depois de ter lido o unicórnio, de juan emar, na minha sala de leituras
1
Se quero rejeitar a presença da metáfora num poema
faço um compasso de espera.
Após o que pego no transferidor
e meço os ângulos ao intervalo. Em tendo dúvidas uso a fita métrica
avaliando a justeza do colarinho ao pescoço
que me ergue a cabeça.
Tem de estar cingido para eu estar apto a reflectir com equilíbrio.
Não é raro um desajuste, posto eu comprar as camisas
nas calamidades. Um número abaixo ou acima
abre-me um furo na precisão do raciocínio,
e pode brotar por esse mínimo lapso o corno de unicórnio.
É assim desde criança, quando fazia birra antes de dormir
e repetia histérico "não caibo no sono, não caibo no sono…",
debatendo-me para entrar dentro do saco
antes que me nascesse na testa a armação.
: neste espaço respiro,
enquanto espero que as metáforas se aquietem
ou que o vinho mas amorteça, nesse limiar
onde toda a chuva se distrai do dilúvio apesar
da linguagem atrair desde o fundo do mar insondáveis hexâmetros.
Eu sou budista, não me fixo em nenhuma imagem, nuvens que vêm e vão,
senão faço um compasso de espera
e no sofá da sala deito-me em migração para o consolo dos clássicos.
Metáfora comigo não entra desde que Andrómaca trocou
o amor-próprio pela contemplação da espuma dos oceanos
e inaugurou com a traição a Heitor uma figura de estilo.
Comigo nenhum esqueleto
é bailarino ou se imagina o grumo que burla o nada,
de papel a neve. Mesmo no meio do nevoeiro procuro os factos.
E a esse cárcere vulgar que é a metáfora num verso, abomino.
Logo que me chega necessidade de abrir o compasso apago a luz
e se insistente me invade a questão, excruciante:
está de luto o carvão que não acha a sua chama?
pego no balde de cal e caio, caio, caio, caio o escuro
até à exaustão da mente. E não me falem de deus, que
a sua tosse convulsa mata em mim o melómano.
2
O tema único é afinal o amor
ainda que assombrado pela morte
que assiste da varanda ao erro
da sua desatendida designação perpétua.
Tema que por um breve lampejo
tem o valor da ostra
ou de uma ou outra gargalhada
num país de tristes.
Quando falo de ostras falo de pulmão,
dessa breve ignição que leva o reformado
a lançar as cartas no jardim
e a derrotar o labirinto.
3
Agradeço a este verso não me deixar ao léu.
E, confesso, cabem-lhe também ter feito os desenhos
utilizados nesta página. Queria então, ao menos,
ter dado um timbre ao poema, a feição polifónica
e ambulatória de um sampler.
Mas assim que ela chegou – palhaço
enfarinhado ou homem diagonal ao seu ridículo –
vi-me privado do jogo de questionamento das identidades,
absorvido simplesmente pela sua presença,
como se estivesse em lótus no topo rochoso
de um fiorde norueguês e a minha respiração,
pontiaguda, fosse perfurada pela paisagem,
à beira da exaltação que, estranha à vontade,
antecipa a penetração. Sob o tecto deste verso
que não me deixou ao léu
e me eximiu da matéria da cólera,
devolvido ao sinal gráfico
de ser um só, felino empoleirado num talo
que foca mas não chega ao céu.
4 (Denise Levertov)
Enquanto o meu amigo lê, mija o urso branco,
placidamente, tinge a neve
de açafrão.
No preciso momento da leitura, espreguiça-se um ror
de deuses entre as lianas: com olhos de obsidiana
vigiam gerações de folhas.
À medida que vai lendo
volta o mar às suas páginas mais negras,
folheando-as
com sombrio humor.
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