mudou tudo quando fiquei famoso,
as torneiras cromadas fizeram-me pensar que todos
os objectos foram criados para me reflectir.
que me perdoem, não foi isto que me ensinaram.
8 (o meu mestre)
para que mantinha aquele cacifo
há dez anos na estação
de Santa Apolónia ninguém
sabia. todo ele um mistério,
calibrado em frases soltas
e sibilinas: «só o insensato orgulho
do homem o leva a conceber
deus como um ladrão de cinzas?»,
anotei uma vez, à socapa,
porque Ele não gostava de perder
tempo a olhar para trás.
‘depois cortas-me a cabeça e
guardas-ma no cacifo’, instruiu-
-me no dia anterior ao ocorrido.
o amigo tem horas?
e, ele, célere, puxava
da naifa e desmoralizava
as tripas do inquiridor.
‘recai-se quando se fala
do tempo e nos desconec-
tamos do seu fluxo: o
tempo é uma mandala
na areia, reflecte tudo,
se a unha risca o padrão
o vento começa a ficar feio,
disse na polícia. à terceira ini-
ciaram-no nos electro-choques:
morreu de barriga cheio.
10
em menino, pedi um penico e caguei
um galo: o meu primeiro prodígio.
inventei depois, tendo em vista os litígios
dos casais – os meus avós, pais, tios… –,
a faca que se desenrola como a língua
do camaleão. a minha terceira
invenção foi o pára-quedas que amua
e não abre quando transporta um pária,
ou um desses borjeços que se pelam
por um trocadilho à Zé do Pipo:
‘eh pá, não é hamlet, é omolete!’
admiram-se se fui à televisão
e encharquei de gasolina o tipo
do execrável Compre Você Mesmo?
11
há deslizes mais venturosos que outros,
figueiras que no devido tempo
cospem o figo aos pés do mestre,
sílabas de uma só dentadura: o espelho
da sua vida. nasceu pobre, morreu
endividado – chamar-se-se-ia a tal,
nos velhos tempos da política, coerência.
alimentou dois projectos, aquela cabeça
a que num assomo de auto-estima
chamava "o meu torresmo": escrever
uma ficção que seria uma "tradução
das partes gagas"e um manual
de título ‘Kamasutra para Rouxinóis’.
o drama é que toda a vida confundiu
kamasutra com kamikazes e o 11 com o 13.
AS GAFAS DE GIMFERRER
Não se lembra se foi nas reuniões de tupperware
a que a mãe o arrastava, ou da vez que foi às putas,
no rasto de colegiais que o desagravaram com absinto.
Na certeza porosa, inebriaram-no os estames
da genesíaca flor carnívora e extraviou o número
de ouro, a divina proporção que piratearia
em riso a sua flagrante auto-estima. Areiam-se-lhe
as gafas num gafado espelho de Deus? Ou são
o ecrã em que revê - no mesmíssimo transe
da esposa, que a seu lado mergulha
os morangos nas natas – as pernas
de Marlene Dietrich? Não admira
que a ponta do nariz lhe ressalte como
cornija em saudoso apelo d’andorinhas.
Sem comentários:
Enviar um comentário