E lá aconteceu ontem o lançamento de A Maldição de Ondina. Eu li o texto em baixo, citando o José Teixeira Pimentel. O do António-Pedro Vasconcelos será publicado na imprensa. Foi uma festa porreira, onde reencontrei vários amigos. A todos eles grato, etc.
«O tempo tem destas
coisas, desníveis e curvas de nível, e hoje apresentou-se chocho e pôs-me
melancólico, pelo menos às sete da manhã deste dia 25, quando redigi este apontamento,
sob o espectro da certeza de que preferia voltar atrás e ter sido guarda das
pimentas d’el-rei dom Manuel de Portugal ou, em último recurso, ter sido amante
da Debra Winger ou da Eva Mendes, a ter perdido dois anos com A Maldição de Ondina – um remédio que
aliás nem me aliviou da gota.
Para já a relação teria
sido muito mais rápida, por muito magnésio que eu pusesse nas mãos a enguia
teria escapado. Depois a despedida seria de uma vez só, não era este enredo a
conta-gotas que me faz sentir um amante póstumo.
Não creio que um amante
póstumo tenha grande proveito.
Cansaços.
No dia em que fiz
cinquenta e um – estava a acabar a Ondina -
tive uma estranha epifania: senti que quando fosse meia-noite me iria
transformar numa abóbora. Uma coisa estapafúrdia para um cinquentão.
Comentei o meu
desconforto com a minha filha mais nova, a Jade, e ela, do alto dos seus seis
anos, respondeu-me:
Pai, uma abóbora não
ressona.
E então compreendi que
o meu desejo mais secreto aos 51 anos era não adormecer para não incomodar os
outros com a minha apneia.
Ímpeto cristão, só me
falta o baptismo.
Mas isso é na vida.
Os romances, pelo
contrário devem ressonar, e fortemente - não transigir.
Incomodar pelos motivos
que evocam, pela insónia em que colocam o leitor mesmo que não saiba porquê.
Como escreveu um amigo
que leu a Maldição, uma frase que acho antológica: «Nunca gostei tanto de um
livro de que discordasse tanto».
É este pacto que
procuro traduzir na escrita, não o sentimento da fusão mas o do ligeiro
incómodo que nos leva a prosseguir. Só neste intervalo entre uma impossível
adesão ao que está a ser dito e o transe eléctrico da leitura é que pode
acontecer algo novo, quando tudo, no dizer do velho Heraclito, «fica governado
pelo relâmpago».
Não conheço outras leis
para a escrita.
Nem para o tempo.
Por isso me fascinou
este outro mistério que descobri esta noite na net e que me abysmou em
reflexões que me tiraram o sono:
o pai de Rousseau, o
Isaac Rousseau, foi relojoeiro num harém, em Constantinopla.
Relojoeiro num harém –
eis tarefa para uma vida. E uma tarefa tão material, dado o tempo ser «a morte
no trabalho» como dizia do cinema o Godard, como imensamente obscura.
Mas viu-se o pai de
Rosseau obrigado a regressar a Genebra por insistência da mulher, Suzanne – de quem
se dizia ser bonita e espirituosa a um ponto que teve um corrupio de pretendentes
semelhante ao de Penélope -, e fez-lhe um último filho, para depois assistir ao
sobressalto de vê-la falecer no parto de um – veja-se a ironia – bebé enfezado
e doentio. O próprio Jean-Jacques.
Dizem os relatos que ambos
ficaram nostálgicos, o bebé e o pai, e que dedicados ao culto da ausente
Suzanne, se entregaram à leitura, devorando a grande colecção de romances que
ela deixara – acumulada durante a estada de Isaac no harém oriental. AS coisas
impensáveis a que podem levar as badanas de um harém.
Quando esgotaram esta
biblioteca, bulímicos, concentraram-se na do avô materno, onde o muito jovem
Rousseau virou, como se fossem líquidos, todas as páginas dos autores da sua
época e os da antiguidade.
Mas suspeito que este
jovem educado um pouco ao deus dará e com um pai que só lhe presta atenção por
saudades da falecida, há-de ter chegado à adolescência e, numa noite de luar,
talvez no esplendor da descoberta do seu corpo, embatido com o seu primeiro
mistério metafísico: o que faz um relojoeiro num harém?
Qual é natureza exacta do
seu trabalho? E qual é o verdadeiro marcador de tempo no serralho? E por fim,
talvez a mais vertiginosa das perguntas: um relojoeiro num harém não se sente
afogar numa espécie de infinito, de coalho que impede qualquer regularidade na
medida?
Que podia o embaralhado
Rousseau imaginar, para se safar a tal vertigem, senão «um bom selvagem», uma pulsão-em-flor
que escape ao controle dos ritos e das regras “civilizacionais” – que permita,
enfim, evadir-se de tudo o que dava sentido ao cumprimento das horas e à
necessidade de um relojoeiro.
Pressinto que
Jean-Jacques Rousseau, de repente, contra o pai, aspirou à hipótese de no
futuro, e unilateralmente, vir a ser amante da Debra Winger ou da Eva Mendes, e
nunca por nunca relojoeiro.
É aqui que nos encontramos e que eu deslindo outro
princípio para a arte: encontrar mais que foi perdido (Elias Canetti), como só pode
acontecer em Eros.
Mas enquanto ninguém me
manda o contacto da Eva Mendes, só me resta escrever outro libro, para me salvar
desta dupla maldição.
Por isso, meus caros,
até mais logo.«
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